Veja, me entendam bem,
ela, Alcininha, não era uma dessas mulheres caçadoras de marido. Formada
em administração de empresas pela melhor escola, a Fundação Getúlio
Vargas, conseguira um ótimo emprego numa indústria farmacêutica
internacional e, nos últimos seis anos, já acumulava 3 promoções, sendo
a gerente de marketing da empresa e – sabia – acabaria por ser a
diretora. Ganhava bem morava sozinha num ótimo apartamento num bairro de
classe média alta, comprado com financiamento bem curto (para a tristeza
de seus pais, porque, por eles, a sua caçula, a mais nova de dois irmãos
bem mais velhos que ela e já com suas famílias formadas, ainda viveria
em casa, com eles). Era uma mulher independente e profissionalmente
realizada.
No entanto, ansiava por viver um grande amor – como aquele que, ela vira
por toda a vida, unira seus próprios pais, aos quais ela creditava a
maior parte de seu sucesso: à segurança de ter sido criada por um casal
que realmente se amava. Maria Alcina queria um amor assim, como o de
seus progenitores. Alguém com quem dividir as alegrias e as angústias do
cotidiano. Alguém com quem dividir a velhice, que inevitavelmente
chegaria. E alguém com quem, é claro, fosse feliz na cama. Feliz na cama
ela era também com seus eventuais namorados. Mas sabia que, para eles,
era apenas isso. Queria mais.
Um dia, desabafando com sua amiga de infância, Beth, essa lhe disse:
-- Alcininha, não há nada que assuste mais os homens do que uma mulher
independente. Eles até topam ter um caso com ela, mas se casam mesmo com
aquelas bobocas que dependerão deles para tudo, principalmente do
dinheiro deles. Homens têm medo de mulheres que não poderão controlar.
Temem que elas os traíam, ou que ganhem mais do que eles, enfim, que não
estejam atadas a eles por uma forte dependência afetiva e econômica. A
sua segurança os assusta.
-- Tudo bem, Beth. – respondeu Maria Alcina – Eu compreendo tudo isso,
mas um amor de verdade estará acima dessas coisas, um amor de verdade
nos dá coragem para enfrentar qualquer circunstância. Será que nunca
encontrarei esse amor?
-- Está aí uma questão – disse Beth com um riso irônico – que deveria
ser colocada à alguém que transcende as esferas materiais.
-- Como assim?
-- Uma bruxa – respondeu a amiga – Alguém que sabe dos caminhos
espirituais, que os desvenda, que poderia revelar a você onde está
escondida a sua cara metade, o homem que o destino reservou para você e
para quem você foi reservada pelo Universo.
Alcininha caiu na risada.
-- Que papo é esse, menina? Nunca soube que você era chegada a essas
bobagens esotéricas.
-- Não são bobagens – respondeu Beth. “Há muitos mais mistérios entre o
céu e a terra, do que sonha nossa vã filosofia”. Você, que é uma mulher
inteligente, terá coragem de negar que existem forças na Natureza e na
vida, que ainda nos são quase completamente desconhecidas e,
principalmente não explicadas? Nunca, em nenhum momento da sua
bem-sucedida trajetória, topou com elas? Duvido!
Maria Alcina tentou lembrar-se de alguma coisa semelhante. Não
conseguia. Até que, num rompante, veio-lhe à mente um dia em que,
voltando para casa, de madrugada, um casal, parado ao lado de um táxi,
numa rua erma, fizera sinal para o carro dela. Poderia ser uma
armadilha, daquelas tão comuns em uma cidade como São Paulo, mas alguma
coisa lhe disse que poderia parar. E assim o fez. A mulher, nervosa,
chegou à janela do carro dela e explicou que o taxista negava-se a
aceitar o cartão de crédito deles, que eles não tinham dinheiro vivo
para pagar a corrida e o homem os tinha ameaçado, dizia que chamaria a
polícia e outros horrores. Alcininha então pagara a corrida a eles, que,
agradecidos e emocionados, queriam uma forma de ressarci-la. Ela
respondera – sem saber bem porque – que Deus a recompensaria, que o
importante era que eles ficassem bem. Como – refletiu ela então –
percebera que não estava entrando em uma armadilha? Não havia explicação
racional para isso.
-- Sim – respondeu ela à Beth – Uma vez me aconteceu.
-- Então – disse Beth – você sabe que esses poderes existem e que não
existe explicação racional para eles.
A amiga acabara de ecoar os seus próprios pensamentos.
-- E que bruxa é essa? – perguntou à Beth – Você a conhece?
-- Sim. Foi ela quem me revelou a traição do meu ex-marido e que me
levou a divorciar-me dele.
-- Revelou como?
-- Pelas cartas. Ela é uma cartomante. Posso lhe dar o contato dela.
-- Não sei se quero... – respondeu Maria Alcina.
-- Você não quer encontrar esse tão sonhado amor? – perguntou Beth e
continuou: -- Vá lá. O máximo que pode acontecer é nada! O nome dela é
Circe – e riu – até o nome é de feiticeira.
Alcininha não acreditava nessas coisas. “Yo no creo em Brujas, pero que
las hay, las hay”, como diria Dom Quixote. Então, por via das dúvidas,
foi.
Teve que esperar quase duas semanas por uma hora vaga com a cartomante.
Circe atendia numa casa discreta, escondida por muros cobertos de hera
que deixavam avistar muitas copas de árvores altas para dentro de seus
limites. Quando o grande portão respondeu ao chamado de Maria Alcina, na
campainha eletrônica, ela pôde ver que duas rampas de pedra levavam a
uma grande garagem. Enquanto subia com o carro, pela outra rampa desciam
4 batedores de motocicleta cercando um automóvel preto de vidros
blindados e chapa oficial. Eita – pensou ela – a Madame Circe esteve
atendendo a algum figurão.
Em torno das rampas tudo era verde. Orquídeas floridas atadas aos
troncos das árvores, dezenas delas e mais outras dezenas ainda sem flor.
“A orquídea floresce uma vez por ano e suas flores duram até 6 meses” –
lembrou-se de ter lido num site de jardinagem. Havia muitas espécies de
flores, foi notando Alcininha, enquanto caminhava pelo jardim em direção
à porta principal da casa. Muitos pássaros, notou. E a casa!!! Também
coberta de hera até o telhado, tinha um grande canteiro de Belladonas
cercando-a, a planta das bruxas, com flores roxas, brancas e rosadas.
Alcininha lembrou-se que a Belladona era também conhecida como
“planta-do-diabo” devido aos preconceitos cristãos contra as chamadas
“bruxas” celtas que utilizavam a planta em seus rituais, como
alucinógeno, e também para fabricar medicamentos em seus caldeirões.
Venenosa, se na dose errada, a planta era medicinal, na dose certa,
usada pelos povos “bárbaros” para combater a depressão (doença que
chamavam de melancolia), a loucura e, ainda, problemas gástricos.
Extrato de Belladona era usado pelas italianas medievais como parte de
sua maquiagem pois, pingado no olhos, dilata as pupilas, o que as
mulheres de então achavam bastante atraente. Também chamada de Atropa
Belladona, ou de Trombeta dos Anjos, a planta em questão pertence ao
gênero cuja classificação, derivada da Mitologia Grega, vem de Atropos,
que é uma das três irmãs que tecem o destino dos humanos: Cloto, a
tecelã, tecia o destino das pessoas, do nascimento à morte; Laquesis, a
compartilhadora, analisava o tamanho do fio tecido por sua irmã e
determinava o comprimento deste, determinando assim a longevidade de
cada um e, finalmente, a Atropos cabia cortar o fio de cada vida, sendo
a senhora da Morte.
Estava imersa nesses pensamentos quando a grande porta da frente se
abriu e um mordomo a conduziu ao que parecia ser uma mistura de
biblioteca com sala de espera e indicou-lhe os grandes sofás forrados de
exóticos tecidos, para que se acomodasse “até que Madame Circe mandasse
busca-la”.
Alcininha olhou com curiosidade para as estantes que cobriam a parede
oposta ao sofá. Junto à janela e sob um grande abajur de pé, uma
clássica mesa de leitura. Quando o mordomo saiu e deixou-a só, ela
levantou-se e foi olhar os títulos dos livros. Havia de tudo. Clássicos
da literatura mundial e brasileira, clássicos do esoterismo e da magia,
incluídas aí as obras de Helena Blavatsky e de mestres rosa-cruzes, e
ainda o famoso Martelo das Bruxas. Um pouco de poesia: Shelley,
Bandeira, Drummond, Manoel de Barros.
Não pôde ver muito mais porque logo uma secretária (ou o que parecia ser
uma) toda vestida em Chanel, veio chamá-la:
-- Senhorita Maria Alcina, Madame Circe pode recebê-la agora.
Alcina esperava encontrar uma senhora mais para gorda, vestida em trajes
exóticos, saias longas e rodadas, blusa de mangas bufantes, usando
colares e pulseiras e brincos e turbante... a imagem clássica das
cartomantes, quase todas, ciganas. Circe porém era tão ou mais elegante
do que sua secretária. Esbelta. Cabelos grisalhos cortados no consagrado
Chanel-de-nuca-batida, um muito bem moldado tailleur de linho branco,
blusa de seda azul, meias de nylon, colar de pérolas de três voltas,
sapatos clássicos de salto alto e uma flor azul na lapela.
