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-- Não sei. Minha mãe diz que eu sou diferente das outras meninas da minha idade porque só gosto de ler, navegar e ver TV, só as séries e documentários. Ela fala que eu preciso sair, em grupo, sabe? Fazer o que todo mundo faz: ir ao shopping, cinema, balada, essas coisas.

-- E por que você não faz nada disso? – perguntou Marianne.

Rita torceu uma mecha de cabelo.
-- Eu prefiro ler.

-- É louca mesmo, a avestruz – riu Amélia e todas riram com ela.

 

Para Gostar de

Ser Mulher
Arrebentando os mitos e preconceitos da condição e da saúde da mulher, em tempos de Pandemia.

 

Romance de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano e

Dra. Albertina Duarte Takiuti
 

 

Leia um trecho:

 

Introdução
 

Sábado, 3 de abril de 2021


Leonor olha as nuvens, pela janelinha do avião. Ponte aérea Rio-São Paulo.
Não sabe se está alegre ou triste. Acabara de reencontrar seu grande amor, perdido havia mais de quatro décadas e, por causa da Pandemia, eles mal puderam se tocar, quando seus corpos ansiavam pelos abraços, beijos, pelo sexo. Ela estava voltando para a casa da filha, tinha ido ao Rio, onde ainda morava, apenas a negócios, mas sabia que a filha, com a neta crescida e a neta neném, ainda precisaria da presença dela, ainda mais nesses tempos de súbito crescimento da Pandemia, numa mais grave Segunda Onda.

Sim, ela estava alegre, pelo enorme privilégio de reencontrar um amor tão grande que perdera ainda quando jovem e cheia de ilusões. Só precisariam de algumas semanas para, afinal, estarem devidamente imunizados pelas duas doses de vacina contra a COVID_19, para voltarem a se encontrar e, desta vez, tinha ela a certeza, serem afinal felizes na cama.

No entanto, como era possível estar alegre diante da situação de seu país? O Brasil batia a casa de 315 mil mortos, sob um governo federal que ainda insistia em minimizar a importância da pandemia e de, há poucos anos, um país respeitado no Exterior, passava agora à triste posição de bomba-relógio, uma grave ameaça pandêmica ao resto do planeta, por seu descaso no trato com a COVID, por seu injustificável atraso na vacinação. Como seria possível estar alegre num cenário desses, de horror, de tristeza, de revolta?

Leonor pensa no seu amor reencontrado em meio a um contexto quase tão desesperador quanto fôra para eles, jovens idealistas, o contexto da ditadura militar. Há apenas 4 dias o Brasil vivera as inacreditáveis comemorações dos 57 anos do golpe militar. Essas constituíam a pior das evidências: que grande parte do seu povo apreciava a escuridão, as fake News, a distorção da realidade, a negação da ciência.

Olha para o interior da aeronave: inúmeras vezes viajara na famosa ponte aérea Rio-SP, em voos lotados de gente ativa, ocupada, apressada. Agora, para guardar o distanciamento social, o avião ia quase vazio e a passagem, antes acessível à maioria, custava 5 vezes mais caro. Percebe que o avião começa a descer. Quando chegar, antes de ir para a casa da filha, passará por um posto de saúde para receber a sua primeira dose da vacina, a esperança mundial da volta à normalidade, a grande e maravilhosa conquista da ciência. Essa esperança também é mais um motivo de alegria para seu envelhecido, endurecido e decepcionado coração.

Amanhã será o Domingo de Páscoa. E o mundo anseia por sua ressurreição.

Leonor desembarca pensando que a alegria também estava naquele grupo de jovens, amigas de sua neta, que se formara quase que espontaneamente, havia apenas 3 ou 4 anos passados, para discutir a saúde e a condição social das mulheres. Sabia que o grupo, hoje reunido virtualmente, esperava por ela, para conversar sobre a conquista dos métodos contraceptivos.

Não, a vacina não demoraria. O grupo não esperaria muito.
 

