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Trecho do livro "O Espelho- Ou a História Quase Invisível", de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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"O Espelho ou a História Quase Invisível" fala das mulheres que fizerem diferença na caminhada da Humanidade, mas também é um romance de ficção que começa em 1832 e termina em 2012. Existem duas realidades no livro: uma é o reflexo da outra.
Richard Emil Muller, 1910, Mulher no Espelho
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Capítulo 25 - Em Chamas |
Antônia acordou naquele dia primeiro de fevereiro e, como fazia sempre, ligou a TV do quarto. Exatamente no momento em que um homem se jogava do alto de um edifício em chamas. Por um instante ficou confusa. Esperava ver, como em todos os dias, o telejornal da manhã. Imaginou que estivesse vendo um filme, que estivesse noutro canal. Só alguns segundos depois se deu conta que aquilo era o telejornal! Meu Deus! Isso só acontece no cinema. O grande incêndio que tomou conta no Edifício Joelma foi o assunto absoluto daquela manhã paulistana. Os telefones congestionaram. Todos temiam ter algum conhecido, amigo, parente, entre as vítimas do grande desastre. Ou simplesmente precisavam comentar com alguém. Nunca a cidade vivera tamanha tragédia. As pessoas encurraladas no inferno das chamas e da fumaça saltavam desesperadas para a morte e o esforço dos bombeiros parecia simplesmente vão. Regina, a amante de Fabrizio, trabalhava no prédio e foi uma das primeiras a ser resgatada pelos helicópteros, antes que o fogo crescesse e tornasse impossível a aproximação das aeronaves. Vivera momentos de grande pânico no terraço da cobertura para onde alguns haviam conseguido subir em busca do salvamento. Nunca mais seria a mesma, nunca mais se recuperaria daquele pânico, apesar dos esforços de Fabrizio, que pagou para ela os melhores psiquiatras do país, na tentativa de fazer a amante superar o trauma. Regina morreria apenas alguns meses depois, vítima de um infarto fulminante, diagnosticado pelos cardiologistas como consequência do prolongado estresse que tomara conta dela depois do episódio Joelma. Era quase vinte anos mais nova que Antônia, tinha apenas 45 anos e deixou Rodrigo, seu filho, ainda mais desamparado do que nunca. Fabrizio mandou-o estudar nos Estados Unidos e, quando ele voltou, arranjou-lhe uma boa posição na fábrica, apesar dos narizes torcidos dos seus primos ante a presença do “bastardinho”, como passaram a chama-lo pelas costas. Naquela fatídica manhã, porém, à mesa do café, com a mãe, Antônia teve seu momento de crueldade. Júlia estava atônita diante das cenas que a TV mostrava, quando Antônia disse: -- Você sabe, mãe, que nesse edifício fica o escritório onde trabalha a amante de Fabrizio? Júlia olhou espantada para a filha, que continuou: -- Tomara que ela morra queimada, a desgraçada! -- Minha filha! O que é isso? Você sabe que a pobre da moça não tem culpa.– E com aquela brutal sinceridade que sempre lhe fora peculiar: |
-- Você também sabe muito bem que foi você que arrumou um amante muito antes de Fabrizio... -- Mãe! -- É verdade, Antônia, vocês eram felizes até aparecer esse pintorzinho e virar a sua cabeça. O que você queria que seu marido fizesse? -- Mas ele podia ter tido a decência de não tornar o caso dele assim tão público. Todo mundo sabe da amante dele, um caso tolerado socialmente há quase duas décadas, e eu tenho que fingir que não sei, tenho que continuar mantendo a pose... Quero mas é que ela morra mesmo! – e saiu intempestivamente da mesa. Algumas horas mais tarde soube que Regina estava entre os poucos sobreviventes do incêndio. Durante o dia, contrariando seus hábitos, tentara se comunicar com Fabrizio, mas a secretária só sabia dizer que ele “estava fora, numa reunião com fornecedores”. Antônia tinha certeza que o marido não estivera em reunião alguma e sim acompanhado o filho na ansiedade e no sofrimento até que soubessem que Regina estava salva. Salva, mas em que condições? Ferida? Queimada? Com os pulmões debilitados pela fumaça? Fabrizio não veio, como era de se esperar, para casa naquela noite. Antônia, remoendo sua raiva e seu despeito, foi sentar-se diante do espelho, certa de que apareceria alguém em seu socorro. Ela não queria odiar Regina, sabia que a mãe estava certa, a moça não tinha culpa e ninguém seria ingênuo o suficiente para imaginar que, depois da traição dela com Anésio e depois de Fabrizio trancafiá-la na chácara por um ano inteirinho, ele não arrumaria mesmo uma amante. -- As mulheres são frequentemente mais vítimas do que algozes – disse a voz dentro do espelho. – Foi exatamente para escapar do meu destino de vítima que quase me tornei algoz. – e