Era impressionante – pensava Alcininha – quanto custaria tudo aquilo?
Manter uma casa grande, com empregados, num dos mais nobres bairros de
São Paulo, e aquele jardim extremamente belo e bem cuidado? Pensando que
Circe tinha clientes da elite (como aquele – seria político? – figurão
cujo automóvel saíra da garagem quando ela estava entrando) e sabendo
que já pagara, por PIX, a quantia de 2.500 reais por uma simples
consulta, imaginou que Circe faturaria, mensalmente, muito mais do que
ela, com todo o seu currículo, mestrado, pós e mais seis anos de
promoções dentro de um ramo dos mais ricos da indústria, o farmacêutico.
Trocados os primeiros cumprimentos formais, sentaram-se, uma em frente à
outra, numa mesa de jacarandá em estilo clássico, retangular (Alcininha,
em sua imaginação, julgara que Circe a atenderia numa mesa redonda e
rústica).
-- Muito bem, Maria Alcina, em que posso ajudá-la?
Alcininha então narrou a ela o que a afligia, o fato de ser uma
executiva bem-sucedida profissional e financeiramente, os namorados
ocasionais que, segundo sua amiga Beth, pareciam temer a sua liberdade e
a sua posição, e falou no desejo de viver um grande amor, como o que
unia seus próprios pais.
Circe pegou um baralho comum (Alcina esperava que fosse o tarô),
embaralhou-o e estendeu o monte fechado de cartas para que ela o
cortasse, usando a sua mão esquerda.
-- Primeiro – disse Circe – farei uma pergunta simples. Quero saber se
esse grande amor está presente em seu destino ou não. Caso o baralho
responda “não”, nossa consulta sobre esse assunto estará definitivamente
encerrada e você jamais encontrará o amor dos seus sonhos. Aí então você
poderá me consultar sobre outros assuntos, profissionais, pessoais, do
presente, do futuro e do passado. Concorda?
Alcininha balançou a cabeça numa afirmativa.
Circe foi então dispondo as cartas em quatro montes separados, uma a
uma. Pegou cada um deles, manuseou-os e separou-os sob um critério que
Alcininha não saberia dizer qual fôra. De cada um dos quatro montes,
desprezou algumas cartas e empilhou-as, afastando essa pilha. Reuniu as
que sobraram, embaralhou-as novamente e agora, as dividiu em três
montes. Repetiu, com estes, a operação anterior. Desprezou algumas
cartas, afastando-as e uniu as que sobraram nos três montes,
embaralhou-as, e agora as dividiu em dois. Pegou cada montinho (restavam
pouquíssimas cartas) e separou cada um deles, desprezando algumas cartas
e finalizou com apenas 4 cartas na mão. Colocou-as viradas para cima
para que Alcininha as visse. Eram os quatro ases do baralho.
-- O baralho disse que sim – afirmou Circe num tom de triunfo – Você é
uma das poucas privilegiadas, na Terra, que tem, sim, um grande e
transcendente amor que a espera. Vamos ver agora, quem será ele.
Circe então pegou o tarô. Espalhou todas as 78 cartas, viradas para
baixo e pediu a Alcina que fechasse os olhos e escolhesse uma delas.
-- O seu naipe é Paus – disse a cartomante, separando as cartas de paus
das demais – Não me causa espanto, porque afinal o que há de mais
importante agora e sua vida é o trabalho. Paus significa o trabalho, o
sustento e, ainda, o esforço que fazemos para alcançar nossos objetivos
profissionais.
Alcininha sentiu uma certa decepção. Esperava que, ao indagar sobre o
amor, escolhesse, mesmo de olhos fechados, uma carta de copas.
Circe continuou: -- O naipe de paus está relacionado ao elemento Fogo e
sugere que, para alcançarmos o que desejamos teremos que lutar com
convicção. A primeira carta que você puxou é justamente o Ás de paus.
Representa a iniciativa. O Ás é a carta máxima de cada naipe. O começo e
o fim. Ele diz que é preciso investir, acreditar, lutar e acabará
conseguindo o que procura.
Circe pediu a ela que novamente fechasse os olhos e retirasse uma
segunda carta. Era o Nove.
-- O nove – prosseguiu simboliza o fim de um ciclo, o que significa que
você está mais próxima do seu objetivo do que imagina. O nove de paus
indica que você deverá, na luta que o às já sugeriu, procurar o
equilíbrio entre o seu plano mental e seu plano físico, o que você nunca
fez. (E aqui Alcina lembrou-se da conversa com sua amiga Beth) -- Você
nunca – ou em pouquíssimas ocasiões – se deu conta da Força Interior que
existe em você, mas é justamente essa Força que poderá auxiliá-la.
Indica ainda que precisa acreditar mais em si mesma e nos seus próprios
sentimentos e intuições pois, embora esteja enfrentando obstáculos, seu
coração a colocou no bom caminho e você deve insistir em apostar no
amor.
Mais uma. Era o quatro.
Circe riu: -- Nem vou me estender muito no significado dessa carta. O
que importa lhe dizer é que o quatro de paus, entre outras indicações,
diz que poderá surgir na sua vida um novo amor. Bom, anime-se! A próxima
carta que você tirará agora será uma carta dos arcanos maiores. Até
agora estivemos vendo os arcanos menores, eles dizem respeito ao nosso
livre-arbítrio, ou seja, o papel que podemos ter na condução de nossas
vidas, através de nossas escolhas e determinações. Mas o arcanos maiores
indicam as diretrizes dos deuses, aquilo ao qual dificilmente poderemos
escapar, aquilo que está acima das nossas influências. Pode tirar.
Alcininha titubeou. Circe não separara as cartas arcanos menores das
cartas arcanos maiores. Como poderia afirmar que ela tiraria uma dessa
últimas?
-- Você disse que agora eu vou tirar uma carta arcano maior. Como pode
ser, se aí estão todas misturadas, as maiores e as menores?
Circe sorriu: -- Vê como você duvida de sua Força Interior? Eu apenas
avisei que será uma dessas... e será!
Alcininha fechou os olhos, tirou uma carta. Era justamente carta XI dos
Arcanos Maiores: a Força.
Circe disse: - Veja, é a Força. Era sobre o que falávamos. Essa carta é
sempre positiva. Com relação ao amor, ela assegura que você poderá
encontrar, sem dúvida, um novo amor. Se unirmos todas as mensagens
dessas cartas que surgiram aqui para você, só é possível tirar uma
conclusão: esse amor verdadeiro, pelo qual você tanto anseia, está mais
próximo a você do que imagina. O que você necessita agora, minha cara, é
um mergulho interior, acreditar nesse seu Eu de dentro e o acesso a ele
exige leveza, uma leveza que a racionalidade nos rouba. Pare de pensar
sobre todas as coisas, permita-se começar a apenas sentir. Acostume-se a
ouvir a voz da alma, da sua alma e a dos outros.
Alcininha olhou para ela, sem saber bem que o pensar. Pagara 2.500 reais
para ouvir o mesmo conselho que, com outras palavras, lhe dera a sua
amiga Beth?
Para sua surpresa a Maga falou:
-- Agora mesmo, nesse exato instante, o seu Eu Racional luta para abafar
o seu Eu Interior. E isso acontece por sua vontade, pelo seu hábito de
viver tentando explicar a vida, o mundo, o destino, tudo, pela razão.
Foram os homens, os do sexo masculino quero dizer, que estabeleceram que
a Razão manda no mundo. Nós, mulheres, porém, nunca acreditamos nisso. A
intuição é forte em nosso sexo, exatamente porque faz parte do conjunto
de atributos físicos e mentais com os quais a Natureza nos privilegiou
para podermos exercer plenamente a Maternidade. Seu amor de verdade está
mais perto de você do que você pensa. Só não o está enxergando porque
olha a todos, ao seu redor, com os olhos da racionalidade. Tente ver com
o coração, com seus sentimentos e emoções, e você o descobrirá.
Alcininha balançou a cabeça, com um riso irônico e disse:
-- Não tenho a mais mínima ideia de como proceder para poder enxergar
com os olhos da intuição e do sentimento.
-- Já lhe disse – respondeu Circe – com leveza. Relaxe. Não pense.
Apenas ouça o que diz o seu Eu Interior. Será difícil no começo, mas,
como dizem os arcanos menores que apareceram aqui hoje, com esforço e
determinação você conseguirá.
-- Isso é tudo? – perguntou Maria Alcina.
-- Não – riu Circe – Ainda não vimos quem é esse seu amor!
-- Ah – fez Alcininha – e podemos saber também isso? Quem é ele?
-- O Tarô nos dirá que tipo de pessoa é ele. Caberá a você descobri-lo.
Circe misturou as cartas sobre a mesa e disse: -- Olhos fechados, pode
tirar!
Saiu um Rei de Paus.