Capítulo 8 – O avestruz, o abuso e o aborto
(Sexo Menstruada/ Abuso Sexual e estupro/ Aborto)

Lilian, Amélia e Marianne foram se tornando mais próximas, mais amigas. Certa tarde, na escola, depois das aulas, conversavam em uma mesa do jardim, ao mesmo tempo, entre si e com seus celulares. O assunto era, de novo, menstruação e as telas estavam abertas na página da Dra. Guilhermina, no Facebook. Riram muito do trecho em que a doutora falava sobre Sexo e Menstruação.

“Do ponto de vista da saúde, não há qualquer inconveniente – nem para a mulher, nem para o homem. Seria muito autoritário da minha parte dizer a vocês que tenham ou não relações durante o período do sangramento. O relacionamento sexual de cada indivíduo acontece de uma maneira que é só dele e isso deve ser respeitado. Assim, se um dos parceiros não se sente à vontade em relação a isso, os dois devem conversar e decidir o que é melhor para ambos, fazer ou não amor durante o período de sangramento menstrual” – dizia o texto.

As meninas riam muito, em parte por acharem mesmo engraçado, em parte pelo ainda grande constrangimento que tinham – a despeito de julgarem a si próprias como livres de preconceitos – em falar sobre a vida sexual, em que, aliás, apenas Marianne tinha alguma experiência.

-- Já imaginou? – disse gargalhando Lilian – A turma da faxina chegando de manhã no apartamento e dando de cara com um lençol, na cama de casal, todo manchado de sangue? Iam pensar que alguém tinha sido assassinado!

-- E quem fosse recolher a roupa de cama pra lavar, então? – ria Amélia – Aquela nojeira toda...

De repente, calaram-se, vendo que Rita – o avestruz, como a chamavam no colégio – vinha caminhando em direção ao grupo.
-- Eu queria falar com vocês – disse Rita, sentando-se no banco em volta da mesa, sem pedir licença.

As meninas, sem exceção, surpreenderam-se pela abordagem. Afinal, todos sabiam que Rita se recusava a se enturmar, fosse com que grupo fosse, que vivia com a cara metida no celular, mal olhando para alguém, sempre lendo. Lilian lembrou-se do dia em que um menino arrancou o aparelho das mãos dela e saiu correndo pelo pátio e gritando: “Vamos ver em que terra o avestruz tem a cara metida. O que está lendo a Rita avestruz agora?”.

-- Machado de Assis – sentenciou o professor que, por sua vez, se aproximara rápido e tomara o celular das mãos do menino.

Houve um silêncio sepulcral no pátio. Machado de Assis? Como alguém poderia estar lendo o Machado por livre e espontânea vontade? – era o pensamento de todos.

O professor foi até Rita, que permanecia muda olhando a cena, e devolveu-lhe o celular. Depois acariciou de leve a cabeça da menina:
-- Gosta de literatura, então? – perguntou ele à Rita que apenas balançou a cabeça afirmativamente e murmurou um quase inaudível “obrigada, professor”.

Depois disso, todos preferiram ignorá-la, afinal alguém que lia, por gosto, o que todos liam (ou fingiam ler) por obrigação, era alguém esquisito demais. E, para a garotada, alguém esquisito demais poderia sempre ser alguém perigoso demais.

Por tudo isso é que três pares de olhos assustados ergueram-se para Rita quando ela se sentou, sem ser convidada, à mesa das amigas. Absolutamente não combinava com ela aquela atitude!
-- Vocês me perdoem – começou Rita a dizer com sua voz baixa e aveludada – mas eu ouço sempre vocês falando em menstruação e queria saber se podem me dar algum endereço confiável na Internet para eu me informar.

-- Existem centenas de sites que falam em menstruação – Respondeu, meio irritada pela interrupção, Marianne.

-- Sim, eu sei – disse Rita – Mas percebo que nem todos são confiáveis. Alguns querem claramente vender alguma coisa, outros contradizem o que está escrito em outros lugares.

-- Nós sempre lemos a Dra. Guilhermina Dacena – respondeu Lilian. É a médica minha e da Amélia aqui. Confiamos nela.

-- Guilhermina Dacena – repetiu Rita, já teclando e se levantando – Muito grata.

