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UMA OUTRA MULHER TRÊMULA[1]

UMA DOENÇA RARA E AS DIFICULDADES QUE ENCONTREI PARA CONSEGUIR O DIAGNÓSTICO

Maria José Silveira

 

(Um depoimento para compartilhar minha experiência com médicos e pesquisadores do Tremor Ortostático, e também com as pessoas que talvez tenham o mesmo problema mas ainda não o diagnóstico.)

 

Fernand Toussaint, O Espelho

Minha saída aqui é começar pelo começo, desculpem o aparente paradoxo. Digo saída no sentido de achar a maneira de ordenar o que vou contar que, em síntese, é: como descobri que tenho uma síndrome rara chamada Tremor Ortostático (TO).

Desde pequena, ando com meu tronco levemente empinado para frente. O que até me dava certo charme. Claro que eu mesma não conseguia perceber isso, e achei graça quando um amigo desenhista e caricaturista com quem trabalhei no meu primeiro emprego em São Paulo, a agência de publicidade McEricksson, me deu uma pequena montagem em cartolina preta de uma jovem figura feminina de minissaia e cabelos à altura do ombro, levemente inclinada para frente, que imediatamente reconheci: eu.

Essa boneca-caricatura em cartolina preta, que coloquei na precária estante de caixotes do pequeno apartamento no Paraíso (na verdade um “aparelho” da organização de esquerda da luta contra a ditadura), suponho que deve ter sido pisoteada pelos policiais que o invadiram quando meu marido foi preso, e “entrei para a clandestinidade”, indo então morar em um quarto alugado de um casa operária no bairro Pauliceia, um conhecido bairro metalúrgico de São Bernardo, onde continuei o trabalho político.

O ano era o começo de 1971 e eu tinha 24 anos de idade.

Um pouco antes, em 1969, quando vim morar em São Paulo com Felipe, e alugamos um outro apezinho na Barra Funda (também um “aparelho”), uma noite me senti enjoada, fui ao banheiro e tive uma convulsão e um desmaio. Fui diagnosticada com uma disritmia, que às vezes ainda era chamada “pequeno mal”, em oposição ao “grande mal”, a epilepsia. Comecei a tomar – e continuei tomando por vários anos – Mysoline e depois Tegretol.

(Conto tudo isso, inclusive os nomes dos remédios, porque este é um depoimento também para neurologistas, pesquisadores e portadores de TO, e esse tipo de detalhe faz parte de um histórico que pode ter alguma relevância, nunca se sabe.) 

Os anos se passaram, e se notei alguma coisa que hoje imagino possa estar relacionada ao TO, foi detestar coquetéis. Ficar de pé, parada, com um copo ou taça na mão, beliscando aperitivos e mantendo ao mesmo tempo um lero-lero social, passou a ser bastante desagradável. Como editora que eu era na época, acabava obrigada a comparecer a alguns, e mesmo depois, como escritora, ainda me vi muitas vezes comparecendo a outros, sempre em busca de algum lugar para me sentar ou encostar (o que, em matéria de charme, já que falei nisso antes, é desastroso). Só muito recentemente resolvi, de uma vez por todas, cortar drasticamente os coquetéis de minha vida, e vernissages, exposições e (meus amigos escritores que me perdoem) lançamentos de livro. Aos meus eu vou porque posso ficar sentada.

Voltemos ao histórico.

Só por volta do final dos anos 80 ou começo dos anos 90, passei a perceber outras coisas. Eu fazia aulas de balé para adultos, e detestava piruetas. Até aí, tudo bem, imagino que muita gente deteste fazer piruetas, mas comecei a achar estranho quando, em posições que eu ficava parada, minha perna começava a endurecer e tremer.

Mais ou menos por essa época, comecei a achar também que, ao tomar um cafezinho em pé, no balcão, hábito tão brasileiro, o pires começava a balançar. Sempre gostei de tomar cafezinho no balcão, mas isso passou a me deixar constrangida. Risquei cafezinho no balcão da minha vida.

