TRECHO DO LIVRO INÉDITO DE ISABEL FOMM DE VASCONCELLOS -

                   "O Espelho ou A História Quase Invisível"

Matisse, 1901, A cabeleireira

 

"O Espelho ou a História Quase Invisível"

fala das mulheres que fizerem diferença na caminhada da Humanidade, mas também é um romance de ficção que começa em 1832 e termina em 2012. Existem duas realidades no livro: uma é o reflexo da outra.

 

Capítulo 10

1960 - 1964 - Políticas

(George Sand no espelho)

Quando Maria Júlia mudou-se para a casa da Avenida Brasil havia muito tempo o casamento de Antônia e Fabrizio não passava de uma fachada social. Era de conhecimento de todos na casa – da arrumadeira à governanta -- que, depois daquele ano inteiro em que Fabrizio mantivera a esposa e a filha na chácara de Santo Amaro, ele instalara uma amante, Regina Célia, num confortável apartamento na Avenida Paulista e era para lá que ele ia, quase todos os dias, depois do expediente na fábrica. Mesmo assim, fazia questão de jantar em casa, pelo menos três vezes por semana, para manter a sua filha Cláudia na ilusão de que seus pais viviam um casamento feliz. Por isso também jamais faltava a qualquer celebração familiar, fosse Natal ou um simples aniversário de um sobrinho.

Para Antônia, que ainda só podia sair de casa acompanhada, a vinda de Júlia foi uma benção. Era muito melhor sair com a mãe do que com o chofer ou com a governanta.

Com Júlia, Antônia voltou a frequentar os eventos culturais. Museus, livrarias, galerias de arte. Um dia, no Museu de Arte Moderna, encontraram Anésio Jr., que era agora, mais de uma década depois que Antônia o instalara num pequeno atelier, um pintor consagrado. Apesar de todo o tempo passado e das muitas aventuras românticas vividas, Anésio nunca pudera esquecer Antônia. Ela fora, sem dúvida, sua melhor amante. Ela também não o esquecera. Ainda amava o marido quando do seu romance com Anésio. Mas Fabrizio destruíra, naquele ano em que a trancafiara na chácara, qualquer sentimento que ela tivesse por ele – pensava ela. No entanto, desta vez não se arriscaria. Seu marido era poderoso demais para não dar um jeito de acabar com a reputação de uma mulher que ousasse se desquitar dele. Além disso, havia Cláudia. Fabrizio certamente acabaria conseguindo afastá-la da filha no caso de uma separação. Anésio, embora começasse a ser um artista respeitado, estava longe de ser um Picasso. Jamais poderia fazer frente ao poder do dinheiro de Fabrizio.

Por isso Antônia engoliu a forte atração e a perturbadora emoção que sentiu ao cumprimentá-lo. A expressão de ambos era formal, mas os olhos dele não conseguiram enganá-la. E o toque de sua mão, no cumprimento, fez tremer-lhe a alma.

Antônia pensou: Se não houvesse a Cláudia, eu jogaria tudo para o alto por esse homem.

E, por mais que amasse a filha, naquele momento quase se arrependeu de ter cedido à pressão familiar e ter deixado nascer o bebê que ela jamais quisera. É verdade que, assim que viu a filha, começou a amá-la e que não estava disposta a renunciar a esse amor. Mas, para isso – e então odiou sua condição de mulher – tinha que renunciar ao amor daquele homem.

Estava nesse turbilhão de pensamentos quando uma linda mulher se aproximou de Anésio e ele a apresentou:

- Dona Júlia Almeida, permita-me apresentar-lhe minha noiva, Srta. Alda Morante. Dona Antônia Gaetano – disse ele dirigindo-se à noiva – filha de Dona Júlia.

-- Ora, Anésio, quem, em São Paulo, não conhece a grande modista Júlia Almeida? Já estive em seu atelier quando era menina.

