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(capa editora Soul)

 

Boudicca, A Coruja do Castelo, 20171118

 

 

 

 

Do Livro Todas as Mulheres São Bruxas III

Ouvidos de Pássaro*

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

 

Para Susana Campanhã,
A Guardiã do Lago

 

Desde muito pequena, Cecília começou a reclamar do barulho da cidade. Vivia com as mãozinhas tapando os ouvidos e, assim que aprendeu as primeiras palavras dizia:
-- Barulho! Barulho! Não gosta! Não gosta!

Suas mães, Melissa e Vanessa, levaram-na primeiro à médica otorrino, Dra. Mara, para ver se havia algo errado com a audição da menina. Mas não havia. Feita a audiometria, estava tudo normal. À medida que crescia, Cecília reclamava ainda mais veementemente que o barulho a incomodava. Suas mães foram reparando que outros sons, além daqueles produzidos pela cidade movimentada, também incomodavam a criança: música bem alta, TV em volume alto, fones de ouvido do tablet ou do celular, tudo isso parecia afeta-la. Mas do que ela mais reclamava era mesmo do som da rua.

Resolveram então instalar ar-condicionado e janelas ante ruído no apartamento. Foi bem no ano em que veio o Novo Coronavírus e as autoridades da Saúde eram unânimes em afirmar que as janelas das casas deveriam ser mantidas abertas.
Melissa, economista, trabalhava num grande banco. Vanessa, como professora de belas artes e a escola onde lecionava logo foi fechada, por medida de segurança, na Pandemia.

Assim, acabaram as duas trabalhando em Home Office, mas não dispensaram a Babá, a Nani, que cuidava de Cecília desde que essa era um bebezinho e a menina já estava agora com seis anos de idade. Foi a Nani quem sugeriu:
-- Por que vocês duas não se mudam? A Ceci não suporta mesmo o barulho da cidade, até chega a chorar quando as janelas estão abertas. Aqui, no entorno de São Paulo, devem existir boas casas, com jardim e tudo, em lugares mais distantes, menos barulhentos. Morar aqui, em Pinheiros, num apartamento tão alto e tão próximo às grandes avenidas, é uma escolha ruim para quem não suporta o barulho.

 

Era mesmo. Moravam em plena Av. Rebouças, num prédio muito bom, antigo, mas que ficava em meio à subida-descida da via super movimentada, os ônibus passando rapidamente pela faixa exclusiva, em marcha mais reduzida, o que causava mais ruído ainda dos motores.
 

As mães concordaram com a babá e começaram imediatamente uma busca na Internet. Viram muitas casas à venda, várias em distantes condomínios, longe demais para quando elas tivessem que retomar o trabalho presencial e, assim, levar horas no trânsito pesado, mesmo nas rodovias que davam acesso a esses condomínios, para locomover-se de casa ao trabalho.

 

Depois de muita busca, acharam uma, do tamanho ideal, nem tão grande nem tão pequena, às margens da represa do Guarapiranga e cercada por um bairro de classe média, só de casas, que se formara lá nas últimas duas décadas. Tinha escola próxima, Igreja, Templo Evangélico, um bom comércio e até um supermercado.

 

A casa em questão fôra construída no tempo em que o entorno era ainda mata, para ser certamente uma casa de campo. Tinha uma garagem onde estava um velho barco de madeira, a motor, uma rampa para levar o barco até a água, um pequeno guincho.

 

A garagem poderia ainda abrigar os automóveis delas e o bairro se desenvolvera – explicara a corretora que acompanhara a visita da família ao local – depois da chegada do Rodoanel, cujo acesso ficava apenas a 2kms da casa. Os proprietários deixariam o barco que, desgastado pelo tempo, com uma pequena reforma, poderia ficar em perfeito estado. Para ir à cidade, Melissa e Vanessa teriam várias opções, sem um trânsito tão pesado. Poderiam atravessar a represa de barco e estariam no bairro do Socorro, bastante próximo à sede do Banco onde Melissa trabalhava. A escola onde Vanessa lecionava também não estava tão distante, no Bairro do Brooklin.