-- Aí está – disse Circe – Um homem de ação, regido pelo elemento Fogo,
um homem com um cargo importante ou uma posição de grande poder. O Rei
de Paus, no amor, aponta para uma relação sólida, calcada em bases
profundas e com a segurança material para constituir uma família. Você é
uma mulher poderosa e de trajetória profissional, ascendente. Decerto
deve estar cercada de alguns homens com essas características. Aprenda a
abrir os olhos da alma para poder encontra-lo. Boa sorte – acrescentou
já levantando-se e dando a consulta por terminada.
-- Obrigada – respondeu Maria Alcina, levantando-se também. Apertaram-se
as mãos e Alcina saiu da sala sem olhar para trás.
Na alameda de pedras, seu carro, dirigido pelo manobrista a quem ela o
entregara na entrada, já a esperava. O mordomo se aproximou, fazendo um
sinal ao manobrista, para que aguardasse. Trazia uma cesta, muito bem
embalada em papel celofane, com uma muda de Belladona.
-- A patroa percebeu que a senhora admira essa flor e pediu que
aceitasse essa pequena lembrança de sua visita. A planta gosta de locais
sombreados onde pode receber algum sol direto pela manhã ou à tarde.
Regue com moderação e ela crescerá sadia, trazendo-lhe muitas alegrias e
carregando o ambiente com energias positivas.
O manobrista acomodou o presente no chão, sobre o carpete, atrás do
banco do carona.
...
-- E então? – perguntou Beth acariciando as folhas da Belladona que
descansava no parapeito da janela do apartamento de Alcina – Não só
descobriu que terá um amor como ainda ganhou um presente?
Alcininha riu:
-- Um presente meio caro, diga-se de passagem. Essa mulher, se receber 4
clientes por dia, 5 dias por semana, 20 dias por mês, ou seja
trabalhando pouco, fatura 200 mil reais em um mês!
-- A casa é linda, não? – disse Beth – e o jardim então... Parece mesmo
a casa de uma fada. Entrei lá e me senti num Castelo Encantado, desses
de livro, cheio de magia, energia positiva e um maravilhoso perfume no
ar.
-- Somos mesmo completamente diferentes – disse Alcina – Achei a casa
bonita e bem cuidada, mas não vi nada disso que você viu.
-- É porque – respondeu Beth – você ainda não sabia ver com os olhos da
alma e do coração!
Alcininha riu: -- É, ainda não sei!
...
O diretor da sucursal, em Salvador, da empresa onde Alcininha
trabalhava, sempre que vinha à São Paulo, olhava para aquela fria
mulher, a gerente de marketing, com olhos ternos, e ao mesmo tempo
sensuais. Nesses seis anos de empresa, todo mundo sabia que o Dr.
Hércules, diretor em Salvador, estava apaixonado por ela. Todo mundo,
menos ela própria.
Naquela tarde, finda a reunião, ele muniu-se de toda a sua coragem,
aproximou-se da mesa de trabalho dela e disse:
-- Maria Alcina, vou ficar em São Paulo por mais alguns dias para
resolver algumas questões particulares. Confesso que não estou
familiarizado com os excelentes restaurantes que existem aqui. Você
aceitaria me levar a conhecer algum deles e jantar comigo essa noite?
Ela titubeou. Olhou para ele. Chamava-se Hércules, como o deus grego,
era um homem um pouco mais velho que ela, de porte atlético, moreno do
sol da Bahia, e muito bonito. Pensou imediatamente no que diriam as más
línguas da empresa quando soubessem que ela saíra com o diretor da
sucursal. Sentiu uma forte atração por ele, coisa que nunca sentira, mal
pensara nele como alguém além do cargo que ocupava. Era o seu Rei de
Paus, mas Alcina, usando de seu pensamento racional, negou-se a
perceber. Disse:
-- Oh, Dr. Hércules. Eu lamento muitíssimo, mas já tenho um compromisso
para hoje à noite.
-- Ok – disse ele, desapontado – Outra noite, talvez. – E afastou-se.
As cartas não mentiram. Ela é que se negou a deixar-se levar pelo
coração e foi incapaz de perceber que o amor estava ao seu lado.
Anos depois, ainda sozinha e agora presidente da empresa para a América
Latina, conhecida profissionalmente como implacável e de uma exigência
doentia, lembrou-se de tudo o que Circe lhe dissera, havia tanto tempo.
E percebeu que, na fala da Maga, havia muitas possibilidades e, de fato,
nenhuma certeza. Percebeu que teria cabido a ela abrir sua alma, ainda
que com esforço (esforço esse que ela não fizera, afinal) para
reconhecer o Rei de Paus, quando o encontrasse. Uma dor fina a atingiu
na região do peito. Poderia ser ele! Poderia ser Hércules, mas ela se
negou a descobrir. Estúpida! – pensou sobre si mesma. Estivera com o
amor nas mãos e o deixara escorrer por entre os dedos! A dor fina foi
crescendo dentro de seu peito. É o meu coração, percebeu. Coração a quem
nunca dei espaço! Tinha apenas 46 anos de idade. E se foi, naquele
instante, por um infarto fulminante. Teve tempo, ainda, de pensar, antes
da partida: Talvez numa outra vida; afinal, cartas não mentem.
Em sua bonita sala, agora em um vaso enorme, as flores da Belladona
começaram, uma a uma, a murchar.
006. Nascida na Lua Cheia
Para Vera Krausz,
Grande e Amada Amiga.
Selena nascera em 1918 . Mal abrira seus olhinhos de bebê e percebeu,
pelo ambiente que a cercava, que estava novamente na Terra. Eita! –
pensou – talvez agora eu tenha uma segunda chance!
Podia lembrar-se ainda, enquanto sua consciência de vidas anteriores
perdurasse, de que pisara feio na bola, recusando-se a ouvir seu Eu
Interior, na vida que acabara de deixar. Paciência! Agora teria a sua
segunda chance. Sabia, no entanto, que a lembrança de outras vidas iria,
aos poucos, se apagando à medida que ela adquirisse a consciência plena
dessa sua nova vida. Rezou: oh, deuses, não permitam que agora eu seja
tão idiota e acredite apenas na racionalidade! Sei que não serei
completamente feliz se não encontrar a minha outra metade, a masculina,
que me complete e faça-me viver em plenitude!
A Terra, em 1918, vivia sobre o terror da Pandemia da Gripe Espanhola.
Em São Paulo, no bairro então operário da Mooca, onde ela nascera, assim
como por toda a parte, viam-se carroças circulando, cobertas de
cadáveres.
No crepúsculo de seu vigésimo dia de vida, sua mãe, Alzira, a amamentava
ao peito e seu pai, Ernesto, observava. E ele pensava: logo essa
bebezinha vai desmamar, começar a crescer e será uma boca a mais a
alimentar. Caçula de outros 5 irmãos, Selena, para o maior desespero de
seu desempregado pai, ainda tinha que ter nascido mulher... Ainda se
saísse dali uma mulher bonita e atraente, talvez arrumasse logo um bom
casamento.
Ernesto não queria sentir raiva pelo nascimento de mais uma filha, mas
sentia. As meninas mais velhas trabalhavam como operárias na tecelagem
do bairro. Os meninos já trabalhavam também, um catava sucata e a vendia
nos depósitos. Outros dois, num bar. Todos mal haviam concluído a escola
primária, gratuita, do município, o então chamado Grupo Escolar.
Juntando os rendimentos de todos, a família, ao menos, podiam comprar
comida. Barata, mas comida.
Antes, quando Ernesto era o encarregado da manutenção de uma das
fábricas da região, uma metalúrgica, continuavam pobres, mas tinham
dignidade e ele sonhara com um futuro melhor para os meninos, queria que
se formassem, estudassem, progredissem. Essa maldita gripe, matando
gente aos baldes, acabara com a dignidade, com os empregos, com a
alegria de viver!
-- Maldita Gripe Espanhola! – desabafou em voz alta – Além do emprego,
dos parentes e amigos que levou, o que mais ela vai nos tirar... A
esperança?
Levantou-se e pegou um copo. Alzira disse, com a voz cansada:
-- Ernesto, vê se não bebe hoje! Faço um chá. A vizinha me deu uma erva
muito boa...
-- Chá é coisa de mulher ou de maricas – respondeu ele, já bravo.
Nem bebeu ainda e já está agressivo – pensou ela. Estava começando a ter
medo daquele homem que ela amara um dia e, quem sabe, talvez ainda
amasse. A cachaça, muitas vezes, fazia com que ele perdesse a cabeça.
Dia desses tinha batido cruelmente num dos filhos que o chamara de
cachaceiro.
-- Dobre essa língua, seu moleque desaforado! – ele gritara então – Sou
seu pai, um homem honrado e trabalhador. Foi com o meu suor que criei
vocês, seus ingratos! – E partiu para cima do garoto, aos tapas e
murros.
Mais tarde se arrependeu e, na cama, Alzira percebeu que ele,
silenciosamente, chorava.