-- É parente de Veridiana Morante? – perguntou Júlia, lembrando-se de uma de suas mais ricas freguesas.

-- Filha. – respondeu Alda.

Antônia tentava disfarçar seu mal estar. Então o canalha do Anésio estava noivo de uma das maiores fortunas paulistas... Alda interrompeu-lhe os pensamentos:

-- Dona Antônia, meu noivo contou-me o quanto a senhora, desinteressadamente, o auxiliou no começo de sua carreira.

-- Nem tão desinteressadamente assim – sorriu, não sem esforço, Antônia – Na verdade hoje sou a feliz possuidora de algumas de suas primeiras obras, as quais Anésio gentilmente me presenteou e que, certamente, multiplicaram em muito seu valor, significando um dos melhores investimentos da praça.

Mãe e filha se retiraram logo depois com a desculpa de que teriam que chegar a tempo para o jantar, servido pontualmente às sete da noite.

Era o dia de Fabrizio fazer a refeição em casa. Na mesa, Cláudia disse que precisaria do chofer naquela noite, pois era aniversário de uma amiga do clube e a turma se reuniria na casa dela.

-- Muito bem, mocinha – disse Antônia – desde que seu pai esteja disposto a dirigir, porque ele também vai sair esta noite, e que você esteja de volta às dez e meia.

Cláudia protestou:

-- Mãe, você sempre quer que eu saia no melhor da festa. Minhas amigas ficam até meia noite.

-- Mas o chofer também não é seu escravo, minha filha.

-- Posso voltar com o pai da Rose, que vai buscar ela, sempre a meia noite.

-- Vou telefonar pra mãe dela depois do jantar e perguntar se é possível para eles fazer essa gentileza.

-- Legal, mãezinha! Assim eu posso ficar mais.

Antônia suspirou:

-- Mas “legal” e “buscar ela” não fazem parte da linguagem de uma moça bem educada.

-- Chii, mãe. Todo mundo fala desse jeito hoje. Você tá por fora.

-- “Tá por fora” – riu Fabrizio, que, naquela casa, só ria para a filha – também não está aprovado por sua mãe.

A garota ergueu os olhos para o pai, desafiadoramente:

-- E pelo senhor, tá?

-- Tá – riu ele.

E Cláudia, levantando-se, foi abraçar o pai, os dois a rir.

-- Vou me trocar – anunciou ela – disparando escadas acima.

Antônia, sentindo-se totalmente excluída, quase gritou:

-- Não abuse da maquiagem!

-- Bom – disse Fabrizio – Boa noite.

-- Lá vai ele – Antônia dirigia-se à mãe, que ainda saboreava seu café – lá vai ele para os braços daquela zinha.

-- Você já deveria ter se acostumado – respondeu a velha Júlia.

-- Mãe – Antônia criou coragem – nós ainda temos bastante dinheiro, não é? Você tem imóveis, investimentos, joias e ouro nos cofres do banco. Será que eu preciso mesmo me submeter a essa vida de humilhações? Vamos nos mudar para aquele seu apartamento no centro da cidade. Vamos viver lá, nós três, você, eu e Cláudia, sossegadas, longe desse meu casamento hipócrita.

-- Por mim, nenhum problema. Mas acho que você é quem terá um problema. Vai perder a posição social, será mais uma Maria Ninguém. Hoje você é a Sra. Fabrizio Gaetano, uma mulher rica, respeitada, que sai nas colunas sociais, que é reconhecida por suas contribuições para as instituições de caridade de São Paulo. Separada, será esquecida. E a Cláudia? Gostará de passar a ser filha de uma Maria Ninguém? Você não acha que sua filha tem orgulho daquilo que você representa nessa sociedade? Pense bem.

Antônia sabia que Júlia estava certa. Mas mesmo assim argumentou:

-- Ué. Não é você que acredita que as mulheres podem ser independentes? Você não é entusiasta das corajosas que lutam por isso, que se expõem e desafiam a sociedade? Quer dizer que isso é bom para as outras e não para a sua filha...