Restava apenas questão da segurança. As famílias das duas mães não gostaram nem um pouco da ideia de um casal de mulheres, com uma criança pequena, morando num lugar tão aparentemente vulnerável. O marido de Nani, porém, era segurança. Já trabalhara em condomínios de luxo, em bancos, em grandes empresas e, com o advento da Pandemia, acabara perdendo o emprego. Mais uma vez foi a babá quem sugeriu:
-- Aqui tem essa pequena casa, certamente para caseiros. Meu marido e eu poderemos vir morar aqui, com vocês. Eu me encarrego de levar Cecília à escola, quando esta reabrir. Romeu, meu esposo, vai gostar de morar aqui e pode zelar pela segurança (ele tem até porte de arma – explicou) e poderá também se encarregar de fazer desse gramado um belo jardim. Ele gosta muito de plantas, temos muitos vasos no apartamento onde moramos na cidade. Ele é quem cuida. Vai adorar ter um jardim só para ele manter.

Menos de um mês depois, a família colocou o apartamento da Rebouças à venda, fez um financiamento bancário e comprou a casa da represa.

Estavam todos muito animados, até a pequena Cecília que via dizendo que agora iria “morar na praia”. Não era mar, mas o jardim da casa terminava numa pequena praia, de areia de rio, às margens da represa. Para a esquerda e para a direita da praia da casa, só barrancos, o que proporcionava, ainda, maior segurança.

Mudaram-se.
Todos estavam contentes com a nova maneira de viver. À noite, silêncio absoluto. De dia, pouco barulho, um ruído distante, um certo “zuummm” que nada mais era do que o som da cidade, longe dali, que às vezes o vento parecia trazer. Nos fins de semana algum movimento de barcos e esportistas, mas nem tanto, já que os clubes à beira da represa estavam todos localizados para além do que eles chamavam de “terceiro lago”, mais próximos à barragem do Socorro. Eles viviam no “quarto lago”, próximos à “entrada” do pequeno córrego que levava à cidade de Embu-Guaçu e distantes o suficiente do Rodo Anel para que o movimento desse não chegasse a incomodar.

Estavam lá havia mais de meio ano e nada da pandemia ir embora. Chegaram as vacinas, mas, mesmo assim, o novo vírus sofria constantes mutações. Já viviam a quarta mutação e ninguém poderia ter absoluta certeza da imunidade. Todas as medidas de proteção continuavam valendo. Nesse 2021, que já ia pela metade, ainda não havia previsão para que as mães trocassem seus Home Offices pelo trabalho presencial e nem que a escola do bairro, onde Cecília já estava matriculada, pudesse ter aulas normais. Mesmo assim, a menina estudava on line e, rapidamente, tinha dominado as letras, começando, inclusive, a ler livros infantis na Internet e até livros físicos, como via frequentemente suas mães fazerem em horas vagas, descansando nas redes do terraço da casa ou tomando sol na prainha ou no jardim.

Romeu, conforme Nani previra, tinha trazido todas as suas plantas do apartamento e, de manhã, saía andando pelo entorno e recolhendo mudas do que restava da flora local. Até uma samambaia xaxim(espécie quase extinta) ele conseguira trazer e plantou-a no jardim, em um espaço aberto, para que ela pudesse crescer e se multiplicar. As muitas árvores frutíferas, embora ainda pequenas, já atraíam muitos, muitos passarinhos e seu canto, ao amanhecer, despertava as pessoas na casa.

Quando o barco ficou pronto, Romeu, que conseguira, num clube próximo, fazer seu curso de mestre arraes e tirar a sua habilitação para pilotar lanchas, começou a ir à Ilha, a maior ilha da represa, defronte ao Clube de Campo São Paulo e na entrada do Terceiro Lago, e voltava de lá com ainda mais mudas de plantas e árvores.

Naquele ano, o jardim crescera, o terraço era forrado por verdadeiras cortinas de várias espécies de samambaias e havia uma cerca viva de azaleias, separando o jardim e a casa da pequena praia, com apenas alguns espaços para que pudessem passar de um lado a outro. Mesmo assim, em Julho, na época da floração das azaleias, ao passar pela sebe, todos acabavam com alguma flor enganchada nos cabelos.

Nada poderia ser melhor – julgavam as mães. A casa era linda e aconchegante, Cecília parara de reclamar do barulho, estavam todos felizes.

Nani cuidava da casa e de Cecília. Romeu zelava pela segurança e pelo jardim. Tinham dois collies imensos, cães absolutamente carinhosos, mas grandes o suficiente para espantar os xeretas. Os caseiros estavam satisfeitos com sua nova condição: deixaram de pagar aluguel, moravam num lugar belíssimo e tinham a segurança da gentileza e do afeto de suas patroas. Além de gostarem tanto de Cecília que até estavam pensando em ter os seus próprios filhos.
-- Seria ótimo! – exclamou Melissa quando Nani falou a ela sobre isso. Mais crianças na casa, mais alegria!

