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De Oscar Wilde à Ricky Martin por Isabel Vasconcellos, matéria publicada na revista Aimé em Maio 2010 |
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Enquanto as novelas da Rede Globo de Televisão tentam (e nem sempre conseguem) denunciar e contribuir para a superação dos preconceitos e dos mitos que assolam a nossa sociedade, sempre aparece alguém para dizer alguma “pérola”, como a declaração do piloto de stock car que disse – a propósito do personagem Gerson, da novela Passione – que um piloto de stock car gay é uma coisa “fake demais”. Não bastasse ter dito uma bobagem desse tamanho, o infeliz do rapaz ainda declarou que não tem preconceito com relação à homossexualidade.
Pois é. Tem muita gente que acredita não ter preconceito e vive escorregando em declarações e atitudes preconceituosas. Não é diferente – a despeito do esforço das novelas globais – com a televisão. No Brasil, a TV infelizmente é um grande reforço nas ideias equivocadas sobre gênero e sexualidade. Manoel Carlos, autor de algumas das mais bem sucedidas novelas da TV, afirmou à Revista Veja que hoje é possível retratar casais homossexuais sem chocar o público.
Evidentemente, enquanto chocava, a TV se abstinha de tocar no assunto. É uma interação delicada: a TV avança na medida em que a sociedade também avança e, então, quando um assunto tabu chega à TV isso acontece porque a maioria da sociedade já superou ou está superando o tabu. A TV não é vanguarda. Ela assume a evolução que já tomou conta de alguns grupos da sociedade e então passa a influenciar a minoria ainda resistente à mudança.
Em “A TV no Armário”, livro recentemente lançado pelas edições GLS, Irineu Ramos Ribeiro, analisa , com base teórica na filosofia de Michel Foucault, a história do movimento gay e a maneira pela qual os programas humorísticos, as novelas e até os noticiários televisivos ajudam a reforçar o preconceito contra os homossexuais, embora as emissoras se esforcem por ser politicamente corretas.
O planeta, também infelizmente, está longe de aceitar a homossexualidade como uma condição humana e nada mais.
Em 37 países da África ser homossexual é viver fora da lei, a exemplo do que acontecia também em muitos países do Ocidente há menos de duzentos anos passados. Ninguém, que conheça a história da repressão aos gays, deixa de se espantar com os ingleses mandando para a cadeia o grande gênio da literatura, Oscar Wilde.
Enquanto as mocinhas dos anos 1950, românticas e ainda casadoiras, suspiravam pelo galã de cinema Rocky Hudson, o agente dele, lá em Hollywood, arrumava um casamento de fachada para que ninguém suspeitasse que aquele homem lindo e machão era gay.
Quase sessenta anos depois, o cantor porto riquenho Ricky Martin declara que assumir a sua homossexualidade foi uma das melhores coisas que fez na vida, aos 38 anos. Meio tarde, mas antes tarde...
No Brasil, entre os mais jovens, o preconceito parece superado. Nenhum garoto ou garota de 16 anos se importa mais com a condição sexual de seus amigos ou de qualquer pessoa, na verdade. Enquanto os gays entrevistados na última Parada do orgulho Gay, realizada no ano passado em São Paulo, que tinham mais de 30 anos diziam estar ali pela militância, pela luta contra a discriminação, os adolescentes afirmavam que estavam ali para se divertir.
Há quase cem anos, já se ouvia muita gente importante se perguntando que diferença faria na vida de todos nós a atitude sexual de alguém? Por que razão existe uma enorme repressão à homossexualidade? Em que os homossexuais incomodam tanto para terem sido tão reprimidos e odiados ao longo da história?
Estudei muito a repressão sexual da mulher. Hoje tenho consciência de que a maioria dos repressores sexuais leva uma vida sexualmente insatisfatória.
A necessidade social de reprimir a homossexualidade deriva, na minha maneira de ver, da negada bissexualidade de todos nós. Ao longo da história surgiram personalidades corajosas que viveram sua bissexualidade sem maiores problemas, fosse a sua primeira opção a hetero ou a homossexualidade. A escritora Anais Nin e o compositor Cole Porter são exemplos clássicos disso.
