Em
poucos momentos podia estar com Diana, já que esta tinha que cumprir
suas obrigações da vida militar.
Nem pôde despedir-se dela porque, no sétimo dia desde a sua chegada, uma
névoa baixou e a levou de volta – finalmente!
Quando a névoa se dissipou ela reconheceu a paisagem familiar do ano em
que partira. Aliás, imaginava, do momento exato em que partira.
Ainda atordoada, saiu às pressas do Castelo, só pensava em voltar para
casa. Reencontraria Jorge! Mas não sabia exatamente quando. Esse detalhe
aquela suposta neta não lhe contara. “Suposta neta” era como ela se
referia à Diana em seus pensamentos mais íntimos. Não pudera, por nem um
minuto, acreditar que aquela moça, tão fisicamente diferente de toda a
sua família, fosse de fato sua descendente. Tinha sido mais fácil
acreditar que Douglas, em 2108, fosse um deles, afinal ele era a cara de
Jorge!
Entretida por esses pensamentos, foi apenas quando cruzou a portaria do
clube que percebeu que todas as pessoas ao seu redor não estavam usando
máscaras. O estacionamento, lotado, sob as centenárias (e poucas!)
árvores que restavam do que antes – na subida da avenida Atlântida até a
portaria do Castelo – era um imenso bosque. Helena pensou que quando
parara seu carro ali, quase não havia ninguém. Alguma coisa – e ela não
sabia exatamente o que – parecia diferente... Seu carro também lhe
pareceu outro, num tom de cinza ligeiramente mais escuro do que se
lembrava. Estava estacionado junto ao muro que separava aquele terreno
da casa vizinha. Abriu o veículo e quando foi colocar Vitória na
cadeirinha dos bancos de trás... essa era azul! Mas Helena poderia jurar
que comprara a amarela...
O caminho para casa também estava muito estranho! Trânsito pesado,
ninguém, dentro dos carros ou nas calçadas ou nos restaurantes (lotados)
à beira da represa, com suas mesas externas, usava máscara. Não. Parecia
o cenário pré-pandemia... Teria ela voltado para algum ano anterior?
Parou num semáforo vermelho. Um jovem bateu com os dedos em nó no vidro
do carro dela, era um ambulante, vendendo pequenas garrafas d’água, ela
abriu a janela, tirou da bolsa uma nota, pegou a garrafa e perguntou a
ele:
-- Que dia é hoje?
-- Domingo, moça! 21 de fevereiro de 2021!
Estava certo. Era o dia em que ela partira, pela névoa entre as árvores
do Castelo, para o futuro. Mas agora... que espécie de presente era
esse? Onde estavam as máscaras? O distanciamento social? As restrições
nos locais públicos?
Quando abriu a porta do seu apartamento e colocou o carrinho de Vitória
para dentro, levou um susto enorme! Havia alguém dormindo no sofá da
sala. Era Jorge! Jorge? Como seria possível? Ele acordou e meio
sonolento disse:
-- Meu amor, você demorou hoje no Castelo. O que andou fazendo por lá?
Ela atirou-se nos braços do marido. Jorge estava ali, vivo! Não era
possível, mas ela só queria afogar-se nos braços dele. Lágrimas
inundaram lhe a face.
Ele a afastou delicadamente:
-- Maria, o que houve, querida? Algum problema?
-- Maria? – perguntou ela, ainda em choque – Você só me chama de Helena!
-- Não, meu bem – disse ele com um sorriso e acariciando os cabelos dela
– Quando não te chamo de Maria Helena, sempre te chamo de Maria.
Ela já sabia então que voltara para um passado alternativo. A cabeça
rodava. Sem dúvida, precisaria de ajuda. Disse:
-- Estou bem cansada, meu amor. Vou chamar a Sofia para cuidar da
Vitória, quero pedir um jantar só para nós dois, temos muito a
conversar.
-- Sofia? – perguntou ele – Não seria a Sandra, a baby-sitter?
-- Sim – respondeu, pensando ter certeza de que a moça se chamava Sofia,
pelo menos no outro presente, o outro do qual partira em outro 21 de
fevereiro de 2021.
Tirou o celular do bolso e acessou o what’s app. Não havia ninguém de
nome Sofia. Mas estava lá: Sandra, baby-sitter. Chamou-a.
Jorge seguiu-a até o quarto da filha, onde Helena, ou Maria, a colocou
no berço. Sofia, ou Sandra, se encarregaria de dar-lhe um bom banho,
alimenta-la e coloca-a para dormir. Aliás, a bebê agora dormia,
tranquilamente.
--Você não vai amamenta-la agora? – perguntou Jorge, com a voz carinhosa
– Você sempre a amamenta nesse horário.
Amamentá-la? Seu leite secara, logo depois do parto. Pensando nisso,
sentiu que, de uma das suas mamas, escorria algum líquido. Nesse
presente alternativo, sem dúvida, ela amamentava normalmente a pequena
Vitória.
-- Jorge – disse com a voz cansada e trêmula – Eu estou muito confusa.
Não estou reconhecendo essa realidade, esse mundo. Preciso conversar com
você. Vamos jantar, tomar um vinho. Por favor, ponha a mesa para nós,
peça o jantar do dia no restaurante da padaria aí ao lado, vou tomar um
banho enquanto isso.