-- Espere – disse Amélia. – Por que não fica um pouco com a gente? Por que você nunca conversa com ninguém? Você se acha melhor do que a gente?

Rita olhou para Amélia, assustada.
-- Não, de jeito nenhum. Eu me acho pior, pra ser sincera.

-- Como pior?

-- Não sei. Minha mãe diz que eu sou diferente das outras meninas da minha idade porque só gosto de ler, navegar e ver TV, só as séries e documentários. Ela fala que eu preciso sair, em grupo, sabe? Fazer o que todo mundo faz: ir ao shopping, cinema, balada, essas coisas.

-- E por que você não faz nada disso? – perguntou Marianne.

Rita torceu uma mecha de cabelo.
-- Eu prefiro ler.

-- É louca mesmo, a avestruz – riu Amélia e todas riram com ela.

Rita corou e fez menção de se levantar.
Lilian, delicadamente, pousou a mão na perna de Rita, indicando que ela deveria sentar-se e disse:
-- Olha, você podia sair com a gente no sábado. Montaram uma pista de patinação no gelo no shopping aqui perto. Minha mãe vai nos levar, nós vamos nos encontrar na minha casa. Venha também. Vai ser divertido.

-- Eu não sei patinar – disse Rita.

-- Ninguém aqui sabe, só a Lilian que já foi à Disneyworld. A gente aluga os patins e tem instrutores, nós vamos aprender – disse Amélia.

Rita pareceu hesitar.

-- Onde você mora? – perguntou à Lilian, que respondeu, dando o endereço.

-- Eu conheço o seu condomínio. Moro no prédio do outro lado da avenida.

-- Ótimo! – disse Lilian, animada – Então você vai lá em casa e iremos todas juntas! E, rápida, antes que a outra fizesse novamente menção de se retirar: -- Você quer saber alguma coisa específica sobre menstruação?

-- Ah... É um pequeno problema que eu tenho e o médico do convênio não me explicou direito. Nem pra mim, nem pra minha mãe, que me levou na consulta. Mas nada sério.

A mãe de Rita, Susana, a levara ao médico porque a menstruação da garota vinha diminuindo visivelmente. O médico fez várias perguntas e mandou fazer muitos exames para verificar se Rita sofria de anemia, ou estava desnutrida, se tinha alguma infecção ou algum tipo de contaminação por chumbo ou cobre. Perguntou se ela tomava pílula, se andava estressada, se tinha tido algum abalo emocional nos últimos tempos. Diante de resposta negativa aos exames e a todas essas questões, só restou ao médico um diagnóstico: Sinéquia.

Sinéquias são barreiras formadas dentro do útero, quando alguns pontos das paredes dele se “colam”. Isso acontece por excesso de raspagem numa curetagem, num aborto.

Por consequência das sinéquias, o endométrio não cresce direito e a descamação dele é menos intensa, diminuindo a menstruação em quantidade e em número de dias.

Que a menina, embora jovem, não era virgem, o médico sabia, pois a examinara, sabia também que muitas meninas, principalmente as de família com algum poder aquisitivo, acabam recorrendo ao aborto clandestino para livrarem-se de gravidezes indesejadas.

Aliás, indesejadas quase sempre pelas próprias famílias, mais do que pelas próprias meninas. A experiência clínica mostrava a ele que muitas meninas passavam a se julgar importantes por estarem grávidas, por desfrutarem de alguns privilégios que algumas mulheres possuem durante os nove meses da gravidez. Evidentemente, não pensavam – eram jovens! – nas consequências funestas de uma gravidez muito precoce. Outras pareciam estar apaixonadas e tinham a ilusão que o rapaz que as engravidara ficaria com elas para sempre, por causa do filho.

Indicou uma histerosalpingografia, um exame onde se injeta um líquido de contraste na vagina e radiografa-se para detectar obstruções. Em caso positivo, quando se confirma o diagnóstico de sinéquia, é feito um “descolamento”, sob anestesia, e coloca-se um DIU para que as paredes não voltem a colar. Em oito meses, o DIU é retirado. Na maioria absoluta dos casos, o tratamento é um sucesso.

