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por Maria José Silveira

Sou Uma Lady

 

Theodor Rombutus, 1630, Prometeu Acorrentado

 

Mas hoje acordei com a macaca.
Sonhei que meu estômago estava todo enrugado, meus rins começando a ficar grisalhos, meu cérebro envolto em uma membrana cinzenta, fina e ressecada. Horror dos horrores! Culpa de uma campanha de saúde que vi outro dia aterrorizando as pessoas. Algum publicitário sem talento achou de inventar um tal Dia do Rim*, e tive o azar de passar por um cartaz dizendo, “Sabia que seu rim também envelhece?”
Tá falando comigo?!
 

Francamente, que falta de respeito. Claro que nosso corpo todo envelhece. É preciso agora especificar? Dizer que seu rim envelhece, seu coração envelhece, seu fígado envelhece, tudo envelhece, precisa? Fatiando nosso corpo como se ele fosse o quê? Carne bovina?
Péssima peça publicitária bolada por uma mente terrorista.
 

Envelhecer não é nada bom, e quem diz que é, ou é um alienado de si mesmo ou tá querendo mentir tanto para ele como para os outros. Envelhecer é um processo de perdas. É ruim, é difícil, e pior: inevitável.
 

O que nos resta?
Fazer o luto pelo que vamos perdendo, e no caminho tentar com todo empenho enfrentar a coisa e aceitá-la. Aceitá-la com certa serenidade. Serenidade volátil e desafiada toda manhã

quando encontramos mais um pequeno problema e ainda somos obrigados a sentir certo alívio porque o problema, felizmente, não é grande, é pequeno. Vai chegar um dia em que ele será grande, mas por enquanto não, então ainda há tempo de recuperar nossa serenidade. Volátil, sim, mas serenidade. Dá pra conseguir de vez em quando. A duras penas às vezes, mas vá lá, dá.
 

Aceitação é a palavra-chave. Não vamos dourar essa pílula, porque não há como dourar, e é burrice tentar. É mistificação em nome de uma ilusória paz mental. O único conforto que podemos ter é saber que ainda não perdemos tudo, e que felizmente as coisas boas da vida continuam florescendo, e muitas delas ainda estão a nosso alcance. Então, olhamos ao nosso redor e para nós mesmos e dizemos: bem, estou aqui. Cada vez mais chateado com o envelhecimento odioso, mas ainda assim, aqui estou. Hora de ir lá enfrentar o dia, e ver o que ele nos reserva de bom, e que às vezes pode ser até muito bom mesmo. Recuperando, assim, o savoir-vivre, saímos para dar uma volta, curtir a manhã de sol, e se for o caso dar uma passadinha pra ver os netos mas aí, no caminho, encontramos um cartaz avisando que nosso rim envelheceu.
Como é que é?!
 

Com que direito um publicitário que se julga engraçadinho vem perturbar nossa tranquilidade com sua tolice? O que ele pensa que nós somos? Além de tudo, burras? Imagina que a pessoa que envelhece é ignorante a ponto de achar que o único órgão que envelhece é a pele que tem debaixo dos olhos?

 

Fui lá, arranquei o cartaz (felizmente mal colocado), joguei no fundo do lixo, e só não rodei mais a baiana porque sou uma lady.

 

* nota da redação: O Dia Mundial do Rim é celebrado no Brasil pela Fundação Pro Rim e visa conscientizar as pessoas da necessidade de prevenção das doenças renais.