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conto n.11 do livro Todas as Mulheres São Bruxas

Câncer e Conveniência

por Isabel Fomm de Vasconcellos

"O choque foi tamanho que, de repente, começou a ver a relação deles com outros olhos. Começou a lembrar detalhes, pequenas coisas que aconteceram, que podiam ser interpretadas de outra maneira, coisas que ele relevara porque ela era a sua mulher, a sua querida, a sua amada."

Alberto Surghi, Retrato de Mulher 1950

 


Clarice recebeu o diagnóstico de câncer no consultório do Dr. Carlos, seu amigo de infância. Não foi uma cena fácil. Embora acostumado a administrar os mais duros casos, o médico oncologista estava muito pouco à vontade para dizer, à sua colega de escola básica, que ela, aos 32 anos, tinha 70% de chance de morrer no próximo ano se não fosse capaz de se submeter às mais duras sessões de quimioterapia.
-- Clarice – perguntou o médico – por que você deixou ir tão longe?
Sim, por que não fora antes procurar a ajuda médica?
Porque, refletia agora Clarice, sua intuição lhe dizia que seus sintomas eram de alguma coisa simples ou mesmo pura imaginação. Agora, porém, percebia que não fora sua intuição e sim sua vontade de enganar a si mesma.
Aliás, esse é o grande problema com a intuição: muitas vezes o nosso próprio desejo se mascara em intuição e o desejo é mau conselheiro.
A perspectiva da morte fez com que ela, imediatamente, perguntasse ao médico se poderia engravidar, mesmo com a doença.
Era delicado, ele respondeu. Mas poderia. Só não poderia se tratar com a quimio no primeiro trimestre para evitar malformação do feto. Mas, se ela queria tanto um filho, poderiam haver outras soluções: reprodução assistida e barriga de aluguel e até mesmo adoção. Ele ainda explicou que ela é quem correria o maior risco adiando o melhor tratamento para não prejudicar o feto. Ele aconselharia mesmo, veementemente, outra solução, como adoção ou barriga de aluguel.

