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(Artemisia Gentilieschi, 1650, Alegoria da Retórica)

 

 

... de certa forma, a literatura está sempre falando de demônios...

 

 

 

 

 

 

Penso hoje que talvez seja mesmo por isso que é de fato quase impossível para um escritor viver sem escrever. Escrever, de alguma misteriosa maneira, apazigua nossos demônios.

 

Sobre os Demônios da Escrita
Maria José Silveira
 


Escritores gostam de dizer que não poderiam viver sem escrever.
Antes de me tornar escritora, achava um senhor exagero alguém dizer isso.
 

Foi com surpresa que algum tempo depois de ter começado eu a lidar cotidianamente com o mundo exigente da literatura e da imaginação, comecei a perceber o quão verdadeira essa afirmação pode ser.
 

É algo estranho; não sei explicá-lo bem.
 

Alguns dizem que, ao escrever, você põe seus demônios para fora. Pode ser. Mas não no sentido literal, não que você fale propriamente de seus demônios particulares. Não é isso que um escritor faz. Pelo menos não é isso que eu faço.

 

Mas creio que, de alguma forma, embora não estejamos falando exatamente deles, nossos demônios estão nos espiando enquanto escrevemos. Ou então, ao falar de outros demônios (porque isso também é certo: de certa forma, a literatura está sempre falando de demônios), deixamos de focar nos nossos, o que sem dúvida – ainda que não seja catarse ou algo parecido - acaba sendo um alívio.


Penso hoje que talvez seja mesmo por isso que é de fato quase impossível para um escritor viver sem escrever. Escrever, de alguma misteriosa maneira, apazigua nossos demônios.


Para concretizar melhor o que digo: algum tempo atrás passei por uma grande tristeza, sobre a qual não vem ao caso falar aqui. Durou (e de certa forma vai durar sempre) longos meses, nos quais não me sentia com espírito nem capacidade para a concentração que significa escrever qualquer coisa mais densa e trabalhosa, como um novo romance. Ao mesmo tempo, sabia que, fosse como fosse, para minha saúde mental, era preciso continuar dedicando um tempo do meu dia à escrita.

 

Felizmente, encontrei a saída. Para me desligar da realidade que enfrentava, eu escreveria o que jamais pensei escrever um dia: um romance do gênero fantástico.
 

Gosto muitíssimo de alguns contos e romances da literatura fantástica, entre eles “Macunaíma”, que considero não só uma obra-prima como também o primeiro romance fantástico escrito entre nós. Além disso, sou tremendamente fã das lendas e mitos brasileiros. Comecei, então, a escrever “A Terra sem Males”, juntando em um romance do gênero fantástico vários de nossos mitos e lendas. Com tudo a que um texto desse gênero tem direito: muito sangue, maldade, algumas pitadas de bondade e esperança, algum personagem cômico e, como não poderia deixar de ter, um pouco de magia.
 

Por um par de horas, ao escrevê-lo, eu conseguia me deslocar da realidade em que estava vivendo naquele momento e entrar em uma terra muito distante da minha.
 

Hoje, já finalizado, esse romance ainda não encontrou sua editora. As pessoas que me conhecem como escritora que tende mais ao realismo não esperam de mim um texto assim, e se confundem.

 

Mas aconteceu. E foi ótimo ter acontecido.
 

Então, sim, é verdade: sem lidar com o mundo da imaginação e da linguagem para exorcizar nossos demônios, não me surpreenderia se começássemos - nós, escritores - a sair por aí comendo cabelo.