Naquele fim de tarde, quando ele começou a beber, Alzira teve um
horrível pressentimento. Dois copos e ele, atirando o copo vazio contra
a parede, levantou-se e foi em direção a ela e ao bebê, que dormia em
seu colo, após a mamada:
-- Zizi, sua vagabunda! Será que mais esse filho é meu também? Ou você
andou me traindo com aquele português da padaria que eu já vi olhando
você com a cara mais dura do mundo, sem nem disfarçar a sua cobiça! Me
dá essa menina aqui. Não quero mais uma no mundo para sofrer! – Tentava
arrancar a filha dos braços dela; agora, ambas choravam – Vou jogá-la no
poço!
-- Ernesto! – gritou Zizi – Você não é um assassino, homem de Deus.
Nesse momento o filho mais velho chegava do trabalho. Percebendo a
situação, se interpôs entre a mãe, que escondia o bebê dentro de sua
malha de lã e o pai. Abraçou-o com força e disse carinhosamente:
-- Papai, vamos tomar um trago lá no bar. Por conta da casa. O patrão
desconta do meu ordenado depois. Vamos lá, nós dois, conversar um pouco,
ver outras pessoas. O senhor não pode só ficar trancado nessa casa. O
senhor não é disso. Ninguém aguenta isso!
A atitude de ternura e o abraço do filho conseguiram o milagre de
estancar a fúria alcoólica de Ernesto. Saíram.
Zizi desabou na cadeira, tentando acalmar a bebê Selena. Ela acreditava,
como a maioria dos adultos acreditam, que bebês não pensam, não sentem,
não veem, não ouvem e são ainda desprovidos de consciência. Mas Selena,
que ainda era, dentro de sua mente, as outras que fôra em outras vidas,
matutava:
-- Droga! Parece que acabei nascendo no passado! E no meio da Gripe
Espanhola. Essa não! E, pela cara da casa, nasci bem pobre. Mas no
começo do século XX! Que horror! Sem celular, sem internet,
computador... Tem luz elétrica pelo menos. Mas e o banho? Água fria na
banheira fria? Estou frita! Nem ao menos TV...Será que rádio tem? Mas
nessa pobreza, com um pai que prefere me ver morta! Ainda bem que a mãe
parece amorosa. E os irmãos... pelo menos esse aí, que acalmou o pai
bêbado, é. Menos mal. E se eles não me proporcionarem nenhum estudo? Vou
viver na ignorância? Justo eu, com a minha inteligência privilegiada...
Será que, quando me esquecer do que fui em outras vidas, me esquecerei
também dos conhecimentos que obtive em todas as minhas outras
existências? Ah... tomara que haja alguma ancestral da Circe por perto,
ela poderia me ajudar... Mas, diachos, como vou lembrar disso quando, a
consciência desse meu novo corpo apagar a memória que trago de outras
vidas?
Alzira dera o nome de Selena à sua nova filha porque sabia que esse nome
significava “deusa da Lua” e a menina nascera na Lua Cheia. Ernesto não
quisera concordar, preferia então Celina. Imagine – dizia ele – vão
zombar dela na vizinhança. Ninguém se chama Selena! Acabou, depois de
muita discussão, cedendo à vontade de sua esposa.
Ora, os astrólogos explicam que a lua cheia é o momento em que o nosso
satélite exerce sua maior influência sobre a Terra, sobre as grávidas,
sobre as marés e sobre os loucos. Assim, aqueles nascem quando a lua é
cheia, são seres dotados de alto magnetismo e isso se reflete em energia
e amor. São pessoas amorosas, dedicadas aos outros e amam os animais e
as plantas. Esse era o destino de Selena em sua nova vida. Encantar a
todos!
A bebê Selena esforçava-se por lembrar-se de suas antigas vidas. Na
última, fôra Maria Alcina, a executiva que negava-se a deixar que sua
voz interior falasse mais alto do que sua racionalidade. Antes, uma
sacerdotisa celta. Em ambas essas vidas morrera muito cedo. Na última, o
coração cansado de ser ignorado por ela, negara-se a continuar
funcionando. Como sacerdotisa celta fôra queimada viva como bruxa, em um
momento qualquer da inquisição católica. Na Terra, tinham sido essas
duas vidas. Mas a bebê podia lembrar-se de ter nascido em outro planeta,
um planeta de muito verde e de alto respeito pela Natureza. Mas era só
isso. Não sabia quem fôra nessa vida nesse outro planeta, da qual
vagamente se lembrava... Estranho – refletiu – talvez só seja possível,
como ser da Terra, lembrar-se das vidas aqui.
Por sorte, três meses depois de seu nascimento, Ernesto conseguiu seu
emprego de volta. A fábrica ressurgia das cinzas da pandemia e o
recontratou. A família voltou a se estabilizar.
Aos 9 meses de idade, Selena já ameaçava andar e falar. Com um ano e
meio, falava, andava, e todos comemoram o que era considerado uma
precocidade positiva. Seus irmãos e sua mãe a enchiam de mimos e se
sentiam muito atraídos por aquela menina tão encantadora. Os vizinhos
traziam-lhe pequenos presentes: uma blusinha de tricô, feita pela avó de
um deles, um bolo quentinho que acabara de sair do forno, bolinhos de
chuva... Um dia, uma dessas vizinhas lhe trouxe um gatinho, cuja gata
que ela tinha em casa, acabara de desmamar. Encantada, Selena disse:
-- Meu liroucati!
E o gatinho passou a chamar-se então Liroucati.
Meses depois um engenheiro inglês, que acabara de instalar-se no bairro,
veio conhecer a família de seu amigo Ernesto. O inglês, William, viera
ao Brasil, a convite da metalúrgica, para implementar novos
procedimentos e técnicas na primitiva indústria. Ao ver todos chamarem
de Liroucati o gatinho de Selena, exclamou:
-- Ôhh! O gato desse casa ser meu... meu... do meu país, digo.
-- Como assim, Mr. William, o gato é de seu país? – perguntou Ernesto.
-- Ele chamar Little Cat, que querer dizer “gato pequeno” em inglês.
Todos se espantaram. Como Selena descobrira esse estranho nome para seu
gatinho?
A menina explicou:
-- Eu sei falar inglês!
Como, se ninguém por ali, sabia?
Ela continuou:
-- É que eu vivi, um dia, no futuro, depois do ano 2000. E, lá, aprendi
a falar essa língua.
Seu irmão mais velho riu:
-- Que imaginação! Como pode ter vivido no futuro? O futuro não existe.
-- Eu vivi lá! – exclamou a menina, já brava – e pronto!
Todos riram, encantados com ela, mas sem conseguir explicar como ela
poderia saber que Liroucati seria, de fato Little Cat.
O tempo passou. Selena cresceu e todos acabaram esquecendo a história do
Liroucati que, inclusive, morreu precocemente, ainda pequeno, esmagado
pelas rodas de uma carroça que passava na rua da casa deles.
O fascínio, porém, pela menininha não foi esquecido. Todos se encantavam
com a sua vivacidade, inteligência e, principalmente, com sua fluência
verbal. No dia em que completou 6 anos de idade, depois de apagar as
velinhas do seu bolo de aniversário, Selena exclamou:
-- Agora que já sou grande, vocês devem me pôr na escola!
Gargalhada geral. Seu irmão disse:
-- Meninas não precisam ir à escola. Lá não ensinam a cozinhar, varrer,
lavar e passar e a criar bebês.
Selena respondeu: -- Eu não sou uma menina. Sou um ser inteligente e não
quero varrer e cozinhar e nem vou ter bebês. Eu quero ser uma cientista.
-- Cientista? – perguntou uma de suas irmãs – Você sabe o que é isso?
-- Sei – respondeu Selena com segurança – Cientista é aquela pessoa que
estuda as leis da Natureza e do Céu.
Nova gargalhada.
Aos 7 anos, Selena foi, afinal, de tanto amolar toda a família com esse
seu desejo, para o Grupo Escolar.
Aprendeu as primeiras letras com rapidez e logo se pôs a reclamar que,
na sua casa, não havia livros. Ela queria livros!
Depois que a Gripe Espanhola desapareceu, tão misteriosamente quanto
surgira, os paulistanos ganharam um novo ânimo. Em 1922, a Semana de
Arte Moderna, sacudira a cidade. E o povo, mesmo as pessoas mais
simples, foram contaminadas por aquela efervescência cultural que os
jornais não se cansavam de criticar ou de elogiar, enfim, de debater.
Nesse contexto surgiu na cidade a primeira versão de um “Clube do Livro”
e a professora de Selena, Dona Anália, também vítima dos grandes
encantos da menina, era membro desse clube. Assim, começou a trazer
livros para Selena: Malba Tahan, Machado de Assis, José de Alencar. A
professora, ainda, dava aulas particulares em casas bem mais ricas do
que a de Selena. Maria Antônia Prada, matriarca de uma das mais
tradicionais famílias paulistanas, ouviu atenta a história da aluna
Selena, que queria ler, e disse à professora Anália, que poderia pegar
emprestado qualquer volume da sua vasta biblioteca e leva-lo à menina.
Quando Selena leu “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll,
publicado em 4 de julho de 1865, endoidou. Percebeu que a vida escondia
outros segredos, segredos que transcendiam mesmo o que ela poderia
esperar da tão amada ciência. E a ciência veio com Júlio Verne e suas
previsões fantásticas de um mundo que ainda não nascera. Foi em Júlio
Verne que Selena pôde lembrar-se, mais claramente, de sua vida no futuro
da Terra. Ela vivera nesse futuro e até além dele. Lembrou-se dos
submarinos, das viagens espaciais e ainda dos computadores e celulares.