Mas nesse caso ela teria que congelar seu óvulo imediatamente, antes de iniciar qualquer tratamento.
Foi por isso que Clarice gastou todas as suas economias congelando óvulos e, logo depois, decidiu que iria a Argentina procurar um antigo namorado que se transformara num executivo internacional e que, ela sabia, tinha deixado a família no Canadá, último país onde trabalhara. Sabia também que a esposa dele se recusara a ir morar na Argentina e que, portanto, o casamento deveria estar balançado.
Não que Clarice tivesse saudades ou ainda se sentisse apaixonada por Ernesto, esse tal ex namorado. Ela o detestava.
Quando se conheceram, há alguns anos, ele já estava noivo de Jessica, mas ficara instantaneamente atraído por Clarice. Tiveram um caso tórrido, de uma paixão sexual arrasadora. Porém Ernesto era, acima de tudo, um sujeito prático. Estava muito interessado em sua carreira e Jessica, com sua dupla cidadania, americana e brasileira, era muito mais adequada, como esposa, aos seus interesses. Disse isso com todas as letras à Clarice e propôs que continuassem sendo amantes depois que ele se casasse com Jessica.
Clarice o odiava. Sabia que ele a amava e, mesmo assim, ele ia se casar com a americana, mais conveniente para os interesses dele... Era um horror! E, ainda por cima, tivera a coragem de propor que ela, Clarice, se transformasse na “outra”, na amante, na que era apenas para o prazer... A decepção de Clarice fora tão grande que seu amor se transformara em ódio.
Agora via aberta a possibilidade de não apenas se vingar dele mas também de usá-lo para conseguir, no tempo que lhe restasse, levar a vida que sempre sonhara: luxo, muitas compras e viagens pelo mundo. Ela não sabia quanto tempo lhe restava: sem tratamento, 70% de chance de morrer em um ano. Com o tratamento, períodos alternados de sofrimento e bem estar, talvez por 5 ou 10 anos. Mas, a não ser que a Medicina descobrisse algo novo, sua vida seria curta.
Clarice também fizera uma carreira como jornalista, tinha seu próprio espaço numa importante revista econômica e poderia continuar escrevendo, fosse de uma cama de hospital ou a bordo de um avião ou navio, em qualquer hotel do mundo... Com o que ganhava na revista e mais o polpudíssimo salário de um executivo imternacional como Ernesto, estaria feita.
Ela tinha certeza que poderia manipular Ernesto, ainda mais agora, quando ele deveria estar emocionalmente abalado com o casamento que não dera muito certo. Sabia tudo sobre ele. O odiava tanto que havia usado de todos os meios, das redes sociais às fofocas de outros executivos, com quem ela mantivera casos sexuais de interesse, para monitorar cada passo dele. E agora... era chegada a hora. Nem precisava da sua famosa intuição para saber disso.
Ernesto tivera um filho com a esposa. Por isso, engravidar era urgente para Clarice, se quisesse conquistá-lo. Nem que, para isso, tivesse que subornar fosse quem fosse numa clínica de reprodução.
Dr. Carlos ficou desesperado quando ligou para ela para iniciar o tratamento e ela atendeu o celular na Argentina.
-- Isso é hora de viajar? Você enlouqueceu? Seu problema é grave. Precisa imediatamente iniciar o tratamento.
Mas Clarice só queria encontrar “por acaso” o seu odiado Ernesto.
Naquela tarde mesmo fizera plantão na empresa dele, conversara nos arredores e já sabia que ele saía pelo portão 4, do estacionamento, por volta das 17h00, dirigindo um audi cinza grafite.
No dia seguinte, às 17h00, atirou-se, completamente bem vestida, bem maquiada e penteada, usando uma ankle boot salto 15, na frente do carro dele. Caiu sobre o capô, ele freou, assustadíssimo e...
Na mesma noite jantaram juntos.
Duas noites depois já trocavam juras de amor.
Ernesto percebia agora, mais do que já vinha percebendo nos últimos tempos, que fora um grande erro o seu casamento com Jessica, que a simpatia, a amizade e os interesses comuns não eram suficientes para segurar a barra do convívio cotidiano e nem da criação de uma criança. Achava-se então um privilegiado pela sorte por ter quase atropelado Clarice. Ah... como amara Clarice quando ainda estava noivo de Jessica. Ainda bem, refletia, que o destino lhe dera uma segunda chance, que poderia finalmente viver o amor verdadeiro.
Clarice era uma expert na cama. Conhecia e praticava todas as técnicas que enlouqueciam os homens na hora do sexo. Não foi difícil começar a dominar aquele Ernesto fragilizado emocionalmente.
Dois meses depois do “encontro casual” na Argentina, Ernesto estava agitando a papelada para o divórcio e Clarice estava grávida. Deu a notícia a ele, fingindo uma grande alegria:
- Meu bem, como eu havia dito, meu médico e eu pensávamos que a minha chance de engravidar era mínima, quase impossível. Mas foi o destino que nos mandou essa criança... que, infelizmente, será nosso único filho, um filho para selar o nosso amor.
A gravidez foi dificílima, mas Clarice enfrentou tudo com galhardia: as mudanças do corpo, os tratamentos complicados, o repouso absoluto... Quando nasceu a menina Ernestina, Clarice e Ernesto se casaram. Com comunhão de bens. Ele já conseguira sua transferência de volta para o Brasil, já que era onde ela queria morar.
O primeiro ano de tratamento foi ainda mais difícil que a gravidez. Clarice passou por cirurgias, a quimoterapia fez cair-lhe os cabelos, ela ficou com a pele acinzentada... Mas a Medicina moderna acabava por dar a ela grandes períodos de uma vida quase normal, com a doença sob controle. E, porque ela estava doente, porque ela enfrentava a doença com coragem e de cabeça erguida, porque ela lhe dera uma filha linda, Ernesto concordava com todos os seus caprichos.
Embora tivesse uma renda privilegiadíssima, quase tudo era gasto com viagens internacionais, restaurantes da moda, roupas de grife, serviços de beleza e estética, shows... e as internações e tratamentos de Clarice. A filha deles recebia uma educação de princesa. Aos 6 anos, misturava 3 línguas, fazia cursos e mais cursos e tinha crises, como qualquer criança mimada, quando contrariada.