O tratamento é necessário porque as sinéquias não interferem apenas na quantidade e duração da menstruação, mas também modificam o endométrio e obstruem as trompas, impedindo a passagem dos espermatozoides e causando assim a esterilidade feminina.

Como o aborto, além de ilegal na maioria dos casos, é um assunto muito delicado, o médico indicou o exame e não deu maiores explicações sobre sinéquias, deixando Susana e Rita no escuro. O exame estava marcado para semana seguinte e as poucas informações que Rita encontrara, na Internet, sobre sinéquias nem sempre batiam uma com a outra.

Rita fôra uma das muitas vítimas, no Brasil e no mundo, de violência sexual.

Susana, viúva logo depois do nascimento de sua única filha, casara-se novamente quando a menina tinha 11 anos de idade. O padrasto se mostrava extremamente amoroso tanto para com a mãe, como para com a filha. Viajavam juntos, os três, sempre que havia feriadões e nas férias coincidentes.

Susana trabalhava como produtora de Rádio e TV numa grande agência de propaganda e era comum chegar muito tarde em casa. Antes de casar-se novamente, tinha uma empregada doméstica que chegava ao meio-dia, quando Rita estava voltando da escola, e saía às 8 da noite, para que a menina não ficasse só quando as produções do trabalho de Susana se estendiam. Depois do casamento, por sugestão dele, abriram mão do horário diferenciado da empregada, já que ele poderia chegar em casa por volta das 6, pois seu trabalho, nos escritórios de uma grande indústria, se encerrava às 5.

Quando Rita tinha 12 anos, começou a ter muitos problemas de relacionamento. Antes, uma menina alegre e de fácil convivência, tinha muitos amigos e fazia aulas de dança, ballet clássico e popular. Primeiro, disse que não queria mais o ballet. Depois foi se isolando cada vez mais. Vivia trancada no quarto, em frente ao computador, ao celular, à TV. Começou a se interessar apenas por literatura e por documentários e séries históricas na TV.

A mãe demorou a perceber a mudança, já que saía todos os dias muito cedo e voltava muito tarde, às vezes trabalhando até nos finais de semana. Foi a empregada, Daise, que estava na casa desde que Rita nascera, quem alertou Susana para a mudança.
-- Você deveria investigar o que está havendo com Rita. Ela mudou muito desde que você se casou. Era uma menina alegre, cheia de amigos, agora ficou muito quieta, solitária, sempre lendo ou vendo TV.

Susana começou a observar a filha com outros olhos. E concluiu que seu casamento havia afetado demais a menina, que, de fato, ela começara a mudar já havia algum tempo e esse tempo coincidia com o momento em que seu novo marido fôra morar com elas.

Levou a menina ao psicólogo. Ele aconselhou uma primeira visita ao ginecologista, já que ela já menstruava e a mudança poderia estar ligada às mudanças hormonais da puberdade. Notara também, explicou ainda à Susana, uma certa hesitação da garota em falar do padrasto.

-- Acha que ela está com ciúmes? – perguntou Susana.

-- Não creio – respondeu o psicólogo – Ela parece, mas é não saber se o ama ou se o odeia. Eu lamento dizer isso, mas a sua filha tem algumas características típicas das crianças que, de alguma maneira, são abusadas.

O estupor tomou conta de Susana:
-- Como assim? Abusada? Você quer dizer sexualmente abusada?

-- Sim. — respondeu ele -- Eu ousaria dizer que tenho certeza disso, embora haja uma pequena possibilidade de erro em minhas conclusões.

-- Mas..., mas... quem?... Ela frequenta uma escola particular acima de qualquer suspeita. Tenho certeza que nenhum dos funcionários ou mesmo os professores...

-- Acredito que seja alguém de seu círculo mais íntimo, como ocorre em cerca de 70% desses casos, talvez alguém que frequente sua casa, um parente, primo, tio. Consegue pensar em alguma possibilidade? Alguém a quem ela rejeite publicamente, sem razão clara, por exemplo?