Não adiantou muito. Como para se vingar, os tremorezinhos começaram a se fazer notar em outros momentos.

Foi então, por volta dos anos 93/94, que resolvi consultar um médico.

Procurei meu antigo médico da disritmia, “o pequeno mal”, Dr. Haim Grunspün, a quem devo muito em minha vida. Psiquiatra, Dr. Haim prontamente descartou alguma coisa no cerebelo, e talvez pensando na possibilidade de estresse, me encaminhou para algumas sessões com sua esposa, a também muito querida Dra. Feiga Grunspün, psicóloga que, na época, trabalhava com massagens e outras técnicas de relaxamento. Dr. Haim me indicou também, um bambambã da neurologia, Dr. Ricardo Nitrini, com quem fiz alguns exames, mas sem chegar a nenhum diagnóstico.

Convencida de que talvez, afinal, o problema tivesse motivação psicológica, procurei uma terapeuta freudiana, que resultou ser uma pessoa muito profissional e muito distante. Acredito que os cerca de três anos em que passei duas horas semanais deitada em seu sofá devem ter me ajudado em algo, não vou dizer que não, mas tem uma coisa que ela realmente não deveria ter me falado. Foi quando lhe perguntei, depois de várias sessões, “Mas você tem certeza mesmo de que meu problema é psicológico?”, e sem titubear ela disse que sim. Sem sequer cogitar em reconhecer sua impossibilidade de tratar de um problema que, a rigor, ela não sabia de onde vinha, nem onde estava, nem para onde ia.

Eu lhe dizia: “Quando estou sozinha, quando estou no chuveiro, quando escovo os dentes, quando isso e aquilo, situações absolutamente normais, corriqueiras e desprovidas de ansiedade, angústia ou estresse psicológico, eu tremo.” E ela: “É assim mesmo”.

Pior: eu havia lhe contado que meus tremores tinham começado numa aula de balé, e em algum outro momento lhe contei também que, quando criança, queria ser bailarina, incentivada por minha madrinha, que era quem me levava às aulas. Nos poucos anos que fiz o curso com duas professoras russas de sotaque terrível, participei de várias apresentações no Teatro Goiânia, um bonito teatro art nouveau, embora de cores sombrias, onde cheguei a fazer, inclusive, um solo com a Dança da Cobra, que ficou famosa em minha família. Uma coreografia rastejante que, menina flexível, eu executava toda pintada com uma tinta preta que depois era preciso esfregar bem na banheira, e era difícil de sair. Felizmente, a tinta não devia ser tóxica. (Ou será que era?) Seja como for, eu amava tudo aquilo até que, por volta dos meus 11 anos, meu pai disse que já era suficiente, que balé não era algo adequado para uma mocinha. Claro que eu sempre tive uma relação problemática com meu pai, e claro que esse fato foi contado de olhos úmidos, deitada no sofá freudiano, olhando pro alto e vendo meu glorioso passado de bailarina se desvanecer no teto, mas a partir daí (e de outras coisas, provavelmente) minha analista houve por bem determinar que a raiz dos meus problemas estava no meu repressor particular, meu pai, então já falecido.

Com tanta certeza da parte dela, ainda fiquei um bom tempo me deitando em seu sofá, remoendo as questiúnculas cotidianas, como o espanto com a incompetência e falta de escrúpulos do famigerado filho do meu então sócio (que não cessavam de me espantar), ou meu ainda não dominado constrangimento com o tremor, ou minhas pequenas fobias sociais (que ainda permanecem), etc. etc. Até que um dia resolvi eu mesma me dar alta e conviver como fosse possível com as coisas como elas eram.

No decorrer dos anos 90, fui aprendendo aos poucos a evitar as situações que pudessem me colocar em posição constrangedora. Procurei também vários outros profissionais: ortopedistas, acupunturistas, quiropatras, massagistas, RPGistas, um chinês cujo princípio curativo era a água, um outro cujo princípio curativo era pular sobre as costas de seu paciente, e outros que já me esqueci.

