Revista UpPharma
2019 05

Velhos
que NÃO Viram Crianças
Por Isabel Fomm de Vasconcellos
Não gosto dessa história de tratarem os velhos como se eles tivessem
voltado a ser crianças. Como se fossem todos uns Benjamins Buttons.
Velhos não são crianças. Particularmente, acredito que crianças nasçam
com a memória de outras vidas, por isso suas primeiras lembranças
começariam só mais tarde, lá pelos 3 anos de idade. E começam como
lembranças dessa vida, não de outras. Já imaginou lembrar, por exemplo,
que numa outra vida você morreu queimada nas fogueiras da inquisição?
Os velhos -- nem todos -- talvez porque seus cérebros também estejam
envelhecidos, podem embaralhar as lembranças, talvez até dessa vida com
outras vidas, pois afinal, em algum lugar do cérebro, estariam, da mesma
forma, armazenadas as memórias de outras vidas. Mas isso -- e a perda
eventual de outras funções, além das cognitivas -- não os torna
crianças.
Velhos são apenas velhos, têm a história dessa vida atrás de si e devem
ter respeitada essa história. Pessoas que foram responsáveis pelo
destino de milhões de outras, como políticos, legisladores, capitães de
grandes corporações, grandes magos, grandes bruxas, de repente, começam
a ser tratados pelos mais jovens como se fossem, eles e a grandeza de
suas vivências, semi-imbecis.
Uma fisioterapeuta que recebeu uma amiga minha, de 67 anos, no
consultório de um médico ortopedista, em atendimento preliminar, disse:
"Ah, mas a senhora não pode usar sapatos com saltos tão altos". Ela riu:
“Ué... Não os estou usando agora? Como não posso se estou com eles,
normalmente? “- "Ah, mas a senhora não pode fazer ginástica em casa,
sozinha, pode causar uma lesão" Ela pensou, mas não disse: -- Como não
posso? Se estou fazendo ginástica sozinha há 3 décadas, baseada em tudo
o que aprendi sobre atividade física na escola, em academias, na
Internet?
O médico terminou por receitar a ela hidroginástica e atividades
leves... De morrer de rir! Ela faz musculação com 4 quilos de peso, 40
minutos de bicicleta com carga, alongamento, isso sem contar as faxinas
na casa, o levantamento de varais cheios de roupas de cama, a maratona
dos aspiradores de pó, vassouras e espanadores... Nem todos os médicos e
fisioterapeutas são sábios. Esses dois, em cujo consultório minha amiga
esteve, não passam de um par de bufões que, da vida real, sabem pouco.
Pensam eles, certamente, que há uma cartilha com fórmulas para
procedimentos e protocolos, por idade... Mas nem todos os indivíduos são
iguais, nem todos os velhos são velhos de fato.
A moça que está cuidando do pai da minha assessora é um doce de pessoa,
alegre, bem humorada, eficiente. Mas leva pra ele cumbucas com tomate
picadinho, que ele se recusa a comer; papinhas de abacate, que ele se
recusa a comer. Ele quer alimentos cortados em pedaços grandes, para
adultos. Ela ri das breves confusões mentais, escorregões no resto do
delírio pós-operatório, resíduos da loucura artificial das drogas
anestésicas, como se fossem travessuras infantis, cheias de ingenuidade
e com a graça infantil da descoberta do mundo. Mas não são. O mundo, ele
já passou 80 anos descobrindo...
Meus amigos e eu somos do time dos Novos Velhos, esses mesmos que estão
derrubando, com a força e a violência de suas próprias experiências, os
muitos preconceitos idiotas que os jovens ainda têm com relação aos
velhos. Nós somos fortes. E não é qualquer ventinho que nos derruba. Um
vendaval pode até nos curvar ligeiramente, mas nossas profundas raízes,
fincadas na terra, nos sustentam. Velho, meninos, é a vovozinha!
Isabel Fomm de Vasconcellos é escritora e jornalista com especialização
em saúde, editora do Portal SAÚDE&LIVROS há 18 anos e apresentadora de
TV.
www.isabelvasconcellos.com.br
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