Sexta-feira, 5 de janeiro de 1979 –
meia
noite
Noite dessas, agarrada à fuselagem de um jato, eu sobrevoava o Parque
Ibirapuera, irritada por estar, mesmo em tão estranha circunstância –
agarrada entre as asas de um avião --- outra vez sobre o Museu de Arte
Moderna de São Paulo.
Pensava:
vou cair. E, realmente, o avião fez um looping e eu cai. Então pensei:
vou morrer. Não há chance de escapar. Então, se vou morrer quero curtir
esse derradeiro voo. E curti. Flutuava, a cidade lá embaixo, eu
flutuava, deliciosamente. Poucas sensações físicas foram tão boas quanto
essa sensação de flutuar.
Mas, a
poucos metros do chão apareceu-me um cesninha preto e vermelho. O piloto
gritava para mim, fazendo piruetas – uma espiral – em torno da linha da
minha queda. E, gritando, explicou-me que estava criando um vácuo para
mim. Disse-me que me agarrasse ao lençol e, lençol por paraquedas,
associado ao tal misterioso vácuo que seu voo criava, eu aterrissaria
sem danos.
Assim
foi. E acordei com a sensação de não ter mais nenhuma preocupação nesse
mundo. Era apenas um voo, uma incrível e azul – terrivelmente azul –
flutuação.
9 de junho de 1980 Quase meia noite.
Segunda feira fria.
Minha
dor só teria sentido se identificada com essa dor maior, de todas as
mulheres. Como a dor de todas as minorias. Como a dor de quem quer
nascer e não pode.
A minha
dor é enorme.
Mas me mantém viva.
E
procuro, desesperadamente, aquelas que não têm medo de identificar-se
com ela, essa dor. Aquelas que são Bruxas, Iansãs, Feiticeiras.
As que não constroem seu Universo em função de um homem. As que não são
escravas, mas que querem apenas alguém capaz de acompanhar-lhes o mundo,
assim como elas são capazes de acompanhar-lhes o mundo.
O mundo
das feiticeiras é rico em sensibilidade, amor, intuição.
Mas há poucos bruxos no mundo.
Há
poucos – homens e mulheres – corajosos no mundo.
Gente
não entorpecida pelo jogo idiota e imposto: conquista de status...
Financeiro ou intelectual. Apenas status. Nenhum conteúdo.
Há
poucas cabeças dispostas a investigar o Universo. Há gente capaz, ainda,
de pensar.
E a minha dor, de repente, quase não encontra eco.
15 de agosto de 1980
O Secreto
La vai ele, meu filho, cuidado.
Muito cuidado, meu filho,
Com o homem do terno escuro.
Ele cheira bem, veste bem,
Mas lá dentro, meu filho,
Lá bem dentro do corpo
Do homem de terno escuro,
Tudo lentamente apodrece e,
Como o terno, escurece.
Os sentimentos há muito lhe morreram
E só há vermes lá dentro, filhinho,
Só há vermes no peito
Do homem de terno escuro.
Obedece, esse homem à ordem
De outros homens de ternos
Não tão escuros. Não tão claros.
Esse homem limpo, elegante,
Que até parece com a gente,
Não enxerga muito bem, não.
À sua frente não vê o que,
Pra ti, é mais que visível.
Não percebe sorrisos;
Não percebe mãos,
Não percebe o brilho
Que ainda existe
Nos olhos da rua.
O homem de terno escuro,
Meu nego, só ameaças vê:
Tem medo do povo;
Pavor da multidão;
Horror do enfarte;
Medo do amor.
O amor, meu filho,
Para o homem de terno escuro,
É um perigo. O amor não dá futuro.
E o homem do terno escuro
Segue o rastro do dinheiro.
Pois acredita— veja se é possível —
Que um dia vai comprar a paz com ele.
O homem de terno escuro, meu filho,
Acredita que a paz está
Neste calar por inteiro.
Nesta omissão.
Nesta ausência de discussão, de luta.
Pobre homem, esse homem do terno escuro.
Tudo resolve na força bruta.
O que não resolve, censura.
Não quer ouvir nada
Esse homem do terno escuro.
Tem medo da palavra,
Asco à poesia, horror ao ideal.
Tão grande e imponente,
O homem do terno escuro,
Até parece que sente. Mas
Não há alegria, acredite: não há,
Na vida do homem do terno escuro.
Devemos ser compreensivos,
Indulgentes, tolerantes.
Vai ver, nunca houve alegria pra ele.
E ele segue, louco, tentando abafar
As tentativas— tantas — de semear
Um pouco dessa coisa esquecida.
Porém, cuidado. Nada de indispor-se
Com o homem do terno escuro.
Porque, senão, ele te pega, te mata,
Te incendeia. Não deixa, meu filho,
Não deixa saber o homem do terno escuro
Que você tem ideias,
Que pretende construir qualquer coisa
Melhor que isso. Não deixa.
Por que, se deixar, ele vai te rasgar.
Vai furar os olhos de teus bonecos,
Empastelar tuas distrações.
Destruir-te as ilusões.
É preciso cuidado com
O homem do terno escuro.
O homem do terno escuro
Escuro é também por dentro.
30 de agosto de 1980
Sopro
O fabuloso edifício da minha segurança,
Estruturado sobre essa cabeça calejada,
Alicerçado na minha ternura
– a duras penas reconquistada –
Erguido sobre um amor
Quase tão velho quanto eu,
Assegurado pela confiança de séculos
E pela certeza de braços abertos
Do outro lado da estrada...
O monstruoso edifício da minha segurança
Acaba de ruir com um barulhão dos infernos.
E o sol que bate, forte, sobre os escombros
Do tortuoso edifício da minha segurança
Multiplica seus raios de luz
Refletidos em tantos espelhos partidos,
Tantas janelas destruídas e
Nas portas sem mais sentido.
Ficou uma imensa bagunça onde estava
O trabalhoso edifício da minha segurança.
Frágil edifício. Abalado e derrubado
Por um desses ventos passageiros.
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