Em casa, tinham um séquito de empregados domésticos, chofer, governanta, babás (uma de dia, outra de noite, uma terceira no fim de semana), cozinheira, faxineira. Ernesto achava quase tudo um desperdício, mas... Qualquer coisa pela satisfação de Clarice! Tinham também uma casa na praia, num condomínio fechado, exclusivíssimo, um barco na marina do condomínio, que custava uma fortuna por mês.
Como se não bastassem todas aquelas despesas a atormentar o pobre Ernesto, tinha também a Jessica, que ainda morava no Canadá mas vivia mandando e-mails desaforados, comparando a vida que ele levava no Brasil com a vida – “franciscana”, sentenciava ela – que ele proporcionara a ex e ao filho. Como Jessica sabia, em detalhes, da nova vida do ex marido foi um mistério até o dia em que Ernesto simplesmente resolveu perguntar a ela. Resposta: “recebo e-mails anônimos” de uma tal amigaintima@amiga intima.com. Ernesto escreveu para o endereço ameaçando com processos por difamação e invasão de privacidade e recebeu de volta apenas uma mensagem com o texto “kkkkkkk!”
Já a Clarice, Ernesto calculou um dia, passava mais tempo no Exterior do que em casa e, normalmente, viajava sozinha com a filha, ou com amigas, já que ele tinha seus compromissos profissionais e ela, como jornalista, podia escrever de qualquer parte do mundo.
O sexo, que era um fogaréu nos dois primeiros anos de casamento, no sétimo quase já não existia.
Ernesto começou a se sentir incomodado com aquela relação: a mulher estava mais ausente que presente, ele vivia numa corda bamba, num estresse louco, morto de medo de perder a posição profissional e não poder mais proporcionar a ela tudo o que vinha proporcionando...
Foi na véspera de completarem 7 anos de casados. Ela estava voltando de Nova Iorque e chegaria naquela tarde. Tinham mesa reservada num dos points mais chiques de alta gastronomia da cidade. Mas, logo depois do almoço, chegou aquela caixa branca, toda enfeitada, no escritório de Ernesto. Apenas um cartão: “Aí dentro, a verdade sobre a sua esposa.” Assinado: “Sua Amiga Íntima”.
Na caixa, cópias de todos os exames e procedimentos que Clarice realizara na Clínica de Reprodução Assistida, há quase uma década. Estava tudo lá: a descrição do motivo do congelamento dos óvulos, a fecundação posterior dos óvulos pela fertilização in vitro, o relatório das tentativas de implantação dos embriões no útero, as recomendações para a gravidez e o controle do câncer durante a gestação... Um verdadeiro dossiê médico.
Em um segundo, Ernesto compreendeu que Clarice armara tudo aquilo e, mais grave, compreendeu também que, já que ele jamais doara nenhuma gota de seu esperma, a filha que ela tivera era de um doador anônimo, a filha que ela amava não era dele, era só dela.
O choque foi tamanho que, de repente, ele começou a ver a relação deles com outros olhos. Começou a lembrar detalhes, pequenas coisas que aconteceram, que podiam ser interpretadas de outra maneira, coisas que ele relevara porque ela era a sua mulher, a sua querida, a sua amada. Percebeu que, nos últimos anos, ele acabara se afastando de todos os amigos mais chegados, ou porque ela não gostava de beltrano, ou achava que a mulher de sicrano era antipática ou mal educada ou porque ficara magoada com o comentário de fulano... Até da família ele já estava mais distante. Frequentava muito mais a família dela, os amigos dela, do que a sua própria família.
Lembrou-se, então, das insinuações que sua irmã fizera sobre o comportamento de Clarice e que, agora, lhe pareciam mais do que justificáveis e que, antes, ele considerara apenas como ciúmes fraternos.
Ligou pra irmã, marcou um café com ela.
- Não posso, Ernesto – estou no meio de um trabalho importante.
- Dê uma desculpa. Diga que seu irmão está morrendo e voce tem que sair.
- O que há, é tão grave assim?
Era. Numa mesa discreta, num café da moda, Ernesto narrou à irmã toda a sua angústia.
- Ela nunca te amou – foi a sentença.
Ernesto saiu do café, ligou pra casa e pediu à governanta que colocasse todas as suas roupas, objetos de uso pessoal, sapatos, tudo, em malas e começasse a desmontar a biblioteca e mandasse o chofer levar toda aquela montanha de livros pra sua casa de praia, enquanto as malas com as roupas deveriam ser levadas pro endereço que ele lhe daria mais tarde e, quando a D. Clarice chegasse, avisasse que ele entraria em contato depois. Não ousou pedir seus quadros porque sabia que ela ia querer metade deles quando se separassem. Já os livros... Bem, atualmente ela só lia revista Caras.
Ligou pro seu médico de confiança e se informou sobre as condições necessárias para realizar um exame de DNA para verificar a paternidade de sua filha. Com o advogado, conversou também sobre isso e sobre a melhor forma de se divorciar.
Eram 5 da tarde quando se registrou num hotel.
Nesse exato momento, o avião de Clarice pousava no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Ela sentiu um frio no estômago, de repente. “Aconteceu” – pensou— e percebeu que que seu plano chegava ao termo.
Em casa tomou conhecimento das providências do marido e quase não conseguiu conter a gargalhada vitoriosa ao perceber que a caixa branca dera um resultado tão rápido, tão instantâneo. Ela pensava que iria ter que enfrentar semanas ou mesmo meses de brigas, discussões e crises antes de conseguir se livrar dele. Tentou ligar pra ele, só pra continuar o teatro, mas o celular só dava caixa postal.
“OK, pensou ela, eu venci: tenho a filha, o casamento e o resto da minha vida está economicamente garantido. Não preciso mais aturar o Ernesto.”
Imediatamente ligou pro seu advogado e começou a traçar a estratégia para o divórcio. Além de metade de tudo o que adquiriram depois do casamento, ela queria assegurar a melhor pensão pra ela e pra sua filha, a filha que ela concebera com o seu óvulo congelado e o esperma colhido de sua própria vagina logo após uma manhã de amor, antes dele sair pro trabalho.