Nos fins de semana, Romeu levava Cecília a passear no barco. Ela adorava o vento no rosto, as gotinhas d’água subindo do casco, a esteira do próprio barco que, da primeira vez em que reparou nela, exclamou: Parece a cauda de um vestido de noiva!

Naquele domingo chegou em casa eufórica:
-- Hoje nós fomos a um lugar muito bonito chamado Castelo. O Romeu ancorou no pontão, veio um sujeito e disse que ali era um clube particular, mas o Romeu pediu se a gente podia dar uma volta por lá, que eu queria conhecer! Nossa! Subimos da praia por uma rampa cercada por árvores, uma subidinha à toa, e lá em cima tem um Castelo de verdade! É lindo! Nós entramos, uma moça simpática, chamada Susana, levou a gente por uma escadinha até a torre do tal Castelo! De lá de cima, é uma salinha redonda com sacadas e muitas janelas, a gente vê tudo em volta, a represa, o montão de árvores, as piscinas, as quadras e um gramado enorme! É lindo! Um Castelo de verdade!

Vanessa riu:
-- Sim, é o Clube de Campo do Castelo. Eu conheço. É lindo mesmo. Levei uns alunos lá, num dia de semana, para que escolhessem seus temas para telas de pintura. E existe desde 1959, mais de 60 anos!

Melissa perguntou:
-- Quem será que teve a ideia de construir um Castelo em 1959?

-- Nada – respondeu Vanessa – O Castelo foi construído muito antes, em 1910 eu acho, para ser a residência de um austríaco, ou alemão, que veio para o Brasil dirigir a Cervejaria Brahma, que hoje é a AMBEV.

-- Mas o mais legal – interrompeu a menina, antes que sua Mãe Dois se pusesse a contar uma história chata, de coisas muito antigas – é que eu arrumei uma amiguinha!

-- É mesmo? E qual é o nome dela?

-- É Boudicca.

-- Nossa, que nome estranho! – disse Melissa.

-- Ela é uma coruja – respondeu Cecília.

-- Como assim, uma coruja? – perguntou Vanessa.

-- Uma coruja de verdade! – disse a menina – Ela mora lá, no Castelo. Lá também tem gansos, patos, galinhas D’Angola. Isso sem falar no montão assim de passarinhos. Todos moram lá e essa tal de Susana, que é presidente do clube, cuida de todos os bichos. Sabe, eu nunca tinha visto uma coruja de verdade. Só em filmes, no celular, essas coisas. Fiquei um tempão, na grama, perto do praia, com ela, enquanto o Romeu foi tomar uma cerveja no bar do que eles chamam “Náutica”.

As mães riram.
-- E ela falou com você, a coruja!

-- Que besteira, Mãe Um! Todo mundo sabe que corujas não falam.

-- Se ela não falou – disse Melissa – como é que você ficou sabendo que o nome dela é Boud... Boud o que mesmo?

-- Bou-dic-ca! – disse Cecília, meio irritada – Eu só olhava pra ela e ia ouvindo, dentro da minha cabeça, o que ela dizia. Me contou que seu nome é Boudicca por causa de uma tal de Rainha Vermelha, uma que viveu aqui na Terra muito antes da gente, ela falou uns dois mil anos antes. Essa Boudicca, a rainha, se meteu num guerra com os padres e, no começo, seu exército venceu muitas batalhas, mas, depois, ela acabou sendo morta pelos padres, por isso é que a gente não pode acreditar totalmente nos padres, disse a Boudicca (a coruja, não a rainha) porque nem todos eles são legais como dizem.

-- E como é que essa coruja sabia tudo isso? – perguntou Vanessa.

-- Ah, é lógico! Ela me contou que já foi passarinho, foi garça também e, agora, que é velha e sábia, está nascendo várias vezes como coruja. Ela viveu no tempo da tal Rainha Vermelha, mas era só um pássaro de peito amarelo. Até me mostrou umas penas amarelas que tem no corpo, no peito, ela disse que são lembranças das outras vidas que ela já teve. Remini... remini... alguma coisa.

-- Reminiscências – disse Vanessa.

-- É isso aí, Mãe Dois – respondeu Cecília, já bocejando – Acho que vou dormir. Tive um dia estafante!

As mães riram. Estafante... que palavra para uma menininha!

Quando Cecília se afastou, Vanessa riu:
-- Melissa, você vivia dizendo isso quando chegava do Banco. “Tive um dia estafante!” – e caiu na risada.