Enquanto na África do Sul lésbicas são estupradas por homens que acreditam poder “converte-las” à heterossexualidade através do ato violento, aqui no Brasil a geração mais jovem acha ridículo tomar qualquer atitude que vise afirmar ou diferenciar a condição sexual de cada um: se é o que se é e pronto.
Apenas dois séculos separam Ricky Martin de Oscar Wilde. E apenas um oceano separa o Brasil da África. Ainda temos muito caminho a percorrer.
Isabel Vasconcellos é escritora e apresentadora de rádio e TV, atualmente com o programa Sexo Sem Vergonha na Rádio Tupi AM de São Paulo.
Subsídios retirados de outras fontes para redigir essa matéria:
Uma pesquisa feita pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e de Campinas (Unicamp) tem os números: aos 18 anos, 95% dos jovens já se declararam gays. A maior parte, aos 16. Na geração exatamente anterior, a revelação pública da homossexualidade ocorria em torno dos 21 anos, de acordo com a maior compilação de estudos já feita sobre o assunto. À frente do levantamento, o psicólogo americano Ritch Savin-Williams, autor do livro The New Gay Teenager (O Novo Adolescente Gay), resumiu a VEJA: "O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural". Os jovens que aparecem nas páginas desta reportagem, que em nenhum instante cogitaram esconder o nome ou o rosto, são o retrato de uma geração para a qual não faz mais sentido enfurnar-se em boates GLS (sigla para gays, lésbicas e simpatizantes) - muito menos juntar-se a organizações de defesa de uma causa que, na realidade, não veem mais como sua. Na última parada gay de São Paulo, a maior do mundo, a esmagadora maioria dos participantes até 18 anos diz estar ali apenas para "se divertir e paquerar" (na faixa dos 30 o objetivo número 1 é "militar"). A questão central é que eles simplesmente deixaram de se entender como um grupo. São, sim, gays, mas essa é apenas uma de suas inúmeras singularidades - e não aquela que os define no mundo, como antes. Explica o sociólogo Carlos Martins: "Os jovens nunca se viram às voltas com tantas identidades. Para eles, ficar reafirmando o rótulo gay não só perdeu a razão de ser como soa antiquado". Ícone desses meninos e meninas, a cantora americana Lady Gaga os fascina justamente por ser "difícil de definir o que ela é". São marcas de uma geração que, não há dúvida, é bem menos dada a estereótipos do que aquela que a precedeu. Diz, com a firmeza típica de seus pares, a estudante paulista Harumi Nakasone, 20 anos: "Nunca fiz o tipo masculino nem quis chocar ninguém com cenas de homossexualidade. Basta que esteja em paz e feliz com a minha opção". Em 1993, uma aferição do Ibope cravou um número assustador: quase 60% dos brasileiros assumiam, sem rodeios, rejeitar os gays. Hoje, o mesmo porcentual declara achar a homossexualidade "natural", segundo um novo levantamento com 1 500 adolescentes de onze regiões metropolitanas, encabeçado pelo instituto TNS Research International. O mesmo estudo dá outras mostras de como a maior parte dos jovens brasileiros já se conduz pela tolerância em vários campos: 89% acham que homens e mulheres têm exatamente os mesmos direitos e em torno de 80% se casariam com alguém de outra raça ou religião. "À medida que as pessoas se educam e se informam, a tendência é que se tornem também mais intransigentes com o preconceito e encarem as questões à luz de uma visão menos dogmática", diz a psicóloga Lulli Milman, da Uerj. Foi o que já ocorreu em países de alto IDH, como Holanda, Bélgica e Dinamarca. Lá, isso se refletiu em avanços na legislação: casamentos gays e adoção de crianças por parte desses casais são aceitos há anos. No Brasil, onde não há leis nacionais como essas, a apreciação fica sujeita a cada tribunal. Nas Forças Armadas, onde a aversão a gays sempre se pronunciou em grau máximo (apesar de o regimento interno repudiar a perseguição aos homossexuais), a diferença é que, agora, quando surge um caso desses entre os muros do Exército, o assunto logo suscita indignação. Ocorreu com um general que, neste ano, veio a público posicionar-se contra a presença de gays nas Forças Armadas. Sob pressão, precisou