riu. A risada daquela mulher, dentro do espelho, iluminava a sala e iluminava também a alma de Antônia. De repente, o ódio que sentira de Regina, o ódio que fizera com que ela desejasse a morte da outra, se esvaiu, como que água escorrendo de dentro de si. A risada daquela mulher tinha algo de purificador. -- Também diziam isso de mim quando vivi – respondeu a mulher do espelho aos pensamentos de Antônia – Diziam que a minha alegria era como um raio de sol. Se bem me lembro, foi Freud quem disse isso. Um dia ele me escreveu “Você tem um olhar como se fosse Natal” – e riu de novo. -- Você foi amiga de Freud – disse Antônia. -- Fui amiga de todos os que estavam à frente do nosso tempo: Freud, Rilke, Paul Ree, Nietzsche, Helena Klinkberg, Malwida von Meysenburg ... -- Viveu então na segunda metade do século dezenove. -- Sim – respondeu ela. – Nasci em 1861 e morri em 1937. No meu tempo as mulheres eram ainda mais escravizadas do que são agora, no seu tempo. Embora não tenha mudado grande coisa, vocês são um pouco mais livres. Mas eu não! Eu queria ousar. Eu jamais me submeti. Está certo que é mais fácil pra quem, como eu, nasce na aristocracia. Mas, ainda que eu tivesse nascido pobre, teria como me rebelar. Seria, no mínimo, a cafetina mais poderosa do lugar! – e riu de novo, aquele riso luminoso, em cascata. -- Já li muita coisa sobre esses filósofos e artistas que você citou, sei também muita coisa sobre Freud, é claro, e inclusive Hollywood fez vários filmes onde eles são personagens, mas em nenhum filme ou livro vi alguém parecido com você. – disse Antônia, provocadora e já com algum ciúme de uma mulher tão bela e tão decidida. -- Você já devia saber que as mulheres raramente passam para a História. Mesmo que tenham sido as bravas companheiras de grandes homens, mesmo que tenham sido, deles, a inspiração. Por exemplo, todos os bons historiadores da música sabem muito bem que grande parte das obras de Bach foram compostas por sua segunda esposa, Anna Magdalena. Ela vinha de uma família de músicos, casou-se com Bach logo depois da morte da primeira esposa dele e juntos, viveram três décadas de amor verdadeiro. Não duvido que compusessem, inclusive, a quatro mãos. Mas quem se lembra dela? -- Mais uma feminista – sorriu Antônia e disse: – Por favor, me desculpe se não sei quem você é, ou foi. -- Meu nome é Lou. Lou Salomé ou, se preferir, Louise von Salomé. Os livros de história, poucos, que me citam, me classificam como uma intelectual alemã que nasceu na Rússia. Meu pai era general e amigo dos Romanov, mas aos 17 anos eu já não estava mais lá, no mundinho aristocrático onde nasci, fui para a Itália e depois para Alemanha e vivi toda a minha vida entre França, Itália e Alemanha. Eu tinha 21 anos e já havia estudado muito quando conheci Paul Rée que, por sua vez, me apresentou a Nietzsche – aqui, ela riu de novo – que, pobre Nietzsche, já estava próximo dos 40 e sofria porque não alcançava o reconhecimento com suas obras (que, mais tarde, seriam famosíssimas) e fora praticamente expulso de sua cátedra na universidade. – Suspirou, olhando as unhas – Ah! Os que vivem à frente do seu tempo, os verdadeiros gênios, são frequentemente escorraçados pelos medíocres. Eles incomodam. -- Você pinta um mundo muito injusto – disse Antônia – A inteligência das mulheres e dos gênios menosprezada, a sociedade execrando os vanguardistas... -- Perdoe-me, Antônia – disse Lou – mas eu não estou “pintando” o mundo. Ele é exatamente assim. -- Se você acredita... Eu tenho uma visão mais tolerante. Mas continue a sua história, parece fascinante. -- Sim, eu quis viver uma vida fascinante! E vivi! Ousadia foi o meu outro nome. Imagine! Estávamos em 1882 e resolvi vivenciar o verdadeiro triângulo amoroso. Paul Rée, que era meu amigo, me apresentou à Nietzsche que se apaixonou perdidamente por mim e pediu a Paul que me dissesse que queria casar-se comigo. Eu ri. Casamento é o sinônimo da escravidão da mulher. -- Mas aposto que você acabou se casando! – interrompeu Antônia. -- Sim, é verdade. Me casei com Carl Frederich Andreas, em 1887 e passei a assinar Louise Andreas-Salomé. Mas como você adivinhou? -- Todas as mulheres que conheço – disse Antônia – que são contra o casamento acabam sucumbindo a ele algum dia. Não acreditei que pudesse ter sido diferente com você. - Mas foi – reagiu Lou, meio indignada – só me casei porque a proposta era um relacionamento aberto, assim como o que eu quis ter com Paul e Nietzsche ao mesmo tempo e não deu certo. Deu tão certo porém no casamento que vivi com Carl, meu marido, até o dia da minha morte. Antes de viver com ele, vivi com Paul, mas sem Nietzsche, porque este tinha ideias estranhas a respeito do sexo. Falava em amor acima do sexo. Eu não. Sempre soube que o sexo