voltar para a página-site da escritora

 

Ela adora um terminal

por Maria José Silveira

 

 

 

(Caravaggio, 1609, Salome e João Baptista degolado)

Sai pelo corredor do hospital avisando “É terminal. É terminal.”

 

A voz soa compungida mas há certa vibração interna, uma excitação que a faz espalhar a notícia já contando com o frisson que vai provocar. Mesmo no INCOR de São Paulo, o hospital do coração, a morte é notícia, uma notícia que, mesmo esperada, sempre causa essa agitação, essa obrigação de encarar por um segundo que seja a certeza de uma inevitabilidade, e é disso que ela gosta. De ser a portadora desse frisson.

 

Ela é faxineira da turma da manhã da Unidade de Tratamento Intensivo. Não é a melhor, nem a pior faxineira que o local já teve, mas é a que sempre está a par do que se passa em todos os leitos. Tem a capacidade de faxinar olhando para todos os lados, ouvidos atentos a todo tipo de comentário. Adora, simplesmente adora compartilhar notícias, e quer notícia maior do que uma morte?

 

Com certeza será o assunto do jantar desta noite. “Hoje teve um terminal”, ela vai dizer, enquanto coloca o prato de macarrão com feijão na mesa para o marido. “Tava lá faz dias, um velhinho que ficava só de boca aberta, respirando com aquele ronco de quem respira mal. A filha chorou à beça. Uma senhora fina, sabe?, toda elegante mas chorou feito desesperada, só faltou se descabelar. O velho é viúvo, e ela é filha única, pelo menos a única que a gente via por lá. Ninguém mais apareceu dia nenhum. E assim que o velho morreu, a doutora disse, Avisa a filha. Por isso eu sei que ela é filha única.”

 

Encostada na pia, ela faz uma pausa para comer uma banana, e continua:

 “Tem outra lá que não passa de amanhã, ouvi a doutora falar. É a mulher que tá lá faz só dois dias, e é nova, num ronca, num geme nem nada, e nunca vai ninguém visitar, pobrezinha. Magrinha que dá dó, e acho que nem escuta mais. Quero ver quem eles vão mandar avisar quando ela entrar nos finalmentes. O feijão tá bom?” 

O marido dá de ombros e não faz comentário nenhum. Aquelas notícias do hospital não significam nada pra ele, na verdade não gosta de ficar sabendo quando morre um, já disse pra mulher várias vezes não trazer defunto pra casa, mas ela não dá conta, não consegue deixar uma morte passar em brancas nuvens. Quando ele casou, sabia que a mulher era a maior fofoqueira do bairro.  Então, agora, aguenta. A saída é não dar trela e comer calado.

 

E ela bem sabe o que significa o silêncio dele, mas não se deixa abater. Quando acabar de arrumar a cozinha, vai na vizinha contar sua novidade. A vizinha gosta de saber das coisas, não é como o marido que não liga pros mortos. Quando foi trabalhar na UTI do hospital, e o marido começou a reclamar das conversas, ela até tentou se controlar. Mas não dá. Que culpa tem ela se seu dia fica mais interessante quando vê um terminal?