Embaraçoso. Caminhar preocupada em manter um metro de distância de
alguém como eu. Maneira horrível de caminhar.
Um cara vem oposto a mim, aperta o nariz para escarrar e sacode o
catarro com as mãos. Mudo de calçada. Passo por um grupo de mães e babás
com seus bebês. Uma delas assoava o nariz. Distancio-me. Um senhor de
máscara atravessando a rua mais à frente me faz outra vez mudar de
calçada. No boteco da esquina, quatro ou cinco velhinhos coreanos
conversam ao redor de uma mesinha ao ar livre, bebendo chá ou café ou
outra coisa, e outra vez, mesmo hesitando, mudo de calçada.
Que ziguezague esdrúxulo!
Logo eu que gosto de caminhar despreocupada, ver o que há de
interessante por onde ando ou tão só deixando os pensamentos livres. Ou,
como um exótico joão-de-barro indo atrás de palavras da rua para
construir sua casa, gosto de escutar fragmentos de conversas. Tenho uma
série de pequenos textos escritos a partir de alguma frase “Entreouvida
na rua” (esse o título da série). Acho divertido. Aliás, achava. Com
esse cuidado todo, essas distâncias, como escutar alguém?
Que graça tem caminhar como se estivesse em um terreno minado onde as
minas fossem, para mim, os outros, e para eles, eu?
Não quero ser essa pessoa-mina. Melhor voltar ao meu confinamento.
Décimo dia
Estive lavando as frutas que Felipe comprou. Frutas com casca que podem
ser lavadas e esfregadas com água e sabão, seguindo as orientações.
Frutas costumam ser bonitas. Momento ideal para reparar em suas cores.
Goiabas esverdeadas. Peras em tons distintos de verde, mostrando às
vezes manchas douradas ou mesmo avermelhadas. Mamões começando a mostrar
seus amarelos, os dois menores prestes a adquirir o amarelo-mostarda da
madurez. Mangas – a fruta que mais gosto – mostrando, cada uma, sua
combinação diferenciadas de verde escuro e claro, amarelo claro
escurecendo para chegar aos vermelhos que vão do rosado ao carmim:
lindas! Limões sem maiores graças, apesar dos tons de verde esmaecido.
Laranjas alaranjadas, fiéis a sua cor, no que fazem muito bem, acho. E
os kiwis?
Olho pra cara deles. Lavo ou não essas feiurinhas peludas?
Claro! por que discriminá-los? Água e sabão neles.
À tarde fatiarei a manga rajada de vermelhos, a mais bonita.
Penso que mereço.
Quinquagésimo dia
Como se conta o tempo quando os dias são feitos com a matéria
indiferente do isolamento? Das distâncias entre os corpos? Das máscaras,
luvas, calças e mangas compridas mesmo para tomar sol em canto onde o
único corpo humano seja o nosso? Das noites vazadas na frente de uma
tela com imagens em movimento neste momento impossíveis? Do cotidiano
que ficou lá atrás sem poder entrar aqui dentro? Da chegada de um futuro
que talvez seja pior do que o desnaturado presente? Como se conta o
tempo quando os dias são feitos com a matéria obsedante das mesmas
notícias, dos mesmos assuntos, e quando o amanhã não será outro dia mas
outra vez o mesmo dia, com as notícias falando, ainda que de formas
diferentes, da mesma necropolítica dos sempre inacreditáveis atos e
afirmações desse desgoverno?
Centésimo dia
E assim chegamos a 100 dias de confinamento: 51 407 mortos e
1.111.348 infectados, com a subnotificação de praxe. E como chegamos?
Mal, muito mal. Com um terceiro ministro da saúde, agora militar, que
nada entende de saúde, muito menos de um vírus como esse.
Quanto a mim e minha impotência, esta semana tenho o firme propósito de
não me deixar guiar por tantos males. Faço o que me cabe fazer: escrevo,
lavo e passo (cuidado, fakenews!, não se passa mais roupa nesta casa),
me fidelizo à ginástica. Nem olho o movimento da rua para não me
chatear.
Espero chegar ao milésimo dia bem melhor.
Será??
A destruição paulatina do país nos destrói também.
Obs. Estes são excertos do meu diário “Impressões
erráticas de um confinamento”, que você pode ver completo no blog
mariajosesilveira.wordpress.com
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