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Clube de Campo do Castelo, 1981

 

Para Mauro Caetano,

que sempre enxergou além do seu próprio Tempo.

 

 

O Castelo dos Futuros

Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

Nota da Autora

“Um Castelo Além do Tempo”, livro anterior a esse aqui, conta a história de Susana que entra no Corredor de Árvores do Castelo e viaja para o passado, vai de 2020 a 1910. Lá, se envolve com a família Meyer, proprietária do lugar e, quando vem de volta para seu tempo, encontra um descendente dos Mayer, igualzinho a aquele pelo qual – George – ela se apaixonara em 1910.

Já, em “O Castelo dos Futuros”, a heroína – Helena -- é descendente de um outro ramo da família dos Mayer, os Zom, e viaja pelo mesmo Corredor do Tempo e das Árvores mas, ao contrário de Susana, não vai para o passado e, sim, para o futuro. Mas será único esse futuro?


 

Capítulo 11 – O Tempo que Não Existiu

Nos dias que se seguiram, Helena viveu um turbilhão de emoções. Perguntava-se, afinal, qual seria o propósito de tudo aquilo, daquelas absurdas viagens pelo Tempo. A revelação de que encontraria ainda o marido que ela julgara morto muito a perturbara. E um detalhe, na história contada por Diana, não batia, não tinha sentido. Se ela, ao voltar a 2021, então sabendo que Jorge não estava morto, por que desmaiaria de susto ao vê-lo retornar?

Viu-se subitamente muito magra porque, além da parca comida disponível naquele alojamento militar que era agora o Castelo, passava os dias inteiros caminhando pelo corredor das árvores, sempre empurrando o carrinho de Vitória, na esperança de que surgisse a névoa que poderia leva-la de volta a 2021. E se não levasse? – angustiava-se – E se fosse parar em outro tempo qualquer?

 

Em poucos momentos podia estar com Diana, já que esta tinha que cumprir suas obrigações da vida militar.

Nem pôde despedir-se dela porque, no sétimo dia desde a sua chegada, uma névoa baixou e a levou de volta – finalmente!

Quando a névoa se dissipou ela reconheceu a paisagem familiar do ano em que partira. Aliás, imaginava, do momento exato em que partira.

Ainda atordoada, saiu às pressas do Castelo, só pensava em voltar para casa. Reencontraria Jorge! Mas não sabia exatamente quando. Esse detalhe aquela suposta neta não lhe contara. “Suposta neta” era como ela se referia à Diana em seus pensamentos mais íntimos. Não pudera, por nem um minuto, acreditar que aquela moça, tão fisicamente diferente de toda a sua família, fosse de fato sua descendente. Tinha sido mais fácil acreditar que Douglas, em 2108, fosse um deles, afinal ele era a cara de Jorge!

Entretida por esses pensamentos, foi apenas quando cruzou a portaria do clube que percebeu que todas as pessoas ao seu redor não estavam usando máscaras. O estacionamento, lotado, sob as centenárias (e poucas!) árvores que restavam do que antes – na subida da avenida Atlântida até a portaria do Castelo – era um imenso bosque. Helena pensou que quando parara seu carro ali, quase não havia ninguém. Alguma coisa – e ela não sabia exatamente o que – parecia diferente... Seu carro também lhe pareceu outro, num tom de cinza ligeiramente mais escuro do que se lembrava. Estava estacionado junto ao muro que separava aquele terreno da casa vizinha. Abriu o veículo e quando foi colocar Vitória na cadeirinha dos bancos de trás... essa era azul! Mas Helena poderia jurar que comprara a amarela...

O caminho para casa também estava muito estranho! Trânsito pesado, ninguém, dentro dos carros ou nas calçadas ou nos restaurantes (lotados) à beira da represa, com suas mesas externas, usava máscara. Não. Parecia o cenário pré-pandemia... Teria ela voltado para algum ano anterior? Parou num semáforo vermelho. Um jovem bateu com os dedos em nó no vidro do carro dela, era um ambulante, vendendo pequenas garrafas d’água, ela abriu a janela, tirou da bolsa uma nota, pegou a garrafa e perguntou a ele:
-- Que dia é hoje?

