2. Pequenas consequências de tolas hesitações
O rap vinha de um radinho
branco apoiado na caixa de engraxate do jovem sentado no banco do
parque. Passei por ele em minha caminhada, gostando do que ele estava
escutando. O parque é pequeno, e ao me aproximar na segunda volta,
reparei nos seus pés sem meias, enfiados nas sandálias japonesas já
finas de tão gastas. O rap continuava, o mesmo som enraivecido. Olha a
incongruência: um engraxate de sandália japonesa nesse primeiro
friozinho na cidade.
Na terceira volta, ele acendia um cigarro provavelmente de maconha,
escutando o rap. Jeito simpático, na dele, tranquilão, olhando as
árvores do parque. Tive vontade de parar para conversar. Mas que ele
fume seu cigarro primeiro. Nas outras voltas, foi aumentando essa
vontade de me sentar logo perto dele e perguntar que rap era aquele, e
coisas mais básicas, tipo onde ele morava, havia estudado?, como é que
era isso ou aquilo, esse tipo de papo que nos leva a conhecer melhor as
pessoas que, embora na contramão, fazem parte de nosso mesmo mundo.
Mas continuei hesitando. Na última volta vi que ele se levantava e
pegava sua caixa de engraxate. Só então apressei meu passo e me
aproximei: “Posso te perguntar uma coisa?” “Claro”, respondeu, jeitão
super acessível. “Que rap é esse que estava tocando?” “Racionais MC”,
respondeu. “Ah, não reconheci”, eu disse. Ele continuou, sorrisão no
rosto: “Tenho tudo dele, curto muito rap. Funk também.” Fez uma pequena
pausa: “Fala da nossa realidade.” “Também acho”, concordei - o que é a
pura verdade. Não sou lá conhecedora do rap, mas gosto dos Racionais,
Mano Brown, Criolo, Sabotage. É um desabafo raivoso da cidade, batida
tensa de revolta e indignação. Som perfeito para dizer com emoção e
clareza que as coisas têm que mudar. Citei-os muitas vezes em meu
romance sobre São Paulo, “Pauliceia de mil dentes”.
Mas voltando à conversa com o rapaz.
Ele teria seus dezesseis anos. Cabelo crespo, moreno, calça de moletom,
casaco vermelho sobre a camiseta. E aquela beleza de sorriso no rosto.
Só que o momento havia passado.
Fiquei chateada comigo mesma. Por que não parei antes? Por que hesitei
por tantas voltas? Achei que ele estivesse drogado? Temi que recebesse
mal minha tentativa de conversa? Por ser um rapaz negro, pobre, um
engraxate sem sapatos?
Ou por respeitar a privacidade dele e sua música, como disse a mim mesma
no começo? Bobagem.
Vamos ser francos.
Certamente foi por algum obscuro conjunto de preconceitos enfiados por
minha goela abaixo, ainda que à revelia. Uma conversa com ele poderia
ter sido instrutiva, interessante e divertida. Foi uma pena perder essa
chance do acaso.
E tanto perdi eu, como também, por tabela, perderam vocês, leitores, que
poderiam estar lendo agora uma crônica muito mais interessante. Como
pequena amostra, vejam só o que ele estava escutando:
“É isso aí, você não pode parar
Esperar o tempo ruim vir te abraçar
Não espere o futuro mudar sua vida
O futuro é consequência do presente.”
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