Imediatamente uma imagem veio à mente de Susana. Rita com ela e o marido na sala, vendo TV. Levanta-se e anuncia que vai dormir. O padrasto pergunta se ela não vai lhe dar um beijo de boa noite. Ela sai correndo para o quarto.

Ante a expressão de horror que tomou conta do rosto de Susana, o psicólogo pergunta:
-- Lembrou-se de alguém? De alguma possibilidade?

Susana responde, ainda horrorizada:
-- Não... Não pode ser... Eu me lembrei de um dia em que ela se recusou a dar um beijo de boa-noite no meu marido, mas poderia ter inúmeras razões para isso... Ele não... Ele não seria capaz de uma barbaridade dessas.

-- O abuso, muitas vezes, vem de onde menos se espera. No entanto o assunto é sério demais para que se julgue levianamente. Além disso, como eu lhe disse, sua filha tem as características de comportamento das crianças abusadas, mas eu posso estar errado.

Susana marcou hora em sua ginecologista para a filha. Saindo do psicólogo, no carro, perguntou à menina:
-- Você gostou do Dr. Maurício?

Rita balançou afirmativamente a cabeça.

-- Ele foi legal com você? Gostaria de voltar lá?

-- Mãe, você acha que eu sou louca? – perguntou a menina.

-- Claro que não, minha filha! Que ideia!

-- Então porque me levou no médico de loucos?

-- Ele não é médico, Rita. É psicólogo. Olha, todas nós, mulheres, quando estamos começando a nossa fase reprodutiva, ou seja, quando ficamos mocinhas, temos que ver se a mudança dos nossos hormônios... Hormônios são...

-- Eu sei o que são hormônios – interrompeu a menina.

-- Então – continuou Susana – Precisamos saber como as nossas mudanças hormonais podem estar mexendo com as nossas emoções... Você era uma menina tão expansiva, comunicativa... Agora mudou muito, só vive fechada naquele quarto, só quer ler, ver TV, Internet...

Lágrimas vieram aos olhos da menina. Susana entrou na primeira rua que viu e parou o carro.
-- O que está havendo, Rita? Conte pra mamãe – disse ela abraçando a filha.

Rita, aconchegada no calor da mãe, começou a chorar convulsivamente:
-- Ele vai matar você! Ele vai matar você – soluçava a menina.

-- Quem vai me matar, Rita? Ninguém vai me matar, minha filha. O que está havendo? – perguntou Susana, agora com a absoluta certeza de que alguém estava mesmo abusando de sua filha. E a, menina, ainda soluçando:

-- Ele disse que se eu contar para alguém, ele mata você.

-- Não mata não, minha filha. Vamos à Delegacia da Mulher denunciar esse sujeito que está assustando você. Quem é ele?

-- Você não vai querer denunciar ele, mãe! – gritou Rita, em desespero.

-- Quem é ele, Rita? Me diga agora! – disse Susana enérgica.

E a menina, entre soluços:
-- É o papai, é o papai. Quando ele chega do trabalho e a Deise vai embora, ele me manda ir pro banheiro tomar banho na hidromassagem, faz espuma e depois entra lá também... No começo era divertido, ele me fazia cócegas, e me fazia carinho, o que eu gosto, mas depois começou a me machucar e, se eu grito, ele empurra minha cabeça dentro d’água e eu engasgo e choro e ele fala pra eu calar a boca e me bate e fica me machucando um tempão, depois vai embora e manda eu me vestir e fala que, se eu contar para alguém, ele mata você quando você estiver dormindo...

Susana abriu a porta do carro, pôs a cabeça pra fora e vomitou no meio fio todo o seu horror e todo o seu desespero.
Depois abraçou novamente a filha e disse:
-- Ele não vai me matar, filhinha, não tenha medo. Ele vai, mas é pra cadeia. E ninguém mais vai machucar você, a mamãe está aqui pra te defender. Ele fez isso ontem, com você?

A menina balançou a cabeça afirmativamente. Susana tirou o celular da bolsa. -- Vou pedir à minha médica para nos atender já, é uma emergência. Vamos à médica, ela vai te examinar e depois iremos à delegacia da mulher.

