Contracepção: ninguém nos deu de
presente…
Na década de 1910 uma enfermeira americana, de Nova Iorque, sofreu
bárbaras perseguições, foi presa várias vezes e teve até que se exilar
por um ano na Inglaterra, longe de seu marido e filhos. Seu nome era
Margaret Sanger e a causa de tanto sofrimento era a sua luta para que
todas as mulheres tivessem o direito de ter apenas os filhos que
desejassem ter. Margaret divulgava informações sobre contracepção e foi,
por isso, acusada pela puritana sociedade dos EUA de estar divulgando
material pornográfico.
Naquele tempo, as mulheres morriam aos montes, por causa dos partos ou
por causa dos abortos. Não havia, é claro, pílula anticoncepcional e as
únicas maneiras de se evitar filhos eram a abstinência sexual, o coito
interrompido ou as primitivas camisinhas. Os homens não estavam
dispostos a ceder um milímetro do seu prazer, gozando fora ou usando as
tais camisinhas, para evitar que as suas mulheres fossem (como
efetivamente o eram) expostas a seguidas e nem sempre desejadas
gravidezes. Ou pior: seguidos e nem sempre desejados abortos
clandestinos.
Margaret queria ensinar a elas, pelo menos, a usar a famosa tabelinha
dos dias férteis e evitar relações sexuais nesses dias. A nossa heroica
enfermeira dizia que nenhuma mulher poderia ser livre enquanto não
mandasse no seu próprio corpo.
Pílula Anticoncepcional: coisa de mulher, obra de mulher
Pouco se comenta, mas a invenção da pílula também se deve à Margaret
Sanger. Ela sabia que, no México, existia uma planta que, segundo as
mulheres rurais daquele país, tinha efeitos contraceptivos. Comentou com
a bióloga (e milionária) Katherine McCormick e, juntas, começaram a
procurar pesquisadores que se dispusessem a trabalhar nisso. Encontraram
o famoso Pincus e o resto da história todo mundo sabe; o que poucos
sabem é que sem o investimento pesado da milionária Katherine, a
pesquisa que resultou na pílula não teria acontecido... Quando a pílula
anticoncepcional foi liberada nos EUA, tanto Margaret quanto Katherine
já estavam com mais de 80 anos de idade.
Vítimas do próprio corpo
Hoje, quase cem anos depois da luta dessas nossas antepassadas,
ainda não podemos dizer que mandamos no nosso corpo, que somos livres.
Na verdade, a maioria das mulheres tem sido vítima de seu corpo.
Apesar das inúmeras conquistas da ciência médica, da nossa atual
longevidade, dos muitos e muitos métodos anticoncepcionais que estão
disponíveis no mercado, nós, mulheres, ainda desconhecemos o
funcionamento dos nossos órgãos reprodutivos, ainda estamos cheias de
preconceitos e tabus quanto às nossas feminilidade e sexualidade. Com
raras exceções, temos sido absolutamente ignorantes do preço que a
natureza nos cobra pelo dom de gerar filhos. Séculos de repressão sexual
nos fazem, ainda, ter uma visão distorcida do sexo e até mesmo da
maternidade.
Ignorantes do funcionamento da sensacional máquina reprodutiva que é o
corpo feminino, ignorantes da extrema importância da função social da
maternidade, ignorantes das influências dos hormônios sexuais até mesmo
no comportamento, nós continuamos vítimas do nosso corpo.
Quantas mulheres, nesse momento, não estão sofrendo de cólicas, de TPM,
de dor de cabeça menstrual? Quantas não estão angustiadas por uma
gravidez indesejada? Quantas não estão morrendo por abortos clandestinos
ou provocados por medicamentos? Quantas não estão descobrindo, às vezes
tardiamente, uma doença que poderia ter sido prevenida?
Todos esses sofrimentos podem e devem ser evitados. Para isso basta, com
o auxílio de um bom médico, tomar as rédeas de seu próprio corpo.
Nós precisamos usufruir de tudo o que a ciência médica conquistou. Mas
nunca faremos isso enquanto nos envergonharmos de nossos corpos,
enquanto acreditarmos nos velhos tabus sexuais, enquanto não formos
senhoras de nossa própria sexualidade. Não seremos livres, nem felizes,
como dizia Margaret Sanger, enquanto não formos donas absolutas de
nossos corpos.
Isabel Fomm de Vasconcellos é
escritora e é jornalista especializada em saúde. isabel@isabelvasconcellos.com.br
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