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(Michel Serre, 1721, A Praga em Marselha)

Dias de um Confinamento

por Maria José Silveira

 

Sábado, 14 de março, primeiro dia.

 

Manhã. Céu azul, sol exuberante. Antes de começar meu auto confinamento, não resisto a dar pelo menos uma volta pelo quarteirão. Talvez tolamente, saio com a máscara pendurada nas orelhas. Não tinha intenção de usá-la, orientações de saúde pública afirmam que elas são úteis apenas para os já infectados não infectarem outros. Mas vai que. Saí. Menos pessoas nas ruas, e mesmo assim, de repente, me vi tentando passar longe delas.

 

Embaraçoso. Caminhar preocupada em manter um metro de distância de alguém como eu. Maneira horrível de caminhar.
Um cara vem oposto a mim, aperta o nariz para escarrar e sacode o catarro com as mãos. Mudo de calçada. Passo por um grupo de mães e babás com seus bebês. Uma delas assoava o nariz. Distancio-me. Um senhor de máscara atravessando a rua mais à frente me faz outra vez mudar de calçada. No boteco da esquina, quatro ou cinco velhinhos coreanos conversam ao redor de uma mesinha ao ar livre, bebendo chá ou café ou outra coisa, e outra vez, mesmo hesitando, mudo de calçada.
Que ziguezague esdrúxulo!
Logo eu que gosto de caminhar despreocupada, ver o que há de interessante por onde ando ou tão só deixando os pensamentos livres. Ou, como um exótico joão-de-barro indo atrás de palavras da rua para construir sua casa, gosto de escutar fragmentos de conversas. Tenho uma série de pequenos textos escritos a partir de alguma frase “Entreouvida na rua” (esse o título da série). Acho divertido. Aliás, achava. Com esse cuidado todo, essas distâncias, como escutar alguém?
Que graça tem caminhar como se estivesse em um terreno minado onde as minas fossem, para mim, os outros, e para eles, eu?
Não quero ser essa pessoa-mina. Melhor voltar ao meu confinamento.

Décimo dia
Estive lavando as frutas que Felipe comprou. Frutas com casca que podem ser lavadas e esfregadas com água e sabão, seguindo as orientações.
Frutas costumam ser bonitas. Momento ideal para reparar em suas cores. Goiabas esverdeadas. Peras em tons distintos de verde, mostrando às vezes manchas douradas ou mesmo avermelhadas. Mamões começando a mostrar seus amarelos, os dois menores prestes a adquirir o amarelo-mostarda da madurez. Mangas – a fruta que mais gosto – mostrando, cada uma, sua combinação diferenciadas de verde escuro e claro, amarelo claro escurecendo para chegar aos vermelhos que vão do rosado ao carmim: lindas! Limões sem maiores graças, apesar dos tons de verde esmaecido. Laranjas alaranjadas, fiéis a sua cor, no que fazem muito bem, acho. E os kiwis?
Olho pra cara deles. Lavo ou não essas feiurinhas peludas?
Claro! por que discriminá-los? Água e sabão neles.
À tarde fatiarei a manga rajada de vermelhos, a mais bonita.
Penso que mereço.

Quinquagésimo dia
Como se conta o tempo quando os dias são feitos com a matéria indiferente do isolamento? Das distâncias entre os corpos? Das máscaras, luvas, calças e mangas compridas mesmo para tomar sol em canto onde o único corpo humano seja o nosso? Das noites vazadas na frente de uma tela com imagens em movimento neste momento impossíveis? Do cotidiano que ficou lá atrás sem poder entrar aqui dentro? Da chegada de um futuro que talvez seja pior do que o desnaturado presente? Como se conta o tempo quando os dias são feitos com a matéria obsedante das mesmas notícias, dos mesmos assuntos, e quando o amanhã não será outro dia mas outra vez o mesmo dia, com as notícias falando, ainda que de formas diferentes, da mesma necropolítica dos sempre inacreditáveis atos e afirmações desse desgoverno?

Centésimo dia
E assim chegamos a 100 dias de confinamento: 51 407 mortos e 1.111.348 infectados, com a subnotificação de praxe. E como chegamos? Mal, muito mal. Com um terceiro ministro da saúde, agora militar, que nada entende de saúde, muito menos de um vírus como esse.
Quanto a mim e minha impotência, esta semana tenho o firme propósito de não me deixar guiar por tantos males. Faço o que me cabe fazer: escrevo, lavo e passo (cuidado, fakenews!, não se passa mais roupa nesta casa), me fidelizo à ginástica. Nem olho o movimento da rua para não me chatear.
Espero chegar ao milésimo dia bem melhor.
Será??
A destruição paulatina do país nos destrói também.


Obs. Estes são excertos do meu diário “Impressões erráticas de um confinamento”, que você pode ver completo no blog mariajosesilveira.wordpress.com