-- Antônia, você não fará isso por idealismo, você não estará lutando pela melhoria da condição social das mulheres brasileiras. Você quer se separar do Fabrizio porque sabe que ele tem uma amante. Mas você é a esposa dele, você tem a sua posição na melhor sociedade paulistana. Não creio que será feliz se perder isso.

-- Mas também não sou feliz agora.

-- E o que faria você feliz? O Anésio? Um artista que só usou você para subir na vida, essa é que é a verdade.

-- Mãe! – quase gritou Antônia – como você pode ser tão cruel?

-- Cruel é a realidade, Toninha. – respondeu Júlia amansando a voz – O mundo, na maior parte das vezes, não corresponde aos nossos sonhos e anseios. Bem, se você me permite, vou me deitar. Estou, a cada dia que passa, me sentindo mais cansada.

Antônia lançou um olhar carinhoso para a figura da mãe, que envelhecera muito nos últimos tempos, depois que resolvera encerrar seu atelier de costura. Como se a falta da rotina cotidiana do trabalho tivesse contribuído para a rapidez da decrepitude do corpo. Fez rapidamente as contas: Julia estava com 74 anos. Ela própria, Antônia, se aproximava dos 50.

No ano anterior começara a sofrer de calores noturnos, andava irritadíssima, acordava ensopada no meio da noite, várias vezes por noite. O médico receitara uns hormônios, mas por pouco tempo – dissera ele – porque ainda era tudo meio experimental, não se sabia ao certo que outros efeitos aqueles hormônios teriam. Antônia detestou. Um dos tais efeitos foi que ela inchou feito um balão e as roupas começaram a não abotoar mais. Julia, é claro, se oferecera para alargar o que fosse possível, mas Antônia preferiu jogar os tais comprimidos de hormônio na privada e puxar a descarga. Pensou que Anésio certamente não se interessaria mais por ela, agora que estava uma velha calorenta e rabugenta, mas ainda tinha sim aquela fome de amor no baixo ventre. Levantou-se, tocando a sineta para a empregada vir tirar a mesa e foi para a sala ao lado, onde estava o famoso espelho. As antigas freguesas de Júlia costumavam dizer que aquele espelho era mágico, que, refletidas nele, se achavam mais belas nele do que em qualquer outro. Se pudessem imaginar o quanto ele era mágico... Antônia fitou-se longamente. Tinha emagrecido, depois de jogar fora os tais remédios, mas estava perdendo a cintura. Pensou na mãe, que já era um barrilzinho, embora não fosse gorda. Ah, destino trágico esse das mulheres. Os homens mais velhos eram cada vez mais charmosos e as mulheres mais velhas cada vez mais horrorosas. Sua pele estava feia, perdera o viço, o brilho. As rugas apareciam, o pescoço ficando flácido, bolsas se formando sob os olhos... Então tomou uma decisão: já que estava casada com um homem que não amava, mas que era rico e poderoso, pelo menos usufruiria do dinheiro dele. No dia seguinte, resolveu, ela iria procurar o festejado Dr. Juvêncio Jatene, o mais famoso cirurgião plástico da cidade. Começaria também um regime e se inscreveria nas aulas de ginástica de seu clube e, pensando nisso, por um instante, lhe pareceu que o espelho lhe devolvia uma Antônia rejuvenescida.

 

A partir de então, a vida de Antônia mudou radicalmente, como mudara sua forma de pensar, ao, finalmente compreender aquelas mulheres do passado que sua mãe tanto admirava. Ela começou a usar sua situação financeira privilegiada em prol de si mesma, não apenas com tratamentos estéticos e ginástica, mas também fazendo inúmeros cursos sobre os mais variados assuntos, da arte à culinária, da etiqueta à economia.