Então, exercendo seu enorme poder de sedução, começou a falar aos
vizinhos, na escola, em sua própria casa, sobre o que o futuro reservava
a aqueles que estavam vivendo o alvorecer da tecnologia, que se
espraiaria pelo século XX.
No começo, todos achavam graça nas histórias da menina. Alguns diziam
que ela seria uma escritora, quando adulta, já que gostava tanto de
livros e tinha essa imaginação incrivelmente fértil.
Mas depois, dada a riqueza de detalhes e a convicção com as quais Selena
narrava suas histórias, começaram a teme-la:
-- É uma bruxa! – diziam – É parceira do Diabo! É perigosa e maléfica,
tem a chave da porta de outros mundos.
Foi então que, Alzira, preocupada com a segurança de Selena, que já
levara ovos podres e coisas piores, atiradas por transeuntes, resolveu
leva-la a uma cartomante, no acampamento dos ciganos, à beira do Rio
Pinheiros, do outro lado da cidade.
Assim que Selena entrou na tenda da cartomante, exclamou:
-- A senhora é a Circe! Eu me lembro!
A cigana aproximou-se acariciou o rosto da garota e disse:
-- Não, querida, nós nunca nos encontramos.
-- Encontramos, sim! – exclamou Selena – No futuro!
-- Não, eu não sou Circe – respondeu a cartomante – Eu me chamo Samara.
Mas já ouvi falar em você. Você é a menina da Mooca que diz conhecer o
futuro.
-- Isso mesmo, dona Samara – interrompeu Alzira – E os vizinhos já estão
começando a chamá-la de bruxa, feiticeira, alguns a hostilizam. Não sei
o que fazer. Por isso, vim consultá-la.
Samara dispôs as cartas sobre a sua mesa redonda, de maneira muito
diversa – lembrava-se vagamente Selena – da forma usada por Circe no
futuro: um círculo formado por pares, voltados para baixo. Pediu que a
menina escolhesse uma delas e então virou-a para cima. Era a estrela. A
Carta XVII dos arcanos maiores do Tarot.
-- Começamos bem – disse Samara à Alzira – Selena tirou uma das mais
belas cartas do tarô. Significa uma vida plena: saúde, sucesso,
prosperidade, um anjo sempre a olhar por ela, força para superar
obstáculos e proteção divina. Indica ainda que ela encontrará o
verdadeiro amor nessa vida.
-- Oba! – quase gritou Selena, lembrando-se da sua última frustração, na
outra vida, por não ter aceitado reconhecer o seu Rei de Paus.
Samara riu, mas Alzira não.
Por mais de uma hora, as cartas foram consultadas. Ao final, a
cartomante disse:
-- Selena, você terá que aprender uma coisa fundamental para o seu
sucesso na vida: jamais revele a ninguém o que sabe do futuro, ou do
passado, nem mesmo a alguém em que você confie. O seu privilegiado
conhecimento está dentro de você para servir apenas a você mesma. Com
isso, acabará também servindo aos outros. No entanto, quando você fala
de mistérios às almas que estão vivendo pela primeira vez, ou às que não
estão preparadas para ouvir e compreender os Mistérios Maiores da nossa
Vida, gera nessas almas sentimentos dúbios que vão do medo do
desconhecido à hostilidade contra você, menina. Se quiser, use tudo isso
nos livros, pois já sabemos que seu destino nessa estada na Terra é
escrever. O papel aceita tudo, podem alguns achar que seus livros são
insanos, mas tudo não passará de ficção. Se você sente necessidade de
dividir os conhecimentos que trouxe do passado ou do futuro, faça-o em
forma de ficção. Quem puder entender, entenderá.
Zizi assustou-se um pouco com a seriedade de Selena com relação ao
conselho de Samara. A menina o interpretou literalmente e parou de falar
em futuro, conquistas tecnológicas, o que, convenhamos, assustava
bastante as pessoas naquele ano de 1930.
No entanto, misteriosamente, quanto mais Selena ia se calando, mais
conseguia lembrar-se de suas vidas passadas.
Nessa lembranças, no entanto, nem tudo eram flores.
Às vezes acordava à noite, gritando de dor, porque sentia que as chamas
da fogueira estavam consumindo seu corpo. Outras, porque se lembrava
daquele instrumento de tortura, usado pelos padres católicos, contra as
bruxas, que, amarrados aos seus pulsos e calcanhares, numa cama de ferro
que os algozes faziam ir se expandindo e, assim, esticando seu corpo,
rompendo os ligamentos, fazendo-a querer morrer, de tanto que doía.
Em outras noites, ainda, via os lindos bosques em que praticava seus
rituais de fertilidade, serem destruídos, pelo fogo, pelos inimigos
cristãos, seus companheiros correndo, em pânico, para fugir das chamas
que consumiam as árvores, as plantas, as flores... Era um verdadeiro
terror!
Sabia, então, que naquela vida da Idade Média, cheia de encantos e de
descobrimentos, com o advento do cristianismo, começaram as mulheres a
viver a grande repressão de suas capacidades mágicas o que culminou,
afinal, no sentimento de inferioridade e menos valia que abafava, agora,
no sexo feminino, todas as suas potencialidades.
Compreendeu também que, em sua vida no século XXI, a racionalidade e a
atitude masculinizada que ela tivera então, para galgar altas posições
no mundo coorporativo, eram o reflexo, ao contrário, no espelho de sua
feminilidade: em busca da igualdade de oportunidades no trabalho, ela
negara o seu lado bruxa, o feminino ancestral que habitava em sua alma,
para tentar pertencer ao mundo da testosterona, da racionalidade
masculina. Quão estúpida fôra – refletia então. Tão estúpida a ponto de
não reconhecer o verdadeiro amor quando este a procurara.
Durante dez anos, Maria Antônia Padra, que a professora Anália
apresentara à menina Selena, encantada com a força e a personalidade,
além do gosto pela Literatura, de Selena, resolvera financiar lhe os
estudos. Ela então, menina pobre do bairro operário da cidade, foi
estudar entre as ricas, num dos melhores colégios de São Paulo.
Formou-se no que era, na sua época, o curso Clássico.
Depois do Grupo Escolar, cursara mais 8 anos no colégio das ricas.
Aos 19 anos, formada, era considerada por suas colegas e professoras
como uma moça brilhante, embora ligeiramente revoltada. Isso porque
vivia falando em ideias feministas, identificando-se com Nísia Floresta,
Bertha Lutz, Carlota Pereira de Queiroz, Pagu e sua própria primeira
professora, Anália.
A ciência, que ela pensara ser sua vocação, quando ainda criança, foi
substituída em sua alma, pela sociologia, a Ciência Social.
Se, quando Selena parou de falar em suas vidas passadas e futuras, por
um lado, pararam as agressões e os mexericos por parte da vizinhança, já
em sua própria casa Selena enfrentava a hostilidade e os ciúmes dos
irmãos, principalmente das irmãs mulheres. Por que não tiveram elas os
mesmos privilégios da irmã caçula? Elas não tinham estudado senão o
primário, como também os irmãos homens. Tinham empregos humildes
enquanto Selena nem trabalhava. Seus dias eram dedicados à leitura e aos
estudos. Frequentava aquele colégio de meninas ricas...
Aliás, no início do curso, as meninas ricas também a hostilizavam,
porque sabiam que ela vinha de uma família pobre, de um bairro feio (no
começo do século XX, a Mooca ainda não era o bonito lugar que seria na
década de 2020) e que só estava ali pela caridade de uma senhora da alta
sociedade que – sabe-se lá como! – se impressionara por ela.
Com o passar dos anos, porém, os encantos de Selena – a Deusa da Lua,
nascida sob a proteção da Estrela do Tarô – foram conquistando as suas
colegas, seus professores. As menina ricas, diante dos discursos
feministas de Selena, começaram a questionar o seu próprio destino como
rainhas-do-lar, um lar de fato sustentado e dominado por um marido. Por
que não poderiam, elas também, prover o seu próprio sustento, dirigir a
sua própria vida? Por que não poderiam votar para eleger seus
representantes e governantes?
Muitas delas, por influência dos discursos e das reflexões de Selena,
tornaram-se sufragistas e pagaram o preço de sua posição política:
zombarias, hostilidades, desprezo e a desconfiança dos homens, que
poderiam ser os “bons partidos” de suas vidas, mas que, agora, as
temiam.
Selena, certo dia, entregou à porta da casa de Maria Antônia Prada, sua
benfeitora, os originais de um dos livros que escrevera: “Condição de
Mulher”. Era tão polêmico – julgou então a velha senhora – mas tão rico
e tão bem escrito, numa linguagem lírica, poesia mesmo, e apontava
tantas perspectivas para a liberdade do sexo feminino, para a
possibilidade de realização plena das mulheres, que a matriarca dos
Padra resolveu bancar-lhe a edição e ainda proporcionou-lhe uma
maravilhosa noite de autógrafos, regada à champagne francês, no elitista
Clube Atlético Paulistano, na Rua Estados Unidos.
