Uma voz distante daqui |
(Picasso, 1903, O Velho Cantor)
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Não
sei quanto tempo dura, porque volto a adormecer. Lá
fora é uma praça, de fato um largo por onde passa um viaduto, uma grande
avenida, e árvores frondosas nas ruas contornando a pequena praça. Seria
difícil discernir onde está a pessoa dona dessa voz que intuo masculina.
Provavelmente é de um sem-teto, há muitos sem-teto dormindo por aqui.
Seja
como for, seja de onde vem, é linda. Com
certeza um sem-teto, como disse antes. Terá sido cantor?
Imagino a vida que teve, suas alegrias e infortúnios incorporando-se à
sua música e fazendo dela sua forma de se colocar no mundo, de saber
quem é. O dom que hoje ele preserva com mais garra e confiança. É
preciso muita confiança na própria capacidade de produzir beleza para
soltar a voz como ele solta, sabendo que seu auditório é composto por
pessoas que dormem. Confiança para saber que, se não forem completamente
obtusas, reconhecerão não terem sido acordadas em vão. Nos momentos em que o escuto, sempre penso que no dia seguinte procurarei debaixo do viaduto quem, dos que dormem ali, é ele, o dono da voz magnífica.
Direi
o quanto, mesmo em minha sonolência, fico deslumbrada.
Quando o dia amanhece, no entanto, adio essa procura. Talvez querendo
preservar o mistério. Ou pensando que qualquer hora dessas ainda faço
isso. Ou não. Talvez o melhor seja realmente permanecer
bem-aventuradamente ignorante de quem produz esse som encantatório que
voa na madrugada e ajuda a criar a magia possível em uma cidade grande.
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Evaldice Maria Mais uma crônica encantatória. ..