Quase nada restava, naquele começo da década revolucionária, os anos sessenta, daquela professorinha reacionária e conservadora com quem Fabrizio se casara em 1933.

Certo que ele também mudara muito. Era agora não mais o filhinho de papai, playboy e cidadão do mundo, havia se transformado numa das mais importantes lideranças empresariais de São Paulo e do Brasil. E, agora que suas empresas podiam caminhar sem a sua constante vigilância, estava começando a se sentir atraído pelo mundo político. Estivera, com Antônia, presente nas solenidades de inauguração da Novacap, aquela Brasília escultural de Lúcio Costa e Oscar Niemayer, mas que vista de perto e tirando seus prédios magníficos, mais parecia – dizia ele – uma cidade de faroeste. Não gostaria de passar grande parte da sua vida lá. Não enquanto a cidade não se fortalecesse (o que inevitavelmente aconteceria, agora que ela era a sede do Governo Federal), por isso estava pensando numa cadeira na assembleia legislativa do estado, como seu primeiro passo.

Fabrizio se orgulhava de dizer que jamais se deixara iludir com as promessas do ex presidente , o mineiro Juscelino Kubitscheck, de fazer com que o Brasil crescesse cinquenta anos em cinco. Mesmo Brasília, a grande cartada política de Juscelino, raciocinava Fabrizio, deveria ter custado grande parte dos recursos que deveriam se aplicados no desenvolvimento da nação, que ambicionava crescer tanto... E agora tinham eleito esse lunático do Jânio Quadros – reclamava em pensamento. Logo no começo do seu governo, Jânio parecia mais interessado em proibir os biquínis das mulheres nas praias e as brigas de galo, do que em fazer crescer o país. Mas também, se eu fosse ele, refletia Fabrizio, talvez só me restassem os biquínis, as brigas de galo e as intermináveis sessões privativas de cinema na sala de projeção do Palácio. Afinal, Jânio herdara de Juscelino, uma dívida de 1 bilhão e 350 mil dólares, relativa à aventura da construção de Brasília, dívida essa contratada para ser paga nos anos de 1961 e 62, pelo sucessor de Juscelino... Espertinho esse mineiro... É, talvez fosse melhor ficar assistindo filmes do que tentar governar um país desses...

Fabrizio lembrava-se dos primeiros anos de escola de sua filha Cláudia quando a menina voltava das aulas toda entusiasmada porque a professora explicara que o Brasil era o melhor país do mundo: não tinha terremoto, nem vulcão, nem furacão... E iria crescer cinquenta anos em cinco...

Cláudia também se entusiasmara agora, na adolescência, com o esplendor da bossa nova, explodindo inclusive fora do país, e com as primeiras manifestações das lutas por um mundo mais justo, por maior igualdade social, pelo fim do preconceito de raça, pensamentos que estavam na infância do ideário que acabaria por caracterizar a década revolucionária que começava agora.

Fabrizio surpreendia-se, e de fato também se preocupava, com o interesse da filha pelas questões políticas. Mas acabava sempre conversando bastante com ela, principalmente à mesa do jantar, sobre todo esse universo que Antônia agora fazia questão de desconhecer. Isso fazia com que Antônia se sentisse excluída, como se Fabrizio estivesse lhe roubando a filha.

Com ele, Cláudia vira desmoronar a imagem positiva que tinha do governo de Juscelino. Ele lhe explicara, que além de endividar o país com a faraônica Brasília, Juscelino levara os louros da implantação da indústria automobilística quando, de fato, todas as leis que tornaram possível essa implantação, tinham sido promulgadas no segundo mandato de Getúlio Vargas e que a maioria das montadoras supostamente trazidas por Juscelino já estavam há tempo atuando no país. Na verdade, o processo de industrialização – explicava Fabrizio, atribuído a JK, começara bem antes dele, com a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional e da Belgo Mineira, nos anos 1940. E Brasília demoraria muito para se tornar uma cidade, fora uma despesa imensa, paga com recursos que endividaram o país, uma realização para inglês ver – afirmava ele -- que nenhum benefício real trouxera ao povo brasileiro e nem mesmo à elite, excetuando alguns asseclas de JK, que enriqueceram do dia para a noite.