Chamaram o Romeu e perguntaram a ele se Cecília estivera perto de alguma coruja.

-- Ah, sim! – respondeu ele – Mas eu não tirei o olho dela, estavam pertinho de mim, ela e a coruja. Eu fiquei com medo que a menina mexesse com o bicho e ele a bicasse. Mas logo o barman lá do Castelo me tranquilizou. Disse que a coruja era mansinha, nascera ali mesmo, no clube e que a dona Susana sempre mimara ela, fôra criada com carinho, não era agressiva. Contou ainda que, à vezes, ela e uma gatinha que vive lá na Náutica também vão atrás o mesmo rato... Ele falou que é engraçado, mas que todos os bichos lá do Castelo vivem bem uns com os outros. O nome da gata também é estranho... É Lucrécia. Ele contou que essa gata é velhíssima, que já viveu muito mais tempo do que vivem os gatos. Dizem que uma sócia antiga do clube é que deu o nome de Lucrécia a ela. Ele falou que todos têm medo dessa gata, porque ela é um mistério. Vivia enroscada com essa sócia, sempre que a mulher estava no clube, a gata não saía do lado dela. Um dia, a gata desapareceu. A tal sócia ficou desesperada, procurou ela por toda a parte. Ela só voltou anos depois, a sócia nem estava mais lá.

-- Bobagem – respondeu Melissa – É claro que deve ser outra gata.

-- Não, patroa – respondeu Romeu – O barman jura que é a mesma porque ela tem ainda, em volta do pescoço, a tal coleirinha de pérolas que a sócia tinha botado nela; ele disse que os marinheiros morrem de medo dela, pensam que ela é o fantasma da verdadeira Lucrécia.

--Boudicca e Lucrécia – riu Vanessa. – Será que tem algum outro bicho lá chamado Brutus?

-- Não sei, não – disse Romeu, ignorando a piada.

Depois do jantar, Vanessa entrou no Google e teclou: Boudicca. Ficou sabendo então que Boudicca fôra uma rainha celta que, no ano de 61 DC, liderou seu povo contra os romanos, que haviam desrespeitado um tratado feito com seu marido, já morto, e que assegurava a não-agressão entre eles. Isso acontecera durante o reinado romano do Imperador Nero.

Sem dúvida, Cecília deve ter tido conhecimento dessa história em algum filme que assistiu, algum livro que leu—pensou -- Mas que sua filha tinha uma imaginação poderosa, disso ela não tinha dúvidas.

A imaginação de Cecília, porém, tinha muito menos limites do que poderiam acreditar as suas mães.

No dia seguinte Nani veio dizer que Ceci estava sentada debaixo das azaleias e que havia um bem-te-vi de peito amarelo pousado no ombro dela.

-- Faz um tempão que ele está ali, no ombro dela. Nunca vi um passarinho ficar tanto tempo assim pousado no ombro de alguém. Essa menina tem uma ligação especial com os bichos, é incrível.

À noite, na mesa do jantar, Vanessa disse:
-- A Nani viu você com seu novo amiguinho essa tarde.

-- Qual deles? – perguntou a menina – O pardal ou o bem-te-vi?

-- O Bem-te-vi.

-- Ah, ele é um velho amigo da Boudicca, a coruja do Castelo. Ele disse que é neto dela.

As mães riram.
--Como pode um pássaro ser neto de uma coruja?

-- Não sei – respondeu Ceci – Ele é que me falou. Disse que a avó dele é uma grande sábia, que vive mais de 25 anos terrestres e, quando morre, nasce de novo, nas últimas vezes, sempre coruja. Mas como ela já foi passarinho, deve ser por isso que é avó dele.

-- É. Pode ser. – respondeu Melissa – E o que mais ele te contou?

-- Falou que o mundo é muito mais bonito, visto do céu. Ele nem pode voar tão alto quanto gostaria, nem ir tão alto quanto um avião. Da vez que vocês me levaram no avião, eu também achei bonito, vendo lá de cima.

-- Você se lembra? – perguntou Melissa – Você só tinha 3 anos, faz tempo.

-- Eu me lembro de tudo. Desde que nasci.

-- Ninguém se lembra, Ceci. Todo mundo só se lembra das coisas que viveu depois de 3, 4 anos de idade. – disse Vanessa.

-- Eu me lembro! – exclamou a menina –Me lembro até do dia em que nasci.

-- É mesmo? – perguntou Melissa – E o que você se lembra?

