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Alberto Sughi, Noturno, 1999

MERGULHO NA SOMBRA

de Kalil Duailibi e Isabel Fomm de Vasconcellos

amostra do livro

 

A SOMBRA (trecho do capítulo 4 do livro "Mergulho na Sombra")

“There’s a shadow hanging over me”

Lennon-Mc Cartney

 

A depressão, dizem algumas publicações, será a doença característica do século XXI e as perdas econômicas (e de vida!) decorrentes deste fato serão enormes.

Parece, até aqui, que esta é uma doença moderna, do nosso tempo.

Mas será que é mesmo?

Fico pensando nos poetas românticos do século XIX. A poesia deles era pura melancolia e muitos cometeram suicídio, outros morreram do “mal do século”, a pneumonia.

Todo mundo sabe, empiricamente, que quando a gente está feliz não pega nem resfriado. Uma das palavras da moda, principalmente entre as mulheres (que adoram os lados misteriosos da vida) é “somatização”.

Será que a pneumonia atacava mais os tristes, como os nossos poetas românticos? É possível.

Desde a publicação de “Quem Ama Não Adoece”, do médico cardiologista do Instituto Dante Pazzanese, Dr. Marco Aurélio Dias da Silva, no final dos anos de 1980, muitos médicos têm publicado trabalhos e obras sobre a relação física do estresse com a maior probabilidade do aparecimento de doenças e a atual febre da atividade física vive pregando que exercício gera maior produção de endorfinas cerebrais, melhora o humor do praticante e, por conseqüência, pode lhe prolongar a vida.

Parece novo. Mas também não é. Médicos mais antigos, os chamados “de família” sabiam muito bem que, na prática, o primeiro passo para se ficar doente é ficar triste.

O clínico e reumatologista, Dr. José Knoplich, há quatro décadas, saúda seus pacientes com um cumprimento-bordão: Saúde e Alegria!

Como todo bom estudioso, ele certamente conhece tratados muito antigos da ciência médica – alguns da Antiguidade Grega e outros da própria Idade Média – que já relacionavam a tristeza à maior probabilidade de se adquirir doenças.

A questão que é colocada, há milênios, sobre as chamadas doenças mentais é se elas são do corpo ou do espírito. Como ninguém provou cientificamente a existência da alma ou do espírito, resta à ciência simplesmente admitir que ela seja do corpo, é óbvio, e assim procurar os meios mais eficientes para o tratamento.

No entanto, a prática comum na Idade Média de se atribuir as confusões mentais a possessões demoníacas e de entidades do Mal, ainda é muito comum nos dias de hoje. Igrejas evangélicas, centros de espiritismo e até alguns setores da Igreja Católica ainda praticam o exorcismo, tentando tirar da pessoa perturbada “o espírito do mal” que tomou conta do corpo dela.

Para os que não comungam dessa fé, o único “exorcismo” possível era, até cerca de duas décadas passadas, o divã do psicanalista. Hoje temos os modernos medicamentos antidepressivos. O que não significa, absolutamente, a extinção do divã, ou seja, da psicoterapia e da psicanálise.

Estudos recentes têm mostrado que a psicoterapia tem efeito, sim, sobre a química do cérebro, que é exatamente o que fazem os modernos medicamentos antidepressivos. Alteram a química cerebral.

 

 

 

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Depressão por Despedida

(conto do livro "Mergulho na Sombra")

 

Suzana dobra cuidadosamente o xale que estava em seus ombros e o coloca sobre os joelhos. Um solzinho tardio invade o jardim e aquece-lhe o corpo e alma. Acaricia de leve a capa do livro que está lendo. Está prestes a reiniciar a leitura quando uma música começa a tocar lá dentro da casa. “Yesterday”, dos Beatles.

A velha senhora sorri, lembrando-se da filha quando esta era jovem e amava os Beatles. Décio, seu marido, odiava os quatro cabeludos e reclamava todo o tempo quando Mariana passava as tardes estudando ao som dos Beatles. Suzana ri de novo, ante a lembrança.

-- Como é que essa menina vai conseguir estudar com essa barulheira? – esbravejava Décio.

Mariana, no entanto, sempre se saíra muito bem nos estudos e precisou até ser emancipada para poder se matricular na faculdade, onde entrara antes mesmo de completar 18 anos. Hoje, já quarentona, mora em Londres com o marido executivo de uma grande empresa que vive a mandá-lo de país para país... Por analogia, pensa em Cristiana, a filha do meio, dois anos mais velha que Mariana. Todos os dias Cristiana vem vê-la no fim da tarde, quando sai do escritório.  “Sorte a minha – pensa Suzana – que tenho quem venha me ver todos os dias.” De fato, a maioria das internas do residencial (como insistiam os donos e funcionários em chamar aquele asilo) recebia visitas muito raramente. “Só umas duas ou três – reflete Suzana – têm filhos dedicados como os meus...”

Até tres anos passados Suzana morava sozinha. Mas um dia caiu porque o fêmur se partira e seus filhos, quando ela saiu do hospital, decidiram que estava ficando arriscado demais deixa-la no apartamento com apenas uma empregada. Também havia uma certa confusão com os remédios. Ela tomava 12 comprimidos por dia e era preciso administrar os horários. Além disso, não tinham certeza quanto às refeições, se ela as fazia regularmente, se alternava. Era impossível confiar na empregada ou na palavra dela apenas. Assim, a melhor solução que eles encontraram foi levá-la para morar naquela casa de idosos onde ela teria todos os cuidados profissionais e faria, além de alimentação balanceada, atividades física e lúdicas.

