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		Toda uniformizada de acordo com seu 
		posto como bombeiro civil, 
		ela se afasta do grupo para atender o celular. Está pronta para atuar no 
		evento que começa daqui a pouco, caso seja preciso. Alta, forte, o 
		grosso tecido cinza da blusa de manga comprida e da calça justa contida 
		pelas botas não esconde a musculatura trabalhada para exercer o ofício 
		preferencialmente masculino. Tão masculino que nas costas de seu 
		uniforme está escrito “bombeiro civil” – não há feminismos por aqui, 
		pelo menos por enquanto. Não são todos iguais?
 E armada com a fortaleza de seu corpo, ela não fica devendo a ninguém.
 
 
		Mas ouça só a surpresa. Sua voz soa perdida ao celular:- Mãe, eu não estou mentindo. Não saí pra bagunça. Eu tava trabalhando.
 (Olho de viés para sua postura de filha, ombros levemente curvados. Deve 
		ter seus trinta e, ainda assim, carregar um medinho infantil da mãe.)
 - Não tenho mais idade pra mentir, mãe. Nem tenho por que mentir. Por 
		que eu faria isso?
 (Só a mãe sabe.)
 - A Giovana é uma pessoa e eu sou outra, mãe. Tenho amizade por ela, mas 
		uma coisa é ter amizade com uma pessoa, outra bem diferente é sair com 
		essa pessoa pra bagunça.
 (Argumento muito sensato, achei.)
 - Ela é assim mesmo, mas eu não saio com a Giovana. Só deixo as meninas 
		lá quando tenho trabalho, e mesmo assim deixo sofrendo. A senhora sabe 
		disso. Se eu pudesse, não largava minhas filhas por nada desse mundo. 
		Tenho que trabalhar, mãe. Se não trabalho, não como.
 (Ah, ela também é mãe. E cadê o pai dessas meninas?)
 - O pai não dá nada, nunca deu, a senhora sabe disso.
 (Claro, dava pra adivinhar. Como também a consequência.)
 - Se eu não tivesse meu trabalho, ia ter que morar aí, e então queria 
		ver se a senhora ia ter dinheiro pra sustentar a gente, ia, mãe?
 
		E vejo que duas lágrimas correm pelo 
		rosto daquela fortaleza de mulher.
 (Devo me aproximar para lhe passar um passar um 
		lenço? Melhor não. Nem lenço tenho. E essa fortaleza toda, embora tenha 
		sua brecha, não vai gostar de saber que tem audiência. Deve pensar que 
		está falando baixo. Aliás, a mão de uma pessoa dá muito conta de duas 
		lágrimas, não dá? Dá.)
 Ela passa a mão nos olhos, depois de desligar o celular. Altiva, caminha 
		em direção aos colegas, outra vez pronta. Os companheiros de trabalho – 
		a maioria, homens, e duas ou três mulheres – certamente nada viram nem 
		escutaram, distantes como estão.
 Entre as colegas mulheres, ela é a mais alta e mais forte. Suas coxas e 
		braços esticam ao máximo o tecido grosso do uniforme. Sua postura 
		(bronca e tristeza deixadas para trás) é de grande autoconfiança.
 Se eu fosse participar do evento, e se por acaso acontecesse alguma 
		coisa, seria ela quem eu escolheria para me salvar.
 Não só pela força como também pelas duas lágrimas.
 
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