-- Me lembro de ter saído de dentro do seu corpo, Mãe Um. Me lembro que fiquei assustada quando um homem mascarado, todo vestido de azul, me pegou e foi logo me dando um tapa nas costas. Foi horrível! Ainda bem que, logo em seguida, ele me levou até você e eu me encolhi toda, morrendo de medo de que ele me pegasse de novo! Mas , por sorte, você me deu o seu leite e depois eu não me lembro mais o que aconteceu. Sei que fiquei pensando aonde eu tinha vindo dessa vez. E que, depois, fiquei contente porque logo percebi que tinha duas mães bem carinhosas e que não me deixariam sofrer como eu tinha sofrido antes.

As mães se entreolharam, meio assustadas.

-- E onde foi que você sofreu? – perguntou Melissa.

-- Ah... disso eu não me lembro. Só sei que tinha vindo de algum lugar onde eu era muito maltratada, mas não sei que lugar é esse.

-- Você pensa sempre nessas coisas? – perguntou Melissa.

-- Que coisas?

-- Nessa lembranças que você tem... de outro lugar?

-- Não penso nunca. Hoje foram vocês que perguntaram.

-- Desculpe-nos – disse Vanessa – Tem certas coisas que é melhor esquecer mesmo.

-- Ah, não tem importância, não. Eu me esqueço tudo que é ruim bem depressa. Esqueço até do Tico e do Teco.

-- Você não gosta dos nossos Collies? Justo você que gosta de tantos bichos. O que há de errado com os nossos cães? – perguntou Melissa.

-- Fico sempre longe deles – respondeu Ceci – Eles são maus. Se puderem, comem os passarinhos.

-- Eles comem ração – respondeu Melissa.

-- Pois é – disse Ceci – Deve ser por isso que não comem a gente.

-- Cães não comem pessoas – disse Vanessa.

-- Não estou falando de gente, falei dos passarinhos.

-- Mas você disse “eles não comem a gente”. – disse Melissa.

-- Isso. Eles não comem os passarinhos, mas eu sei que, se pudessem iam comer, sim.

-- Você é um passarinho? Você falou “a gente”... – riu Vanessa.

-- Isso – respondeu a menina – A gente, os passarinhos.

-- Você é um passarinho, então? – perguntou Vanessa.

-- Claro. Sempre fui. Só agora é que eu nasci assim, uma pessoa. Antes, sempre fui passarinho. Não gosto de cachorros, muito menos de gatos. Eles comem a gente. Mas a Boudicca, a coruja lá do Castelo, ela me contou que lá tem uma gata que não come nada e, por isso, eu não preciso ter medo dela. É a tal da Lu... Lu alguma coisa.

-- Lucrécia? – perguntou Vanessa.

-- Como você sabe, Mãe Dois? – disse Ceci.

-- O Romeu disse que o barman do clube falou dela.

-- Então... ela não come nada. – afirmou a menina.

-- Como

 assim? Não come nada? – perguntou Melissa.

-- Porque ela é uma gata fantasma. Fantasmas não precisam comer. Ela até corre trás dos ratos, mas deve ser por um hábito antigo.

As mães se entreolharam:
-- O Romeu deve ter contado a ela – disse Melissa.

Ceci caiu na risada.
-- Ah, o Romeu não me conta nada. Ele pensa que eu sou uma criança e que todas as crianças são bobas, não entendem nada, ele não sabe que eu entendo sim.

-- E como entende!—riu Melissa.

Depois de seu sétimo aniversário, Cecília nunca mais falou que conversava com as aves, nunca mais fez uma referência sequer a Boudicca, ao bem-te-vi de peito amarelo, nunca mais reclamou do barulho. Parecia que tudo aquilo jamais acontecera.

Certa tarde, observando a menina que brincava com os cães, como nunca brincara antes, na grama do jardim, Vanessa disse à Melissa:

-- Parece que agora ela se esqueceu das fantasias.

-- Está na idade de esquecer – respondeu secamente Melissa.

-- Graças a Deus! – suspirou Vanessa.

No entanto, embora Cecília não percebesse, todos os passarinhos do jardim estavam sempre voando por perto dela.


2021 setembro, 02
 

* Nas aves, a audição é altamente desenvolvida, captando e interpretando frequências entre 35 e 9.000 Hz, chegando a distinguir amplitudes sonoras melhor que os humanos, devido uma quantidade dez vezes superior de células ciliadas por unidade de comprimento coclear do que a encontrada nos mamíferos. (fonte: Unama)