Cláudia, embora fosse uma menina rica, estudava num colégio estadual. Naquele tempo era comum que as famílias de posse mandassem seus filhos para colégios do governo, alguns deles, onde se dizia estar o melhor ensino do estado. Criada como uma menina da alta sociedade, no colégio estadual aprendera a conviver com outras realidades sociais e econômicas de alguns de seus colegas menos privilegiados e aprendera também o quanto era, até então, muito pobre e limitada a sua visão de mundo. Embora, por influência tanto da avó Júlia como de sua mãe, tivesse crescido com o gosto pela literatura e pelas artes em geral, confrontada com a dura realidade da vida de seus colegas mais pobres, Cláudia adquirira uma nova dimensão de pensamento: A política.

Inteligente e perspicaz, logo estava militando entre as organizações secundaristas de seu colégio e, não se surpreendeu com o golpe militar de 1964, quando este aconteceu, porque já discutira inúmeras vezes com seus colegas de escola e, mais tarde, de faculdade, e também com seu próprio pai, os rumos que o país estava tomando depois da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e toda a tumultuada posse de Jango Goulart. Apesar de setores mais conservadores terem tentado impedir a posse de Jango e, depois, terem tentado controla-lo através da instalação do regime parlamentarista, nada poderia deter o ex vice de Jânio e agora presidente, que, de namoro sério com os comunistas da URSS e da China, pensava em resolver o problema econômico do Brasil dando um belo calote em seus credores.

Em 1º de abril de 1964, quando o país amanheceu sob a pesada bota dos militares golpistas, tomando o café da manhã e ouvindo as notícias no moderno rádio portátil, pai e filha se entreolharam e disseram, ao mesmo tempo: “eu sabia!”

Aquela data significava um verdadeiro divisor de águas na vida do Brasil, mas nem Fabrizio, nem Cláudia e muito menos Antônia se davam conta disso naquele momento.

Para Fabrizio, a tomada de poder pelos militares era a volta da disciplina ao país, pondo fim de uma vez por todas à ameaça da ditadura comunista e o consequente desmantelamento da ordem social. Os militares arrumarão a casa – pensava ele – e depois devolverão o poder para os civis, mas para gente de bem, gente com os pés no chão e não um bando de comunistas românticos. Ele imaginava então, que os militares sairiam do poder em um ou dois anos e ele talvez pudesse se dedicar à vida política.

Para Cláudia, era o primeiro sinal de que viriam tempos difíceis para quem, como era o caso dela, desejasse uma nova sociedade, com mais justiça social e melhor distribuição de renda; mas também significava um certo alívio pois, ao mesmo tempo que queria um mundo mais justo, Cláudia temia o fim das liberdades civis, a censura da imprensa e o isolamento do resto do mundo que os comunistas haviam imposto a todos os povos da URSS.

Para Antônia, era o de menos.  Ela pouco se interessava pelas questões políticas e não tinha, como seu marido, medo dos socialistas. Quando o assunto era esse, dizia rindo:

-- Não há com que se preocupar. Se o comunismo chegar ao Brasil, o brasileiro logo avacalha com ele.

O golpe militar para ela significava apenas a troca de poder, os militares ou o Jango e seus amigos socialistas – pensava ela – no Brasil tanto faz, todos vão roubar o que puderem, ninguém fará nada de bom pelo povo e tudo continuará como sempre foi, o mesmo atraso, o mesmo subdesenvolvimento, a mesma miséria e tristeza que ela tanto encontrara ao viajar pelo país com Fabrizio.