-- Domingo, moça! 21 de fevereiro de 2021!

Estava certo. Era o dia em que ela partira, pela névoa entre as árvores do Castelo, para o futuro. Mas agora... que espécie de presente era esse? Onde estavam as máscaras? O distanciamento social? As restrições nos locais públicos?

Quando abriu a porta do seu apartamento e colocou o carrinho de Vitória para dentro, levou um susto enorme! Havia alguém dormindo no sofá da sala. Era Jorge! Jorge? Como seria possível? Ele acordou e meio sonolento disse:
-- Meu amor, você demorou hoje no Castelo. O que andou fazendo por lá?

Ela atirou-se nos braços do marido. Jorge estava ali, vivo! Não era possível, mas ela só queria afogar-se nos braços dele. Lágrimas inundaram lhe a face.

Ele a afastou delicadamente:
-- Maria, o que houve, querida? Algum problema?

-- Maria? – perguntou ela, ainda em choque – Você só me chama de Helena!

-- Não, meu bem – disse ele com um sorriso e acariciando os cabelos dela – Quando não te chamo de Maria Helena, sempre te chamo de Maria.

Ela já sabia então que voltara para um passado alternativo. A cabeça rodava. Sem dúvida, precisaria de ajuda. Disse:

-- Estou bem cansada, meu amor. Vou chamar a Sofia para cuidar da Vitória, quero pedir um jantar só para nós dois, temos muito a conversar.

-- Sofia? – perguntou ele – Não seria a Sandra, a baby-sitter?

-- Sim – respondeu, pensando ter certeza de que a moça se chamava Sofia, pelo menos no outro presente, o outro do qual partira em outro 21 de fevereiro de 2021.

Tirou o celular do bolso e acessou o what’s app. Não havia ninguém de nome Sofia. Mas estava lá: Sandra, baby-sitter. Chamou-a.

Jorge seguiu-a até o quarto da filha, onde Helena, ou Maria, a colocou no berço. Sofia, ou Sandra, se encarregaria de dar-lhe um bom banho, alimenta-la e coloca-a para dormir. Aliás, a bebê agora dormia, tranquilamente.

--Você não vai amamenta-la agora? – perguntou Jorge, com a voz carinhosa – Você sempre a amamenta nesse horário.

Amamentá-la? Seu leite secara, logo depois do parto. Pensando nisso, sentiu que, de uma das suas mamas, escorria algum líquido. Nesse presente alternativo, sem dúvida, ela amamentava normalmente a pequena Vitória.

-- Jorge – disse com a voz cansada e trêmula – Eu estou muito confusa. Não estou reconhecendo essa realidade, esse mundo. Preciso conversar com você. Vamos jantar, tomar um vinho. Por favor, ponha a mesa para nós, peça o jantar do dia no restaurante da padaria aí ao lado, vou tomar um banho enquanto isso.

-- Sim – respondeu ele – eu vou lá buscar. Volto já.

Maria Helena entendeu que, nessa nova realidade, não existiam as entregas, tão comuns depois da pandemia, porque, pelo jeito, também não existia pandemia...

Se, por um lado, estava feliz em ter Jorge de volta, por outro, perguntava-se se estava, novamente, numa daquelas “bolhas” do Tempo, tempos inexistentes, e, portanto, acabaria novamente indo embora daquela “realidade” de agora. Estava confusa, emocionada, perturbada, desesperada.

À mesa, depois do brinde, perguntou a Jorge se ele se lembrava da velha lenda da família dela sobre viagens no tempo pelo corredor do Castelo. Ele se lembrava mas, claro, não acreditava. Ele também lera “Um Castelo Além do Tempo” e conhecia as teorias sobre as bolhas no Tempo, a história toda, da viagem de Susana às origens do Castelo em 1910, enfim, tudo.