O livro causou indignação ao crítico do jornal O Estado de São Paulo,
mas foi muitíssimo elogiado pela crítica de outro jornal, então seu
maior concorrente, O Diário Popular.
Comprado evidentemente por todas as quase cem famílias presentes ao
lançamento no clube, agradou a muito poucas. Outras, a maioria,
desprezaram o seu conteúdo e o livro, assim, acabou indo parar na mão
das empregadas dessas casas que se encarregaram em distribuir aqueles
exemplares, abandonados, em seu próprio meio. As mulheres mais pobres,
aquelas que tinham o privilégio de serem alfabetizadas, disputavam os
exemplares, encantadas pelas possibilidades, que o livro oferecia, de
uma vida mais livre e mais plena.
O texto do livro foi traduzido para o inglês e enviado, por uma
feminista brasileira de então, ao National Woman's Party
nos Estados Unidos.
Dois meses depois, Selena foi convidada pelas sufragistas americanas
(que tinham conquistado o direito ao voto, anos antes, em 1920) para dar
uma palestra sobre sua obra em Nova Iorque.
Ora, Selena falava inglês fluente, pois sua alma aprendera o idioma em
sua vida, como Maria Alcina, no século XXI. Foi o maior sucesso.
Logo o livro estava em todas as livrarias dos Estados Unidos, com o
título de “Women’s Status”.
Foi convidada então, pela organização feminista fundada na Inglaterra
por Emmeline Pankhurst, para dar sua palestra.
Na plateia, estava Sir William More, um simpatizante das causas
feministas, assim como o fôra o próprio marido de Emmeline, Richard.
Apaixonou-se por aquela “selvagem” do longínquo Brasil, ao vê-la
discursar. Indiferente aos muitos preconceitos de classe, acabou por
pedi-la em casamento. Ela, ao vê-lo, reconheceu nele o “Rei de Paus” que
rejeitara em sua outra vida, no século XXI.
Casados, foram morar na mansão que ele mantinha no campo. No começo,
eram naturalmente hostilizados pelas famílias da nobreza britânica, à
qual ele pertencia. Mas, com o passar dos anos... quem poderia resistir
aos encantos de Selena?
Tiveram dois filhos. E, durante o resto de sua vida, Selena jamais
desamparou sua família brasileira que, em algumas ocasiões, foi levada a
conhecer os campos verdes da Inglaterra e nunca mais passara por apertos
financeiros.
Em 1945, quase ao final da II Guerra Mundial, o então Cel. William foi
abatido por tropas inimigas.
As cartas não mentem, porém também não dizem tudo. Ela encontrara, nessa
vida do século XX, o seu Rei de Paus. Mas passara apenas 7 anos ao seu
lado.
Selena – apesar da dor da perda de seu grande amor – continuou
escrevendo, publicando e encantando a todos. Criou seu casal de filhos
com uma visão progressista, mas jamais revelou a eles os seus
conhecimentos de vidas anteriores. Mesmo assim, quando na adolescência,
os filhos voltaram-se contra ela chamando-a de “a bruxa brasileira”(The
Brazilian Witch), como se isso fosse uma desqualificação. Ela ria e os
chamava de “muggles”*.
Selena continuou a pesquisar a história das mulheres e a escrever seus
livros e a encantar as plateias com seu poder de sedução de lua e de
estrela. Até que, em 1979, morreu dormindo. A melhor morte para os que
vão e a pior, para os que ficam. Seus filhos, completamente chocados,
carregaram para sempre a culpa de terem zombado daquela mulher sábia.
Em seu sonho, na noite de sua morte, ela se via renascer, agora num
planeta feliz, Ahtilantê, ainda dentro da Via Láctea, que orbitava em
torno de uma estrela, o sol dele, duplo, chamado Capela.
* Muggles - gíria para maconha (1926) usada por JK
Rawling em seus livros “Harry Potter” com o significado de “non magical”,
pessoas que nascem sem poderes mágicos, e traduzida no brasil por
“trouxa” que remete ainda à “trouxinha de maconha”.
019.
Cativos
Para Vilma Warner,
atriz, modelo e ativista política. Velha amiga.
Estava parecendo mesmo que o seu destino de alma sábia era viver e viver
de novo e mais uma vez, na Terra. Verdade que a Terra era o mais bonito
dos planetas em que ela já vivera. Pena que os seres humanos ali
acabaram cavando a sua própria extinção. No entanto, ela sabia, 10 mil
anos pouco significavam para o Cosmos e, depois do aniquilamento
daqueles bobocas poluidores, outros seres humanos viriam ressurgindo
sobre o Planeta e, talvez, não fizessem, afinal, as mesmas besteiras
ecológicas do que os humanos do chamado Terceiro Milênio.
Sabia também que os grandes feitos daquela Humanidade extinta, os feitos
realmente positivos, estavam vivos nos Registros Acásicos do Céu.
Mozart, Van Gogh, Drummond, Picasso, Pessoa, Platão, Shakespeare... Toda
a beleza criada por esses seres iluminados jamais se perderia no
Universo. Estavam lá, no Grande Inconsciente Coletivo das Almas e
acabariam por se repetir numa nova Humanidade.
Mas, com mil demônios, lá estava ela nascendo de novo no passado, antes
da destruição daquela mais recente raça humana.
Abriu seus olhinhos de bebê para ver se conseguia descobrir em que
momento do Deus Tempo estava nascendo agora.
Sentiu que dois braços fortes a amparavam e traziam-na junto a um colo
negro. Duas mamas imensas e ela abocanhou uma deles, para sua primeira
refeição dessa nova vida. Percebeu então que essa sua nova mãe chorava.
Sentiu uma sacudidela e, de repente, um ar frio e salgado penetrou seus
pulmõezinhos de bebê. O chão balançava e ela compreendeu que estava no
mar.
Imediatamente, porém, o cheiro do sofrimento físico a atingiu. Muitos
cheiros. Vômito. Fezes. Feridas purulentas. Peste. Ratos. Tinha até o
cheiro da morte. Correntes, pendiam dos pulsos e tornozelos daqueles
homens e mulheres fétidos, adoentados, alguns que tinham sido príncipes
e princesas em suas nações de origem, antes de escravizados.
“Em que momento da escravidão dos africanos estarei agora?” – pensou
ela, já entendendo que estava num navio negreiro. Mas indo para qual
país?
Quando viu alguns marinheiros descerem ao porão do barco, para recolher
três cadáveres, e percebeu que eles falavam português, pensou: Bom, pelo
menos talvez estejamos indo para o Brasil... Menos mal!
Fechou seus olhinhos e só os abriu quando chegaram ao seu destino.
Nossa! Era lindo! Um Rio de Janeiro sem prédios na orla. Uma baía de
Guanabara sem resíduos fétidos enegrecendo lhes as águas. O ar puro!
Porém, foi a única coisa linda que a bebê, da nação dos bantos, trazidos
de Moçambique, viu no desembarque do último navio negreiro a aportar na
cidade do Rio de Janeiro.
Era 1852. Dois anos antes a Lei Eusébio de Queiroz proibira de vez o
tráfico negreiro em águas brasileiras. Por sorte, uma outra lei
brasileira, um pouco anterior, vedava aos traficantes dos negros a
separação das famílias na hora da venda. Por isso Kieza(1), filha de
Ayana(2) e Akin (3), nascida em meio ao incrível sofrimento de pessoas
transportadas num imundo porão de navio, foi vendida, juntamente com
seus pais, a uma família abastada de um comerciante que não só morava
próxima ao Palácio Imperial, como também o frequentava em algumas
ocasiões.
Dizia-se, na cidade, que às vezes o próprio Imperador ia até a Loja de
José Basílio para adquirir livros importados e a própria Imperatriz,
convidava Maria Caetana para o chá da tarde e, depois, as duas senhoras
se enfiavam na cozinha do Palácio para discutir e trocar receitas da
culinária local e internacional. A Imperatriz, apesar de sua origem de
Princesa da Sicília e esposa da Autoridade Máxima do Brasil, às vezes
arregaçava as mangas e ia pra cozinha, preparar pratos especiais que os
negros (todos alforriados) do Palácio serviriam, mais tarde, à família
imperial.
José Basílio e Maria Caetana tiveram 8 filhos, mas apenas 4 deles
sobreviveram à primeira Infância: João, Filipe, Joaquina e Augusta.
Quando a nova família de escravos chegou à casa deles, Augusta, a caçula
de apenas 8 anos de idade, encantou-se por aquela bebê-negrinha e foi
logo exigindo:
-- Ela é minha! Eu a quero! Ela é o meu neném.
O pai, que sempre fazia as vontades da menina, concordou:
-- Está muito bem. Mas você vai ter que trata-la, ensiná-la a falar e a
andar, você vai banha-la, vesti-la e alimentá-la. Ela é um bebê de
verdade, não um brinquedo!