Estava mergulhada nesses pensamentos quando passou defronte ao espelho e uma mulher a chamou:

-- Antônia, vamos falar sobre política.

Ela se voltou subitamente mal humorada, irritada pela interrupção:

-- Nem pensar! – disse ela para a mulher. – Esse espelho está mais me parecendo um vigia, um espião moralista que só coloca mulheres tentando mudar o nosso pensamento, interferir nas nossas vidas.

-- Não me parece que você tenha achado ruim a interferência de Isadora Duncan na sua vida.

-- E ainda sabem uma da outra! – reclamou Antônia para um terceira pessoa inexistente – Quem é você, afinal? O que quer de mim?

-- Meu nome completo é Amantine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant, bisneta do célebre Marechal da França, conde Maurice de Saxe.

No entanto, passei para história com meu pseudônimo: George Sand.

-- Sei – disse Antônia ainda de má vontade – Aquela que se vestia de homem.

-- Um gesto político simbólico, minha cara Antônia. Vestia-me de homem para sugerir que a mulher poderia se igualar a qualquer um deles. Naquele tempo éramos consideradas incapazes.

-- Ainda somos! – esbravejou Antônia – Parece que suas amigas feministas não conseguiram grande progresso para as mulheres, afinal.

-- Não se muda a sociedade de um supetão. As coisas vão mudando, lentamente. Vocês mulheres do século XX já conquistaram muita coisa, incluindo o voto, em boa parte do planeta. – respondeu ela e continuou – No seu caso, aliás, uma conquista inútil, já que você parece nem se importar com os rumos políticos de seu país.

-- Está vendo? É o que eu disse. Vocês aí desse espelho só sabem criticar a gente.

-- Não é uma crítica, é uma constatação. Na verdade, eu também passei metade da minha vida numa alienação mística. Muito pequena, com a morte do meu pai, fui tutelada por minha avó. Ela me mandou para o convento porque ficava furiosa comigo que vivia conversando com minhas amiguinhas invisíveis. Eu adorei a vida no convento! Atendia perfeitamente os meus anseios pela espiritualidade e fiquei pensando seriamente em ser freira. – ela riu – Quando minha avó soube disso, me tirou bem depressinha do convento. Fiquei muito contrariada. Mas minha avó era maravilhosa e aprendi a amá-la, convivendo com ela. Marie-Aurore de Saxe definitivamente não era uma mulher qualquer.

-- Pensei que você quisesse falar de política – disse Antônia zombeteira.

-- É disso que estou falando – respondeu George Sand com calma. – Estava contando a você que fui criada para ter a mentalidade estreita das mulheres submissas, para me casar, ter filhos e ficar orgulhosa do reino do lar, preocupando-me com as futilidades da vida das burguesas ricas e das aristocratas.  Assim como você.  Aos 18 anos, depois da morte de minha avó, me casei com um advogado, François-Casimir Dudevant e tive dois filhos. Mas toda aquela mesmice do dia a dia me entediava. Deixei meu marido e fui para Paris. Eu queria viver! Comecei a escrever para Le Figaro, você sabe, o jornal mais importante da França então. Um dia Jules Sandeau, o escritor, que gostava do meu texto, me convidou para escrever um livro com ele. Fomos amantes. Foi ele que inventou de me chamar George Sand. Escrevemos o romance Rose et Blanche e gostei tanto da experiência que resolvi que esse era o meu caminho: ser escritora. Eu já tinha 28 anos quando publiquei meu primeiro livro, Indiana, um verdadeiro protesto contra a condição feminina. Fui a primeira mulher no mundo, mais tarde, a conseguir viver só da minha literatura.

-- E foi assim que se tornou política? – perguntou Antônia, já presa do carisma da outra e subitamente interessada na história.