Mas os tremores continuaram. Felizmente, pareciam ter um desenvolvimento quantitativamente lento e demoravam a adquirir forças para dar seu salto qualitativo para um pouquinho pior.

Depois que Dr. Haim Grunspün faleceu, procurei seu filho, Dr. Henrique Grunspün, clínico geral, que depois de vários exames, me encaminhou para Dra. Márcia Rubia R. Gonçalves, especialista em tremor, que, a essa altura, passara a trabalhar com o Dr. Ricardo Nitrini.

Foi minha grande sorte. Com a Dra. Márcia Rubia finalmente foi possível, para bem ou para mal, chegar a um diagnóstico. Meu problema é neurológico e seu nome é Tremor Ortostático.

O Tremor Ortostático Primário é caracterizado por um tremor rápido e irregular dos membros inferiores que se inicia depois alguns segundos ou minutos em posição parada em pé. O tremor desaparece quando o paciente caminha, senta ou apoia-se. Outra característica básica desta patologia é sua alta frequência, verificada por estudos eletrofisiológicos (entre 13-18 Hz).

Pode ser descrito como “uma dissociação entre a instabilidade subjetiva e objetiva”, ou “uma resposta fisiológica exagerada à instabilidade”. Os músculos das pernas começam a endurecer, os tornozelos parecem fracos e os dedos dos pés se curvam na tentativa de manter o equilíbrio. Acompanha tudo isso a ansiedade de encontrar um lugar para sentar ou caminhar e aliviar os sintomas.

Como é uma patologia atualmente ainda considerada rara, é confundida com outros tremores e com frequência não diagnosticada. Consequentemente, é pouco pesquisada. Não havia – e até hoje não há - dados sobre sua origem e desenvolvimento e, portanto, tampouco medicamentos específicos.

Mesmo com tantas lacunas, há sempre, por menor que seja, uma sensação de reconforto (ou mesmo alívio) quando você tem o diagnóstico feito corretamente. Sobretudo, quando ele não é demasiado assustador. É um problema grave, é perturbador, é chato, muda a sua vida, mas não chega a ser demasiado assustador, e você tem a confirmação de que não está ficando louca, que seu problema não é mera invenção de sua maltratada mente. Não, seu problema existe. Outras pessoas passam por algo parecido. Além disso, alguém capaz de fazer seu diagnóstico é alguém que foi primeiro capaz de escutar e entender o que você estava falando. Um reconforto. Pequeno, é verdade, mesmo assim reconforto. Aquela velha história: você não está sozinho.

Há outra coisa também. Como minha descoberta do problema foi tão lenta e paulatina, tão a conta-gotas, suponho que, de certa forma, isso evitou que eu passasse pelas duas primeiras fases clássicas de quem se descobre com uma doença para toda a vida: revolta e negação. Já comecei com a aceitação, apoiada por toda a minha família, muito solidária, sempre. Claro que às vezes exclamo, “Por que eu?!”, lamento inútil que leva a lugar nenhum, e jamais terá resposta, a não ser uma: “Porque sim”.

Esse diagnóstico foi feito em 2003 – ou seja, quase 10 anos depois de procurar o primeiro médico.

Minha primeira atitude, depois de diagnosticada, foi pesquisar na Internet o que havia de informações a respeito, e descobri um grupo nos Estados Unidos, criado por duas mulheres que tinham o problema, com o objetivo de coletar informações sobre o problema. O grupo já tinha membros de vários países, pessoas que deixavam seu depoimento, contando sobre sua experiência e como, da mesma maneira que eu, estavam enfrentando e conseguindo maneiras de conviver com suas dificuldades.

 

Isso foi bacana: encontrar esse grupo e começar a seguir com ele esse desconhecido caminho.

 

Com o tempo, e o crescimento dos participantes, foi feita uma campanha de doações para subvencionar uma pesquisa que começou a ser feita na University of Nebraska Medical Center, nos Estados Unidos.