Enquanto Ayana amamentou a filha, Augusta ficou livre da última
obrigação que o pai lhe impusera. Mas aprendeu a dar banho na menininha
e vestia-a como se ela fosse boneca. Quando, porém, se pegava longe das
vistas de todos, fazia suas pequenas maldades, beliscava o corpinho da
bebê, enfiava o dedo no seu ânus – quentinho – bolinava suas partes
íntimas, dava-lhe fel para beber, tudo porque ver a pobrezinha sofrer
dava-lhe um prazer perverso. E, quando Kieza caía no choro, Augusta a
pegava em seus braços, acariciava lhe o corpo, dava-lhe ternos beijinhos
e fazia-lhe cócegas, para, então vê-la rir.
Assim, entre a maldade e o carinho de Augusta, Kieza foi crescendo.
Acostumou-se às brincadeiras sexuais de Augusta e, com o tempo, no meio
da noite, Kieza escorregava para a cama da patroa e ambas ficavam ali,
no escuro, debaixo das cobertas, bolinando-se mutuamente. Acabaram,
desta forma, sendo uma espécie de cúmplices.
João e Filipe (respectivamente 4 e 2 anos mais velhos que Augusta)
frequentavam as escolas cariocas mantidas por jesuítas. Joaquina recebia
a primorosa educação das freiras católicas, no convento, onde aprendia a
arte de ser uma perfeita esposa para um fidalgo e todas as lições
necessárias para governar, com maestria, um lar abastado. Já Augusta
tinha um mentor, um pianista pobre e homossexual, que ensinava-lhe
música, letras, história, matemática e ciências. Quando Kieza chegou aos
7 anos de idade, Augusta exigiu dos pais que a pequena escrava fosse
alfabetizada. José Basílio riu das ideias da filha, e disse:
-- Vocês, meninas, só estudam porque sua mãe faz absoluta questão disso.
Por mim, mulher não precisa saber ler nem escrever e, muito menos,
conhecer história. Para que? Para casar-se, ter filhos, cuidar da
casa... A minha Maria Caetana porém diz que a Princesa Isabel está sendo
educada pelo Imperador para governar, recebeu educação igual a de um
homem e que, quando ela for imperatriz, vai baixar um decreto obrigando
todas as meninas do Rio a frequentar escolas. Não vai ter escola
suficiente, mas todos sabem que essa moça, a princesa, não passa de uma
sonhadora. Agora... educar uma escrava? Por Deus, minha filha! Para que?
-- Para que ela possa ler livros para mim, antes de eu dormir.
José Basílio, que sempre fazia as vontades de sua filha caçula, acabou
cedendo.
Augusta era apenas 2 anos mais velha que a Princesa, que nascera em 29
de julho de 1846 e estava agora com 13 anos. A Corte, porém, sabia que
Isabel tinha mestres vindos do Exterior e, apesar de sua pouca idade,
falava três idiomas, estudava todas as ciências e até a arte da
política. Estava sendo educada para ser Imperatriz, já que D. Pedro II e
Tereza Cristina tinham perdido seus dois únicos filhos machos: o
primeiro, em 1847 e o segundo, em 1850.
A família de Kieza fôra realmente abençoada por ter sido adquirida pelo
casal de comerciantes. Maria Caetana era uma mulher religiosa, mas não
estúpida como tantas carolas locais que viviam falando em inferno, em
castigo divino e outras bobagens. Caetana era generosa, bondosa,
carinhosa. E o era assim com todos, inclusive com os escravos. A mãe de
Augusta, depois de 10 anos que adquirira aqueles escravos, via em Ayana
o próprio significado de seu nome, linda flor. Fez dela sua sombra. Se
Caetana era bondosa demais para punir os outros escravos serviçais por
suas falhas ou desatenções, Ayana o fazia pela dona da casa. Tinham, na
residência, cerca de 20 escravos e todos temiam “a negra besta” (como a
chamavam, pelas costas). Alguns – embora reclamando que aquele fosse, em
seu continente de origem, trabalho para mulher – cuidavam das hortas, do
pomar e dos cavalos na estrebaria. As mulheres se revezavam na cozinha e
Akin, o pai de Kieza, acabou por se tornar – a exemplo do que ocorrera
com sua mulher, Ayana e Maria Caetana – também o braço direito de José
Basílio. Acompanhava-o a toda parte, ia com ele ao Porto vistoriar as
ricas mercadorias que chegavam de muitos lugares do mundo para abastecer
a mais fina loja do Rio de Janeiro, a dele. Eram porcelanas inglesas,
tapetes persas, tecidos finíssimos, perfumes franceses, vinhos e as
demais iguarias exigidas pelos muito ricos, além das mais recentes obras
literárias e científicas publicadas na Europa. Basílio ensinou-o a
cuidar e a classificar o estoque de mercadorias e Akin, dessa maneira e
como estava acontecendo com sua filha, foi aprendendo as letras e os
números. Quando deu por si, sabia ler.
Já sua filha, Kieza, descobrira os segredos da horta e do jardim. Ia lá,
várias vezes ao dia, e, com os escravos que cuidavam da terra, foi
conhecendo as ervas, as frutas. Logo estava entendendo a linguagem das
plantas, da mesma forma com que entendera a linguagem das letras. Com o
passar dos anos, dominou todas as técnicas que alguns dos escravos
conheciam sobre o uso medicinal das plantas e foi além dessas: criou as
suas próprias. Preparava, na cozinha da casa, chás, unguentos, poções e
ninguém mais, por ali, tinha uma dorzinha de cabeça sequer que não fosse
minimizada por suas beberagens (o que vinha dos salgueiros, por exemplo,
acabava com elas); ninguém mais teve uma ferida que não fosse tratada
por ela; ninguém mais se queixou de dor nas juntas... e assim por
diante!
Mas, nem por isso – a situação privilegiada de escravos urbanos, bem
alimentados e relativamente bem tratados – os negros da casa ignoravam o
que acontecia com seus irmãos de continente no resto do país. Sabiam que
os escravos que tentavam fugir das propriedades rurais (fossem elas
grandes fazendas ou modestos sítios), ou mesmo os que cometiam pequenas
faltas, eram duramente castigados, atados aos “troncos”, chicoteados até
quase perderam os sentidos e tinham suas feridas, decorrentes do
espancamento, salgadas. Alguns morriam de febre, em alguns dias e até em
algumas horas depois. Sabiam que a alimentação dos negros era
basicamente feita das sobras das mesas dos patrões. Sabiam que as negras
eram frequentemente estupradas por seus proprietários e que tudo isso
acabava por desintegrar várias famílias negras, formais ou informais,
que se constituíam regularmente.
O Brasil foi o último país do mundo a libertar seus escravos.
Enquanto isso não acontecia, cada vez mais a ideia abolicionista ia
tomando corpo entre as lideranças políticas e intelectuais da nação.
Lá pela década de 1880, quando os filhos de João Basílio e Maria Caetana
já eram homens e mulheres adultos e tinham suas próprias famílias
(exceto por Augusta que vivia dizendo que não se casaria por não ter
“vocação para escrava”) e quando a Princesa Isabel já não fazia segredo
tanto de suas ideias abolicionistas quanto sufragistas e pela igualdade
entre os gêneros, duas leis que visavam melhorar a condição dos escravos
já existiam: a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários
(1885). Essa última, alforriando escravos maiores de 60 anos de idade,
fez com que montanhas de negros velhos fossem abandonados e passassem a
perambular pelas matas, pelas cidades, mendigando sua sobrevivência,
trabalhando muitas vezes, duramente, pelo prato de comida que, mal ou
bem, teriam normalmente quando escravizados. A primeira, mais antiga, a
que alforriava imediatamente todos os bebês nascidos dos ventres das
escravas, acabara por fazer com que os patrões não tivessem mais o menor
interesse em zelar pelos bebês que, crescendo, seriam homens livres e
não mais propriedades deles. Ambos os resultados tinham sido tiros
bem-intencionados que saíram pela culatra.
Kieza e Augusta continuavam a frequentar uma a cama da outra. Eram
jovens cultas, bonitas e bem tratadas. A escrava, depois que aprendera a
ler, devorava os livros da biblioteca de José Basílio e ajudava sua mãe
a administrar a casa. A Princesa Isabel, certo dia, recebeu ambas para o
chá, juntamente com Maria Caetana e a Imperatriz. Suas altezas ficaram
encantadas com as jovens, na verdade, mais encantada ficou Isabel, que
encontrou, nos ideais professados por Kieza e Augusta, um grande eco de
suas próprias pretensões humanísticas. A Princesa não tinha preconceitos
e estava acostumada a receber vários negros – alforriados, intelectuais
e escravos fugidos – à sua mesa, tanto no Palácio do Rio quanto no de
Petrópolis.
Em 1883 formara-se a Confederação Abolicionista. Nomes importantes, que
passariam para a História, faziam parte dela:
André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio, Francisco José do
Nascimento, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e mais inúmeros cidadãos e
cidadãs cariocas que não podiam suportar a escravidão.
