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(Claude Monet, 1882, Pinheiros em Varengeville)

SECURAS
Maria José Silveira

 


Do alto da minha janela, vejo árvores ressecadas carregando a agonia de suas flores morrendo no tempo seco da cidade. Moro aqui há tantos anos, e não sei o nome nem da metade dessas árvores que vejo todo dia. Nunca soube. Parece que brasileiro não é bom em saber nomes de árvores, muito menos em cuidar delas. Ter abundância de uma coisa pode dar nisso: desinteresse. Um mal do país. Das que vejo, só sei o nome da que chamam aqui de primavera e que, na infância, conheci como bougainville, a de flores vermelhas, crescendo frondosa no caramanchão da casa da minha avó. A que vejo daqui também dá flores vermelhas e são, justamente, as que agora amarelecem de sede. Mais à frente, uma grande copa se alteia acima das outras, toda salpicada de folhas amarronzadas, provavelmente prestes a cair, mas não sei seu nome. Como tampouco sei os nomes das outras copas que vejo daqui – nesse arremedo de bosque que foi parte da Mata Atlântica – completamente sem folhas, sustentando seus galhos pelados, arrepiados de constrangimento. A maioria, no entanto, resiste ao inverno, que mais uma vez se enganaram ao dizer que seria muito frio, e apenas amarelecem, mudando os vários tons de verde para um único e feio verde amarelado seco. Só de olhar me sinto também ressecada.
 

E me lembro de uma conversa na juventude com um amigo. “Meu medo”, ele me dizia, “é que a vida me resseque por dentro. Que frustrações, planos e sonhos que deram errado me deixem seco”. Lembro as palavras e do local onde estávamos esperando alguém, um corredor desses feitos com tijolinhos abertos no centro para deixar a iluminação passar, comuns em prédios de Brasília, e bem cafonas. Penso nisso, e penso também que não foi o que aconteceu ao meu amigo. Pelo menos até agora. Embora defeitos imperceptíveis na época tenham dado as caras, ouso afirmar que até essa segunda metade de seus sessenta anos, a vida não o ressecou. Da próxima vez que nos encontrarmos, vou lembrá-lo dessa conversa e lhe dizer como foi à toa seu medo de juventude. Se de fato era real aquele medo, suponho que ele gostará de saber.

Suponho também que – não vou dizer “como as árvores”, demasiado clichê, mas como parte que somos da natureza, e aí, sim, talvez pudesse até arriscar um como bichos e árvores – sejamos biologicamente preparados para não ressecar completamente a cada inverno, a cada nova somatória de frustrações, sonhos não cumpridos, desejos abandonados, planos não perfeitamente realizados.
 

Outro dia comentei aqui *a vida curta que parece ser a fatalidade que nos espera, não apenas como indivíduos, mas como espécie. Mas hoje, daqui da minha janela, sei que é também a nossa espécie que nos faz capaz de resistir aos tantos baques e securas que a vida não regateia em nos proporcionar. Não somos como o prado que com o tempo reverdece, como gostava de dizer minha avó, a dona do bougainville. Não reverdecemos, mas podemos pelo menos, como desejava meu amigo, tratar de não secar.

*"Triste Espécie"