retratar-se. Recentemente, o lutador de vale-tudo Marcelo Dourado, 38 anos, surgiu no programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, dizendo que "homem hétero não pega aids". Além de uma bobagem, a declaração foi tachada de preconceituosa - e a Globo precisou ocupar seu horário nobre com as explicações do Ministério da Saúde sobre o tema. Mesmo que às vezes usados como bandeira por bandos de militantes paparicados por políticos em busca de votos, pode-se dizer que tais episódios apontam para uma direção positiva. Afirma o filósofo Roberto Romano: "A experiência mostra que o desconforto com o preconceito cria um ambiente propício para que ele vá sendo exterminado". Segundo um estudo americano, conduzido pela Universidade Estadual de São Francisco, jovens gays que convivem em harmonia com os pais raramente sofrem de depressão, doença comum entre vítimas de preconceito. Para esses jovens, o conceito de tribo perdeu o valor, como chamou atenção o antropólogo americano Ted Polhemus, por meio de suas pesquisas. Ele apelidou essa geração de "supermercado de estilos" - ou só "sem rótulos". Nesse contexto, não há mais lugar para algo como o grupo em que apenas ingressam os gays ou os negros, algo que as escolas brasileiras já ecoam. Antes fonte de tormento para alunos homossexuais, alvo de piadas, quando não de surras e linchamentos, o colégio se tornou um desses lugares onde, de modo geral, impera a boa convivência com os gays. Um sinal disso é que a ocorrência de casos de bullying por esse motivo tem caído gradativamente. "É também mais comum que eles andem de mãos dadas no recreio, sem ser importunados, ou que se tornem líderes de turma", conta a pedagoga Rita de Cássia, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Os próprios colégios reconhecem que, no passado, conduziam a questão à sombra de certo preconceito. "Se surgia um aluno gay, tratava-se imediatamente o assunto como um problema, e os pais eram logo chamados", lembra Vera Malato, orientadora no Colégio Bandeirantes, em São Paulo. "Hoje a postura é apenas dar orientação ao aluno se for preciso." Para boa parte dos jovens gays de hoje, a vida subterrânea nunca fez sentido. Diz o produtor de moda carioca Victor Guedes, 19 anos: "Desde que ficou claro para mim que meu interesse era pelo sexo masculino, não pensei em esconder isso dos meus pais. Só esperei a hora certa para abrir o jogo, com todo o tato". É gritante o contraste com as gerações anteriores, às quais lança luz o livro Cuidado! Seu Príncipe Pode Ser uma Cinderela (a ser lançado pela editora Best Seller), das jornalistas Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo. O conjunto de depoimentos ali reunido revela o sofrimento diário enfrentado por políticos, diplomatas e figurões do mercado financeiro que nunca saíram do armário. Entre as produções de maior sucesso, figuram o seriado americano Glee, que tem como um dos protagonistas um adolescente recém-assumido gay para o pai, e The L Word, sobre um grupo de lésbicas atraentes e chiques de Los Angeles. Nas novelas brasileiras, os homossexuais já não são mais tratados de maneira tão caricatural. "É possível exibir na TV a vida comum de casais gays sem que isso provoque a rejeição do público, como no passado. Hoje, esses personagens fazem o maior sucesso", analisa Manoel Carlos, autor da atual novela das 8, Viver a Vida. Isso não só ajuda a levantar o diálogo sobre a homossexualidade em casa como ainda minimiza a resistência a ela. O rol de celebridades que se assumem gays também cumpre, em certo grau, esse papel. O último a deixar o armário foi o cantor porto-riquenho Ricky Martin, autor do sucesso Livin’ la Vida Loca, que, aos 38 anos, declarou ser gay em tom profético: "Hoje aceito minha homossexualidade como um presente que a vida me deu". Durante as trevas da Inquisição, arremessavam-se os gays à fogueira. Na Inglaterra do século XIX, eles eram considerados nada menos que criminosos. Em 1895, num dos mais famosos julgamentos de todos os tempos, o escritor irlandês Oscar Wilde, homossexual assumido, foi acusado de sodomia e comportamento indecente. Penou dois anos na prisão. |