Em sua cadeira de rodas, no jardim da sofisticada casa, aos 94 anos, Suzana pensa que, há 30, tem esperado a visita da morte.

Depois dos sessenta, passou a sentir a morte de perto. De repente a bruta não era mais uma perspectiva distante, mas uma certeza próxima. Então, passara 3 décadas, quase 1/3 da vida a pensar na morte. Uma absoluta estupidez, conclui ela. Naquele tempo, aos 60, estava ainda muito, muito longe da morte. Agora não. Com sorte, pode durar mais 5 ou 6 anos. Mas melhor não, raciocina ela, porque a qualidade de vida se deteriora muito rapidamente depois dos 90. Aqui no asilo ela observa. Todas as mulheres sadias como ela, quando passam dos 90, começam a decair a olhos vistos.

Quando os filhos a trouxeram para cá – e só puderam faze-lo porque eram cinco salários a pagar a despesa – ela ainda andava, saía sozinha, tomava um táxi, ia para a casa de um dos filhos, ou filhas, via as noras, os netos quando bem entendesse. Tinha seu próprio quarto, sua linha telefonica privativa, seu celular. Agora, mal podia dar dois passos sem a ajuda de uma das moças. Não usava os telefones porque sua cabeça embralhava os números. Teimava em ler mas a concentração era difícil, sua mente devaneava e ela perdia o sentido das palavras que lia.

Sim, melhor morrer. A vida assim não tinha sentido e muito menos utilidade.

Foi assim que, naquela tarde, Suzana decidiu morrer.

No dia seguinte acordou com febre alta, o médico da casa diagnosticou uma infeção urinária. Colheu material, mandou pro laboratório. Pimba. Era isso mesmo. As enfermeiras começaram a dar-lhe antibióticos. Ela punha o comprimido na boca, a enfermeira virava de lado, ela cuspia. A enfermeira saía do quarto, ela esmagava o remédio até ele virar pó.

- Mas como? – disse o médico na visita seguinte – esta infecçao já tinha que estar cedendo. Ela está tomando os remédios?

Foram trocar a roupa de cama, acharam o pó dos comprimidos no lençol.

O médico mandou dar injeções. Mas ela se recusava a permitir que as enfermeiras aplicassem. Quando viu três delas entrando no quarto sabia que iam segurá-la e aplicar a injeção à força. Começou a gritar:

-- É um direito meu recusar o medicamento! Vou telefonar pro meu advogado! Exijo que chamem os meus filhos. Ninguém vai me dar injeção à força.

O jeito foi chamar os filhos.

Vieram os três que moravam na cidade: Cristiana, o marido, Marcos e a esposa, João Luiz.

-- Vocês não podem me obrigar a tomar remédios – disse ela.

-- Mas, mãezinha, você está com infecção, está ardendo em febre.

-- Não vou tomar nenhum remédio.

Puseram o remédio na comida e ela sarou da infecção.

Mas não sarou do desejo de morrer.

Começou a não comer, para desespero das cuidadoras.

Deixou de sorrir, de conversar, ela que era a mais simpática e falante das internas.

Uma das filhas, alertada pelo médico, chamou um psiquiatra.

-- Sua mãe tem depressão. E alguma demência senil.

Depressão? Como depressão? A vida inteira ela foi alegre. Era um exemplo para todos que a conheciam.

- É a idade.

A idade. As pessoas estão vivendo mais do que nunca. Mas a Medicina ainda não consegue garantir a qualidade da vida depois de uma certa idade.

Um dos irmãos – o único que não concordara com a internação da mãe, embora continuasse contribuindo para o pagamento da alta mensalidade da casa de idosos – começou uma briga imensa com os outros irmãos, acusando-os de serem responsáveis pela depressão de Suzana.

-- Ela ficou assim porque vocês a internaram.

O médico ponderou: -- Ou vocês a internaram por que havia o risco de ela ficar assim?

O psiquiatra receitou antidepressivos.

Suzana emagrecia, tinha uma infecção atrás da outra, não conseguia mais andar. Algum tempo depois, deixou de falar. Em seguida, passou a não sair mais do leito. Transferiram-na para a enfermaria da casa. Soro na veia, dia e noite. Num domingo de manhã Cristiana foi vê-la e ela mal falava. Conseguiu balbuciar:

-- Sonhei com a minha mãe.

-- E foi um bom sonho?

-- Não sei. Nem sei mais o que é sonho, o que é realidade.

Na mesma tarde o telefone tocou na casa de Cristiana. Era a enfermeira cuidadora de Suzana:

-- Venha pra cá e traga uma ambulância. Não consigo mais os sinais vitais de sua mãe.

Cristiana chegou apenas a tempo de abraça-la e dizer adeus.

Quando saiu para providenciar as formalidades necessárias, entrou em seu carro pensando porque, afinal, Suzana, que sempre fora um exemplo de alegria e otimismo, tivera , no fim da vida, que passar pela experiência da depressão.

 
                                                                                       

 

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