Capítulo 1 – Gerações – (Prazer e Preconceito)
1. Leonor, a avó
-- Ah, minha querida – dizia Leonor à sua netinha de 17 anos – você não
pode imaginar como foi a nossa juventude. Impossível pensar naqueles
anos 1960, sem imediatamente pensar na reviravolta instaurada pela
revolução sexual. De repente, tudo virou de cabeça para baixo. Os velhos
costumes foram remexidos, o recato saiu, de repente, da moda e ...
A moça, que segurava delicadamente a mão de sua avó, sobre a mesa posta
para o lanche, sorriu. Quando ela sorri parece que todo o Universo sorri
com ela – teve tempo de pensar Leonor, antes que ela, sacudindo a vasta
cabeleira negra, passasse do sorriso à gargalhada:
-- Vovó, pelo amor de Deus! O que é re-ca-to?
Leonor teve que rir também.
-- Está vendo? Nem mais a palavra existe, o que dirá da atitude...
-- Recato é uma atitude?
-- Sim, uma mistura de pudor com timidez, uma coisa que era
exaustivamente ensinada às mulheres, desde criancinhas. Fazia parte, é
claro, do sistema de redução do nosso sexo à sua condição submissa e
passiva. Mas como eu estava dizendo, quando saiu de cena o recato,
entrou a liberdade como uma bandeira absoluta. Os hippies popularizam
seu lema de Paz e Amor, os cabelos compridos representavam uma forma de
protesto que quebrava os limites, até então muito rígidos, entre homens
e mulheres. Viver o momento, curtir a vida, conquistar o prazer...
-- Bem – ponderou Lilian, a neta – mas hoje também nós jovens queremos
viver o momento, curtir a vida e conquistar o prazer.
-- Pois é., mas não quereriam, se a nossa juventude não tivesse
inventado esse querer. A herança das grandes inquietações sociais e
políticas daquela década de sonhos fez com que nós, mulheres,
enterrássemos definitivamente o pudor excessivo e quase doentio que, por
tantos séculos, nos afastara de nosso corpo e, então, assuntos como
masturbação, posições sexuais, orgasmo, passaram a fazer parte do nosso
universo feminino.
-- Não se falava nisso então, antes? Antes da sua juventude, quero
dizer.
-- Nem pensar! As mulheres, depois da vitória dos cristãos sobre os
povos que eles chamavam de bárbaros, na Baixa Idade Média, reduziu a
beleza própria do corpo da mulher a nada mais do que o depósito de
pecado. De lá para cá, só restava ao nosso sexo, dois caminhos: ser
recata (e aqui, riram as duas) ou ser prostituta. A mãe de família, como
se chamavam as recatadas, faziam amor apenas para ter filhos e foram se
distanciando cada vez mais da ideia do prazer. O prazer era dos homens.
E eles, via de regra, não o encontravam em suas esposas, mas sim nas
outras, nas chamadas mulheres da vida.
-- Então...—refletiu Lilian – essas aí tinham prazer?
-- Hum... – respondeu Leonor – nem sempre, na maioria da vezes não
tinham não. Era a sua profissão e pronto. O prazer não entrava na conta
e os homens jamais se preocuparam em dar prazer às mulheres, às da vida
ou às do lar.
-- Ah... agora estou entendendo uma coisa gozada. Eu estava ouvindo os
velhos discos de vinil da mamãe e tinha uma música que dizia “mulher é a
vida, a vida é mulher, toda mulher é mulher da vida” ... agora caiu a
minha ficha! Entendi o sentido do verso.
Leonor estufou o peito. Quer orgulho, aquela neta. Menina inteligente! E
disse:
-- Isso mesmo. É uma letra de Fernando Brandt com música de Milton
Nascimento.
-- Os do Clube da Esquina – comentou prontamente Lilian.
-- Ué... como você sabe disso?
-- Estudamos, na escola, os movimentos musicais que se ligavam ao
protesto político na época da ditadura militar brasileira.
Nesse momento, Beth, a mãe, entrou na sala, carregando a bandeja do
café.
-- Pronto. Aqui está –disse Beth – Café à moda da vovó. – E começou a
encher as xícaras com aquele líquido super escuro, de aroma forte e
delicioso. – Café como no tempo dos Barões do Café! Mas, por falar em
tempo, eu estava ouvindo a conversa de vocês. Mamãe – dirigindo-se à
Leonor – concordo que a sua juventude deixou um maravilhoso legado para
aqueles que sabem distinguir alhos de bugalhos. Mas, por outro lado, os
princípios revolucionários dos anos 1960 acabaram gerando alguns
modismos perigosos. Do pudor exagerado, fomos parar nessa onda de culto
ao corpo, que marcou a década seguinte e se estende até os nossos dias.