-- Sim – respondeu ele – eu vou lá buscar. Volto já.
Maria Helena entendeu que, nessa nova realidade, não existiam as
entregas, tão comuns depois da pandemia, porque, pelo jeito, também não
existia pandemia...
Se, por um lado, estava feliz em ter Jorge de volta, por outro,
perguntava-se se estava, novamente, numa daquelas “bolhas” do Tempo,
tempos inexistentes, e, portanto, acabaria novamente indo embora daquela
“realidade” de agora. Estava confusa, emocionada, perturbada,
desesperada.
À mesa, depois do brinde, perguntou a Jorge se ele se lembrava da velha
lenda da família dela sobre viagens no tempo pelo corredor do Castelo.
Ele se lembrava mas, claro, não acreditava. Ele também lera “Um Castelo
Além do Tempo” e conhecia as teorias sobre as bolhas no Tempo, a
história toda, da viagem de Susana às origens do Castelo em 1910, enfim,
tudo.
Então ela começou a falar. Falou da pandemia, da suposta morte dele por
COVID-19, de seu desespero, de sua tristeza, de sua solidão e de como
ela e Vitória tinham sido transportadas para o futuro. Ele a escutava,
um misto de horror e surpresa nos olhos. Em dado momento ela disse:
-- E a situação toda se agravou bastante porque o nosso presidente
Baldonaro insistia em negar a gravidade da pandemia e demorou muito a
comprar e liberar as primeiras vacinas...
-- Presidente Baldonaro? – espantou-se ele – Que eu saiba existe um
Jesus Baldonaro no Congresso, deputado federal do Baixo Clero da câmara,
um sujeito retrógado, atrasado mesmo...
-- Então... – respondeu ela atônita – Ele foi eleito presidente em 2018,
fazendo-se passar por honesto e íntegro, em contraposição aos desmandos
do PT, à corrupção atribuída ao partido, enganou a todos nas redes
sociais... E Lelo estava preso no sul do país, vítima da enorme armação
da Operação Limpa Rápido e daquele juiz vendilhão...
-- Maria – disse ele – você está muito confusa, querida. Nunca ouvi
falar de nada disso! Em 2018 elegemos novamente o nosso Lelo, o melhor
presidente que o Brasil já teve e agora, quase três anos depois, só
temos visto crescimento e felicidade no país. A nossa inflação baixou
para 1,5% ao ano, eliminou-se a fome, expandiu-se a educação básica,
endureceu-se o combate ao desmatamento e às emissões de carbono e Lelo
é, como sempre o foi, aclamado no Exterior e aqui mesmo como o grande
estadista que é...
-- Ah... Esse é o mundo dos meus sonhos! – exclamou ela – Agora percebo
claramente que voltei para um presente que apenas eu desejava, que não
existe de fato, que é mais uma bolha, mais um sonho, mais uma ilusão...
Jorge levantou-se e foi até ela. A fez levantar-se da mesa, deu-lhe um
beijo na boca e disse:
-- Não. Isto não é um sonho. É a realidade. Eu não morri dessa tal co...
co o que mesmo, 19? Estamos juntos e felizes. O seu sonho foi o resto...
-- Eu gostaria que você estivesse certo. Mas não. Isso é um sonho.
Deixe-me tentar contar-lhe mais, deixe-me desabafar!
Ele voltou ao seu lugar à mesa e ela continuou a contar-lhe o que vivera
em 2108 e em 2064.
Do que, afinal, estaria falando a sua mulher? – perguntou-se Jorge.
Teria mesmo viajado pelo Tempo? Mas e o presente? Que história maluca
seria aquela de um mundo dominado por um novo corona vírus que desafiava
toda a estabilidade de todos os países? Como seria possível que um
simples vírus desafiasse a ciência, que nem mesmo vacinas, produzidas em
tempo absolutamente recorde, pudessem deter as muitas mutações desse
vírus? Aquilo era absolutamente inimaginável! Jorge temia pela sanidade
mental da companheira mas, ao mesmo tempo, as histórias que ela contava
tinham uma coerência que não se encontraria numa mente perturbada.
Quando Maria Helena terminou sua narrativa já era madrugada. Jorge
estava perplexo. Não sabia a que atribuir tamanha confusão mental de sua
esposa. Um forte desejo o invadiu e ele resolveu que pensaria sobre tudo
isso no dia seguinte. Agora só queria ter Maria em seus braços.
Foram para a cama e tiveram uma das noites mais felizes de sua vida. Uma
Maria Helena gulosa, quente, vibrante, correspondendo ao desejo dele, um
desejo que emergia como se, há anos, estivessem separados.
Manhã seguinte, Helena acordou antes dele. Sabia que estava em meio a um
sonho, uma bolha temporal. Decidida, saiu. Sem levar Vitória. Pegou o
seu carro (com aquela cadeirinha azul em vez de amarela) e foi direto
para o Castelo, sem acordar Jorge ou Vitória, sem tomar café, sem banho,
sem nada.
O clube estava fechado. Afinal, era segunda feira. Subornou o porteiro,
dizendo que esquecera os documentos no armário do vestiário e iria
apenas pega-los. Sabia que a névoa a esperava.
E a névoa a levou, de novo, a 2108.
Capítulo 12 – Outro Futuro
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