Então ela começou a falar. Falou da pandemia, da suposta morte dele por COVID-19, de seu desespero, de sua tristeza, de sua solidão e de como ela e Vitória tinham sido transportadas para o futuro. Ele a escutava, um misto de horror e surpresa nos olhos. Em dado momento ela disse:

-- E a situação toda se agravou bastante porque o nosso presidente Baldonaro insistia em negar a gravidade da pandemia e demorou muito a comprar e liberar as primeiras vacinas...

-- Presidente Baldonaro? – espantou-se ele – Que eu saiba existe um Jesus Baldonaro no Congresso, deputado federal do Baixo Clero da câmara, um sujeito retrógado, atrasado mesmo...

-- Então... – respondeu ela atônita – Ele foi eleito presidente em 2018, fazendo-se passar por honesto e íntegro, em contraposição aos desmandos do PT, à corrupção atribuída ao partido, enganou a todos nas redes sociais... E Lelo estava preso no sul do país, vítima da enorme armação da Operação Limpa Rápido e daquele juiz vendilhão...

-- Maria – disse ele – você está muito confusa, querida. Nunca ouvi falar de nada disso! Em 2018 elegemos novamente o nosso Lelo, o melhor presidente que o Brasil já teve e agora, quase três anos depois, só temos visto crescimento e felicidade no país. A nossa inflação baixou para 1,5% ao ano, eliminou-se a fome, expandiu-se a educação básica, endureceu-se o combate ao desmatamento e às emissões de carbono e Lelo é, como sempre o foi, aclamado no Exterior e aqui mesmo como o grande estadista que é...

-- Ah... Esse é o mundo dos meus sonhos! – exclamou ela – Agora percebo claramente que voltei para um presente que apenas eu desejava, que não existe de fato, que é mais uma bolha, mais um sonho, mais uma ilusão...

Jorge levantou-se e foi até ela. A fez levantar-se da mesa, deu-lhe um beijo na boca e disse:
-- Não. Isto não é um sonho. É a realidade. Eu não morri dessa tal co... co o que mesmo, 19? Estamos juntos e felizes. O seu sonho foi o resto...

-- Eu gostaria que você estivesse certo. Mas não. Isso é um sonho. Deixe-me tentar contar-lhe mais, deixe-me desabafar!

Ele voltou ao seu lugar à mesa e ela continuou a contar-lhe o que vivera em 2108 e em 2064.

Do que, afinal, estaria falando a sua mulher? – perguntou-se Jorge. Teria mesmo viajado pelo Tempo? Mas e o presente? Que história maluca seria aquela de um mundo dominado por um novo corona vírus que desafiava toda a estabilidade de todos os países? Como seria possível que um simples vírus desafiasse a ciência, que nem mesmo vacinas, produzidas em tempo absolutamente recorde, pudessem deter as muitas mutações desse vírus? Aquilo era absolutamente inimaginável! Jorge temia pela sanidade mental da companheira mas, ao mesmo tempo, as histórias que ela contava tinham uma coerência que não se encontraria numa mente perturbada.

Quando Maria Helena terminou sua narrativa já era madrugada. Jorge estava perplexo. Não sabia a que atribuir tamanha confusão mental de sua esposa. Um forte desejo o invadiu e ele resolveu que pensaria sobre tudo isso no dia seguinte. Agora só queria ter Maria em seus braços.

Foram para a cama e tiveram uma das noites mais felizes de sua vida. Uma Maria Helena gulosa, quente, vibrante, correspondendo ao desejo dele, um desejo que emergia como se, há anos, estivessem separados.

Manhã seguinte, Helena acordou antes dele. Sabia que estava em meio a um sonho, uma bolha temporal. Decidida, saiu. Sem levar Vitória. Pegou o seu carro (com aquela cadeirinha azul em vez de amarela) e foi direto para o Castelo, sem acordar Jorge ou Vitória, sem tomar café, sem banho, sem nada.

O clube estava fechado. Afinal, era segunda feira. Subornou o porteiro, dizendo que esquecera os documentos no armário do vestiário e iria apenas pega-los. Sabia que a névoa a esperava.

E a névoa a levou, de novo, a 2108.

Capítulo 12 – Outro Futuro