Tornou-se obrigatório enrijecer músculos, colocar o esqueleto no prumo,
eliminar completamente qualquer gordurinha... enfim, a ditadura do
Índice de Massa Corpórea. E a tão cantada liberdade sexual aumentou a
incidência de doenças sexualmente transmissíveis e, nos anos 1980, com o
surgimento do vírus da AIDS, o perigo passou a ser mortal...
-- Imagine, mãe! – interrompeu Lilian – Ninguém mais morre de AIDS hoje
em dia.
-- Você é que pensa, minha filha. AIDS pode ser morte em vida. Obriga o
infectado a uma vida cheia de limitações e de remédios. Não é fácil,
não.
-- A minha geração – protestou Lilian, engolindo um biscoito que ela
enchera de Nutella – está mais pra média de tudo isso. No meu colégio
mesmo tem um grupo de meninas que são chamadas de feministas radicais.
Elas não querem nem saber se são gordas ou magras. Elas querem ter saúde
e ser felizes. Isso não passa por se matar em dietas ou arrebentar os
tendões numa malhação neurótica.
-- Sim – disse Leonor – Creio que a sua geração procura uma
conscientização plena de ser mulher. Ter saúde e sintonia entre a
cabeça, o coração e o sexo. Depois de milênios de repressão sexual está
sendo difícil para as mulheres, aquelas cujas antepassadas faziam amor
no escuro e de camisola, morrendo de vergonha de seu próprio corpo,
perceber que gostar do próprio corpo é algo mais complexo do que
simplesmente torna-lo bonito por fora.
-- Assisti a uma palestra – disse Beth – no meu grupo de ioga, de um
médico espetacular. Foi o criador do primeiro ambulatório de sexualidade
num hospital público brasileiro. Ele diz que, para entender o mecanismo
dessa prazer que por tanto tempo foi negado ao nosso sexo, é preciso
antes conhecer o caminho que nós, mulheres, percorremos na elaboração da
nossa sexualidade. Tem quem pense que a sexualidade só aparece na
adolescência, mas ela está conosco desde a primeira infância e tem quem
vá mais longe e diga que ela está conosco já na vida intrauterina. Mas o
que ele colocava é que a atitude dos pais é fundamental no
desenvolvimento da sexualidade; não só o modo como pai e mãe se
relacionam em termos afetivos e o jeito com que eles lidam com o corpo
dos filhos, desde recém-nascidos, são decisivos.
Aquela fala de sua mãe, fez com que Lilian se lembrasse do que lera num
blog de uma amiga. Era a reprodução de uma outra fala, de uma médica
muito conhecida e badalada na mídia. Imediatamente, sacou seu celular e
foi procurar a informação.
-- Sempre com a cara metida nesse telefone!! – protestou Beth. – Nada
contra a informática, tudo a favor, mas tudo contra o fanatismo e o
vício!
-- Mãe, vê se não enche. Estou procurando justamente um texto pra
complementar o que você estava dizendo. Achei... olha só! E começou a
ler:
“Começamos a despertar para o nosso corpo muito cedo. Já no tempo das
fraldas, tateamos os órgãos genitais para conhece-los. Depois, entre os
4 e 5 anos, vem a fase das brincadeiras de médico, nada mais do que uma
forma de nos enxergarmos no outro. Tais atitudes são parte do
desenvolvimento sadio da criança. Antes do 7 anos já está formada a
nossa identidade sexual. Sempre sob intensa influência dos pais. A
menina tenta imitar a mãe, mas a presença de uma figura masculina é
muito importante para que, quando adulta, possa ter um bom
relacionamento afetivo com seu parceiro, ou parceira. Dos 7 aos 9 anos
aparecem os caracteres sexuais secundários. Na menina, modelam-se as
curvas, a cintura fina, os quadris arredondam por deposição de gordura.
A bacia se alarga tanto quanto os ombros, as coxas ficam roliças, as
mamas crescem, surgem os pelos nas axilas e, depois, recobrem a vulva.
Entre os 10 e os 12 anos aparece a primeira menstruação. Estamos virando
mocinhas e isso pode assustar...”
-- Bem, vovó – arrematou Lilian ao terminar a leitura – isso não mudou
nunca, né? Nem na Idade Média, com a vitória dos cristãos sobre os
bárbaros, nem nos anos 1960, com a tal da revolução de costumes, né?
Leonor riu:
-- Não. O físico é o físico. Mas o que muda é a maneira como se encara o
físico, como a sociedade e a cultura veem esse desenvolvimento natural.
Quando os cristãos (e outras religiões também, é bom que se diga)
inventaram o pecado e esse pecado estava depositado no corpo da mulher,
todo esse desenvolvimento sexual precisava ser escondido, abafado,
ignorado. Ao descobrir a excitação, o prazer do toque em seu próprio
corpo, as meninas eram levadas a pensar que aquilo era coisa do demônio,
que deveriam lutar contra aquilo. Essa é a diferença.
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