Há também outros grupos de médicos pesquisando a patologia na Austrália e na Inglaterra. Infelizmente, com poucos recursos todos eles, pois a quantidade ainda pequena de diagnósticos não leva nenhuma indústria farmacêutica – ou instituição médica – a investir nessa pesquisa.

Algo está sendo feito, no entanto, e isso é também, de certa forma, reconfortante. Os resultados começam a parecer possíveis.

Em 2007, tive uma consulta no “The Center for Movement Disorders”, no Neurological Institute de Columbia, Nova York, que fez apenas corroborar o diagnóstico da Dra. Márcia Rubia e seu acompanhamento.

Hoje, com o agravamento paulatino dos sintomas, faço o que boa parte dos pacientes de OT vem fazendo: tomo uma dose alta de Gabapentina, um remédio antigo usado para vários problemas, e um antidepressivo, algo muito recomendável para os que têm uma doença crônica. Faço também exercícios, e caminho com bastante frequência. Aprendi a dar minhas desculpas sociais, as fáceis de dar e que não exigem explicações, tipo: “Estou com um probleminha na perna (no pé, na coluna), e preciso me sentar.’

E tento não pensar muito a respeito.

Como tenho a sorte de ser escritora, e exerço meu trabalho em casa, sentada na frente do meu computador, minha profissão não foi afetada, sem dúvida um enorme privilégio.

Nos espaços livres, onde posso caminhar à vontade, é quando o tremor desaparece por completo. Nos espaços pequenos – como elevador, sala de escritório, copa, cozinha, banheiro – o andar fica irregular, as penas endurecem. 

Tento aceitar as limitações. Livrarias, por exemplo – um dos meus antigos prazeres – hoje são quase proibitivas. Ter que passar entre os espaços pequenos das prateleiras, ou parar um pouco para escolher um livro, já não é nada agradável, é difícil. Escadas sem corrimão, principalmente para descer, podem ser assustadoras. Em certos momentos de transição de uma posição estressante para outra mais confortável, posso cambalear e dar a impressão de que estou prestes a cair ou exagerei no dry-martini. Ir a museus, visitar uma loja: quando você vir alguém nesses lugares como se estivem apenas de passagem, somos nós, os cidadãos com Tremor Ortostático.

Em compensação, temos motivos para jamais enfrentar uma fila, e para evitar um monte de tarefas chatas, como ir ao supermercado, cuidar da louça, arrumar armários, passar roupa. Quando tenho que me encarregar de algumas delas, vou fazendo o que é preciso com longas pausas para me sentar. Nunca fui de cozinhar, mas suponho que um portador de TO amante da cozinha deve se frustrar bastante.

Em todos esses anos, meu andar mudou muito. Ficou mais arqueado e deixou de ser charmoso. Além disso, no meu caso, como a Dra. Márcia Rubia sugeriu, pode ser uma postura que meu corpo inconscientemente adotou para compensar o desequilíbrio. Se for assim, então pode ser algo que tenho desde pequena - informação talvez útil para os médicos que pesquisam o problema. Em relação ao TO, tudo ainda está para ser descoberto.

Em geral, não falo muito a respeito desse problema. Vários amigos queridos ficarão até surpresos se algum dia chegarem a ler esse depoimento. Mas é que, por natureza, não sou uma pessoa que fica remoendo as coisas, minha tendência é seguir em frente. Caminhar. O que – pensando bem – talvez seja uma tendência que me deu o próprio TO.  Afinal, se é caminhando que minhas pernas não tremem, então minha saída deve sempre ter sido – e continua sendo –  caminhar.

E caminhar em espaços livres.

Nós, os portadores de Tremor Ortostático, precisamos de espaço. Precisamos de movimento. Precisamos de liberdade.

O que, dito assim, até parece bonito. Mas, creiam: não é.

 

 

                                                      São Paulo, julho de 2014

                                                    


[1] Fora eu, “A mulher trêmula” a que me refiro é a Siri Hustvedt, que escreveu um livro muito interessante justamente com esse título. O tremor que ela descreve, com detalhes, é bem diferente do meu, que tampouco pretendo escrever um livro a respeito, apenas este depoimento.