era parte do amor e que o amor não era parte do sexo. -- Nunca confundiu um com o outro? – indagou Antônia. -- Ah, sim, mas só quando era muito jovem. Amei muitos homens, além de Carl: Freud, Vitor Tausk... Foram eles que me levaram para o estudo da psicanálise, uma coisa fascinante. No entanto o grande amor mesmo aconteceu com o poeta Rainer Maria Rilke, quando ele tinha 21 e eu 36. -- Você não se importou com a diferença de idade? – perguntou Antônia, pensando em quanto a diferença que existia entre ela e Anésio Jr., e também entre sua mãe e seu padrasto, a tinham incomodado. -- Claro que não – quase gritou Lou. – Imagine! Que idade tem a alma? Que idade tem o nosso ser interior, o nosso sentimento? Isso não importa. -- Você considera então que amou Rilke mais do que aos outros? -- Não. Apenas com mais paixão. Fui eu quem o apresentou aos artistas e intelectuais da nossa época, eu consegui seus patronos, fui sua amante, mas fui também sua conselheira, mentora, confidente. Amei a todos os meus homens. -- Ao mesmo tempo que amava seu marido? -- Claro – disse ela – Essa ideia tola de que só se pode amar a uma pessoa de cada vez nunca me convenceu. Nem a monogamia, que foi outra coisa inventada pelos homens, mas somente para as mulheres, somente porque eles precisavam da certeza de sua paternidade quando elas engravidavam. Os homens jamais exerceram a monogamia, nem mesmo os religiosos. -- É verdade – suspirou Antônia – Eles se dão o direito até de nos assassinar se tivermos outros homens, mas eles tem quantas mulheres desejarem. E eu que passei a vida me sentindo culpada por ter amado um homem mais jovem e, enquanto o amava, sabia que isso nada tinha a ver com o amor que eu sentia pelo meu marido. Mas Fabrizio, o meu marido, conseguiu destruir o meu amor por ele quando, como castigo, me isolou do mundo por um ano inteiro e me fez escolher entre aquele outro amor e a minha filha com ele... -- Está vendo? – desafiou Lou – eles não permitem que tenhamos os mesmo direitos, em coisa nenhuma. Por isso sempre lutei para escapar ao destino das mulheres. Criei meu próprio destino. Amei. Fui livre. -- E por que você disse que, para escapar de ser vítima quase se tornou algoz? Lou caiu na risada, aquele riso único, um riso que parecia ser só dela: -- Porque passei a vida seduzindo os coitadinhos! – respondeu – Usava com eles esse único poder que nós mulheres sempre tivemos sobre os homens, o poder da sedução, o poder de despertar-lhes um desejo tão intenso que os atordoa... Usei e abusei disso também. -- Vocês, mulheres do espelho, sempre acabam por me fazer sentir a minha covardia. Nunca tive essa coragem, essa ousadia, de todas vocês, que fizeram diferença na História da Humanidade. -- Não acredito que você seja covarde – respondeu Lou. – Também é preciso coragem para renunciar a um amor em nome do dever e do amor por um filho. Antônia teve um riso triste. E Lou continuou: -- Quanto a ter feito diferença no mundo... Bem, não sei não. Escrevi muito, obras que, pensei, passariam para as futuras gerações e talvez pudessem ajudar outros a encontrar suas próprias respostas e escapar dessa mesmice das respostas pré concebidas, das verdades estabelecidas, do conformismo, enfim... No entanto, depois da minha morte, meus livros foram para a fogueira dos nazistas, na Alemanha. A Polícia Secreta não queimou apenas os livros de minha autoria, mas também a minha biblioteca, colecionada por toda uma vida. A felicidade incomoda, Antônia. Os infelizes não podem nos perdoar por isso. Eu vivi plenamente, eu sempre fui feliz. Eu sabia que o amor e o sexo eram as forças mais poderosas do ser humano, eram o impulso e a mola propulsora de toda a atividade criativa, fosse ela artística ou científica. A chama que ardia em meu peito era bem diferente daquela que queimou os meus livros. Depois que Lou se foi, Antônia fitou-se longamente no espelho. Tinha 61 anos, mas ainda era uma mulher desejável. A ausência do amor, porém, vinha tirando-lhe o brilho do olhar. Não apenas fisicamente – pensou – mas também o brilho da forma de olhar o mundo, que lhe parecia cada vez mais cinza. Vou viver um amor –decidiu ela – Ainda não é tarde para ter o coração em chamas. Isabel Fomm de Vasconcellos - voltar para a página Meus Livros (que escrevi) |
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Daisy Azevedo Parabéns Bel....mais um livro. Quem sabe se no lançamento estarei em Sampa. Suely Heloisa Teixeira Nem sempre compreendemos este outro lado do espelho... Gostei muito Isabel!!!
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Harmonia Eventos Musicais Estou na lista parar lançamento !
Anamaria Ferraz De Barros Paltronieri Que venha mais um! Bjs sucesso
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