Foi também por essa época que o português José Seixas de Magalhães
começou a escrever o seu nome na História. Ele fabricava malas e sacos
de viagem em sua fábrica no centro do Rio, na Rua Gonçalves Dias. Era um
sucesso, uma verdadeira versão carioca de Louis Vuitton, e já expusera
seus produtos até em Paris. Seixas tinha ainda uma chácara onde
cultivava flores e escondia escravos fugidos. Assim, a propriedade
passou a ser conhecida como “Quilombo Leblon”, nome que se referia ao
antigo proprietário daquela erma região, o francês Carlos Le Blon. Lá
eram cultivadas flores nativas e flores de outros lugares do mundo. Uma
delas era a Camélia, flor até então desconhecida dos brasileiros, a
preferida da Princesa Isabel. Tanto a princesa quanto os membros da
Confederação Abolicionista e até mesmo os seus simpatizantes passaram a
usar camélias brancas na lapela. A Princesa mandou fazer uma cerca viva
de camélias na sua residência de Petrópolis. A camélia enfeitava sua
mesa, seu decote, sua capela, sua escrivaninha.
Logo todos os escravos fugidos sabiam que, se encontrassem alguém nas
ruas usando uma camélia na lapela, ali estava um amigo. O quilombo do
Leblon crescia.
A polícia sabia. Mas não ousaria bater de frente com ninguém nada mais
nada menos que os protegidos de sua Princesa. Era um lugar alegre, o
quilombo. Os ex escravos sentiam-se valorizados e amparados. Cantavam.
Faziam festas, grande parte dos abolicionistas ia lá, comemorar,
participar dos batuques dos negros e aliviar as tensões cotidianas com
largas doses da melhor cachaça.
Um dia, Augusta e Kieza, acompanhadas por Akin, também foram. E Kieza
não conseguiu, a partir daí, pensar em mais nada a não ser na Chácara
das Flores. Imaginava que poderia produzir, lá, muito mais do que
produzia nos jardins e pomares de Maria Caetana e José Basílio. Além
disso, contagiara-lhe a alma a alegria que lá reinava. Seus irmãos
afrodescendentes, suas danças, suas músicas... Disse para Augusta:
-- Tem tanto negro bonito lá que eu acabaria por arrumar um marido.
Augusta, ressentida, respondeu:
-- Está sentindo falta de homem? Não basto eu?
Não. Não bastava. De fato, aquele domingo inteiro vivido na Chácara das
Flores, despertara em Kieza não apenas a paixão pelo lugar, mas também
por um quilombola forte, uns 10 anos mais velho que ela, com um riso
estupendo e as costas lenhadas por cicatrizes de algumas surras que
levara no tronco da fazenda de onde acabara fugindo. Seu nome era Bomani(4),
que significa guerreiro.
Kieza tentou pelo lado do bem. Conversou com Augusta e Maria Caetana:
queria sua alforria, queria ir viver no Quilombo do Leblon e usar
camélias nos cabelos.
Quando José Basílio ficou sabendo do desejo da escrava, sua primeira
reação foi de decepção e de tristeza. De fato, estimava a garota como se
fosse sua própria filha. Parecia a ele ter recebido dela uma facada
pelas costas.
-- Ingratidão! – exclamou ele com um grito.
Caetana assustou-se. Nunca vira o marido, em todos esses anos, gritar.
-- Fizemos tudo por essa moça! – continuou ele -- Pagamos-lhe os
estudos, a vestimos de seda, com os mesmos trajes usados por nossas
filhas! Fizemos dela uma mulher culta, coisa quase impossível para a
maioria das mulheres, ainda que não escravas. Não nega a raça, mesmo,
essa ingrata! Prefere sair do conforto e do luxo do nosso lar para ir
viver num bando de negros sujos e vagabundos!
-- Agora você está sendo injusto – respondeu Caetana com calma – Os
negros da Chácara das Flores não são sujos e, muito menos, vagabundos.
Trabalham para o Sr. Seixas, são alegres e cordiais.
Basílio mandou chamar Kieza.
-- Você sempre recebeu, desde bebê, quando chegou a essa casa, tudo de
bom e do melhor. Mas agora – disse ele levantando-se da mesa do jantar e
tirando a cinta da calça – está na hora de receber um corretivo. É para
o seu próprio bem. Para acabar com essa ingratidão. Deite-se ali, de
costas. E, se não quiser que eu rasgue o seu lindo vestido, abaixe-o! –
disse ele, apontando um sofá.
A pele brilhante e imaculada de Kieza logo foi cortada em tiras, pela
violência da cinta, pelo lado da fivela, com que ele a surrou. O sofá
ficou todo manchado com seu sangue. Augusta não fez o menor gesto em
defesa da negra. Até voltou a sentir um resquício do prazer sádico que
sentira, há anos, ao machucá-la, quando ela ainda não passava de uma
bebê.
José Basílio chamou Akin e Ayana e lhes disse:
-- Essa sua filha ingrata levou uma surra para aprender a não cuspir no
prato que comeu. Levem-na para os alojamentos de vocês, aqui, no quarto
de Augusta, não há mais lugar para ela. A partir de hoje, acabam-se os
privilégios dela!
Consternados pelo sofrimento de Kieza, seus pais obedeceram. Trataram de
seus ferimentos com as próprias poções que a moça fazia para tratar de
todos. Graças a eles, os ferimentos dela foram se cicatrizando com maior
rapidez do que era comum. Kieza, revoltada, esperava a compaixão e a
compreensão dos pais. Mas estes não a apoiaram. Disseram que o patrão
era quem estava certo. Que ele proporcionara à sua família, dignidade,
conhecimento e conforto. Concordavam com ele. Kieza estava sendo apenas
um monstro de ingratidão.
Quarenta dias depois, na calada da noite, ajudada por alguns
companheiros escravos, Keila montou um dos cavalos do estábulo da casa e
fugiu dali, a galope e sem olhar para trás.
Quando, alguns anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e
pôs um fim ao regime de escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888,
nascia a quarta filha de Kieza e Bomani, na Chácara das Flores.
Deram-lhe o nome de Isabel, em homenagem à Redentora. A Princesa, porém,
e sua família Imperial, foi banida do Brasil quando da Proclamação da
República, pouco mais de um ano depois da Abolição. Deixando para trás
os filhos que tivera com o Conde D’Eu, Isabel, seu marido, O Imperador e
a Imperatriz tiveram todos os seus bens, no país, confiscados e
partiram, de navio, para Portugal, com a roupa do corpo. A Princesa
lamentava que toda uma população de afrodescendentes, agora libertos,
não encontrariam, nos republicanos, apoio algum. Enquanto no poder, sua
família procurava incentivar os brasileiros a darem emprego e moradia
aos negros libertos que, com a Lei Áurea (outro tiro pela culatra,
julgava ela) viram-se da noite para o dia, sem teto, sem trabalho e sem
comida. E ela tivera que deixar o Brasil sem nem mesmo chegar a
implementar uma política que visasse criar condições para que os negros
libertos pudessem se integrar na sociedade. Isabel morreria em julho de
1921, na propriedade de seu marido, na França, sem jamais pisar
novamente em território brasileiro. Sua casa era conhecida na Europa
como “embaixada do Brasil” e a princesa recebia brasileiros e os ajudava
em seus planos. Um desses, foi Santos Dummont.
A Chácara das Flores, que agora não poderia mais ser chamada de Quilombo
do Leblon, prosseguia muito bem, assim como a loja de Seixas e também a
de João Basílio.
Augusta, depois da fuga de Keila, nunca mais quis saber de sua antiga
companheira e, para desgosto de seus pais, enrabichou-se por uma rica
fazendeira de Juiz de Fora, nas Minas Gerais, e foi-se embora do Rio
para viver com a nova amante.
Bomani e Kieza, agora livres, se encarregam de abastecer as lojas da
cidade não só com as belíssimas flores da Chácara, mas também com os
medicamentos que ela criava a partir das ervas, arbustos e árvores, que
cultivava ali. A alma atormentada de Alcina e Selena, encontrara afinal,
na Terra, novamente o seu grande e tão sonhado amor.
José Basílio morreu de desgosto, pela filha, pela sua filha-escrava e
pela Família Imperial banida do Brasil pelos “canalhas republicanos”,
como gostava de chama-los, na virada do século. Maria Caetana, ajudada
por Akin, tocou a loja e era muito mal-vista pela sociedade carioca que
julgava que “lugar de mulher era em casa, cuidando dos netos, e não por
detrás de um balcão”. Continuou morando na casa mas já sem o seu séquito
de negros. Em 1901, à beira da morte, chamou Ayana – que já passara a
barreira dos 80 anos de idade e ainda conservava os cabelos escuros – e
disse:
- Ayana, não morra sem perdoar sua filha e sem conhecer seus netos.
-- Eu via eles de longe, às vezes, quando estava pela cidade.
Só não contou que, nessas ocasiões, seus olhos se turvavam com as
lágrimas.
-- Peça a um dos empregados para leva-la ao Leblon.
Quando Caetana se foi, as famílias de seus filhos venderam o casarão e
também a loja e instalaram Ayna e Akin numa casinha de subúrbio,
atendidos por duas negras contratadas por eles. Kieza, Bonami e seus
filhos visitavam regularmente os seus velhos.
(1) Kieza = “a que chega”
(2) Ayana = “linda flor”
(3) Akin = “herói”
(4) Bomani = “guerreiro”
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