A médica que as atendeu confirmou que a menina estava tendo relações sexuais, pela vagina e pelo ânus. Colheu material para testes e deu um atestado a elas, para que encaminhassem à delegacia. Depois disse:

-- Apesar do meu atestado, a polícia pode pedir um exame oficial.

-- Como assim, oficial? – perguntou Susana.

-- No IML.

-- Ah, não! Eu não vou permitir isso.

-- Então converse francamente com a delegada.

Susana conversou. E chegou à simples conclusão de que a delegacia podia fazer muito pouco para protege-las, mãe e filha.

Naquela noite, as duas dormiram num motel, fora da cidade.

E, no dia seguinte, depois de ignorar, em ambos os celulares, as inúmeras chamadas dele, pegaram a estrada rumo à São Paulo, a 600km de distância dele...

A menina reclamava:
-- Mas mãe... as nossas coisas, os nossos computadores, as roupas...

-- Compraremos tudo novo.

Por telefone, avisou Daise que faria suas contas e mandaria a quitação, com todos os direitos, para a conta dela.

-- Mas eu não posso ir também, com vocês? – perguntou a moça.

-- Você tem sua casa, Deise, sua família...

-- Minha família é muito mais você e a Rita do que os meus pais e irmãos. Se você disse que quer, eu pego um ônibus amanhã de manhã e você me diz onde te encontrar. Inclusive, posso levar os laptops de vocês. E também algumas roupas, as que vocês disserem.

Combinaram: Susana a pegaria numa estação do metrô da Paulista.

Telefonou para a agência, falou com o Diretor de Arte, que era muito seu amigo. Eles tinham um escritório em São Paulo e logo conseguiram um lugar para ela, ali. Alugou um outro apartamento, a poucas quadras do escritório paulista de sua agência, matriculou Rita num colégio ali perto e, em 15 dias, Susana, Rita e Deise estavam instaladas na nova casa e na nova vida. Em seguida, procurou um advogado para denunciar o marido por abuso sexual contra sua filha e para conseguir o divórcio.

Isso tudo acontecera dois anos antes. Mas o grande imprevisto viera, então, quando a sua médica ligou para dizer que a sorologia da menina estava em ordem, não havia nenhuma doença sexualmente transmissível, mas que havia, sim, uma gravidez. O horror tomou novamente conta de Susana.
Como permitir que a filha tivesse um bebê de um abusador? Lembrou da Lei do Aborto Legal* e, no hospital, a médica que a atendeu foi sincera:
-- Muito difícil de você provar isso! E a sua filha vai se submeter a muitos constrangimentos, depoimentos, exames, essas coisas. Além de que o processo pode demorar tanto que, quando chegar a autorização, talvez já seja tarde demais.

Assim, Susana não teve outro recurso senão aquela clínica sofisticada e caríssima, num bairro nobre da cidade, onde a menina sofreu um aborto, ilegal e sob sedação, e nem soube que estivera grávida do abusador.

Depois de uma conversa pesada com o advogado de Susana, o marido concordou em se divorciar e não manter mais nenhum vínculo com Susana que não queria nada dele, já que eram casados com separação de bens porque, naquela relação, só ela tinha bens, diga-se de passagem...

O advogado dela o ameaçou com um processo por assédio e abuso sexual de menor, o que o enquadraria na categoria de pedófilo e contou a ele o que os outros presos faziam aos pedófilos na cadeia.
Susana e Rita nunca mais ouviram falar dele.

Rita, hoje, ia regularmente a uma psiquiatra e, embora mantivesse seu isolamento social, a mãe percebia que ela estava melhorando, que sorria mais, e ficou extremamente feliz, pois encarou o fato como um começo da superação dos traumas, quando a menina pediu para ir, levada pela mãe de uma colega e mais duas amigas, patinar no gelo.

* Aborto Legal CP - Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
- se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
- ou se o feto for anencefálico (desde decisão do STF pela ADPF 54, votada em 2012, que descreve a prática como "parto antecipado" para fim terapêutico).