-- É claro que discutir a condição social das mulheres é um ato político. Mas, naquele tempo, acho que eu nem sabia disso. Eu queria expor minhas ideias e minhas ideias apontavam para a liberdade da mulher e sua completa emancipação. Isso incluía a liberdade amorosa e sexual, é claro. Você também, Antônia, ao assumir seu amor por Anésio estava afirmando o seu direito à liberdade. Tive vários amantes, alguns famosos, como Alfred de Musset, o poeta. Esse também começou a me sufocar e eu tive que escrever uma carta melada e romântica para conseguir me livrar dele. Mas foi um outro advogado, Michel de Bourges, de quem fui amante de 1835 a 37, que me converteu aos ideais republicanos e socialistas. Veja, eu já tinha então mais de 30 anos e já era uma escritora consagrada.

-- Mas você também teve um caso com o compositor Chopin, não foi? – perguntou, curiosa, Antônia.

-- Sim. Frederic e eu fomos amantes e amigos por 9 anos, mas eu já vivia uma relação de amor que começara antes dele, em 1833, com Marie Dorval, uma atriz da Comédie-Française.

-- Com uma mulher? – assustou-se Antônia.

-- O amor não escolhe sexo, minha cara. Minha vida foi o que eu quis que ela fosse. Convivi com os maiores pensadores do meu tempo. Publiquei todos os livros que escrevi. Fiz sucesso. Me livrei da mentalidade aristocrática, de elite. Fui uma socialista romântica mas coloquei a minha mão na massa na revolução de 1848. Nós organizávamos banquetes para nos manifestar e trocar idéias contra o governo monarquista de Luís Felipe. Para o dia 22 de fevereiro de 1848 estava marcado um grande banquete que reuniria oposicionistas de toda a França. Guizot, o primeiro ministro, conseguiu acabar com o banquete como conseguia ir, aos poucos, acabando com os nossos direitos políticos. Foram três dias de lutas nas ruas de Paris. Nós fomos o estopim da República.

-- Mas você era uma marquesa, certo? Você não estava lutando contra a sua própria classe?

-- Eu estava lutando, como lutei toda a minha vida, contra a exploração, contra a injustiça, a corrupção e contra a discriminação. Você, Antônia, diz que não se interessa por política. Eu já ouvi, aqui de dentro do espelho, você dizer que a política é suja. Mas, desde que você compreendeu e compartilhou das ideias de sua mãe sobre a condição social das mulheres, você começou a fazer política, essa é que é a verdade, Antônia.

-- E o que você me aconselharia? – perguntou então Antônia, já completamente esquecida de seu protesto contra a interferência do espelho em sua vida.

-- Dispa-se desse preconceito idiota contra a política, acompanhe os acontecimentos do seu tempo e leia sobre o passado. Leia os filósofos, os pensadores, os teóricos e leia George Sand – arrematou ela com uma gargalhada.

E sumiu.                                                                                                                                                                       VOLTAR PARA A PÁGINA DE LIVROS DA ISABEL

 

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De: António de Andrade Albuquerque
Enviada em: quinta-feira, 17 de abril de 2014 22:20
Para: isabel@isabelvasconcellos.com.br
Assunto: O ESPELHO OU A HISTÓRIA QUASE INVISÍVEL

 

Cara Isabel:

 

Somente um escritor – no seu caso, uma ESCRITORA (em maiúsculas!) - podia escrever o que escreveu, e só uma escritora com a sua cultura o pode fazer porque, sem a sua «bagagem intelectual» não seria possível produzir o que produziu! O diálogo com a George Sand está com relevante interesse, sobressaindo a sua imaginação na abordagem de factos reais e históricos. Contudo – e apesar de se tratar de um trecho do seu próximo livro – o que acabei de ler não chega! Tenho o maior interesse em ler a obra completa! Para quando? E não vai, com certeza - a par de outros acontecimentos históricos –, abandonar o enredo relativo ao casal, à filha de ambos e à avó…? Esta pergunta porque – admito – haverá uma relação, directa ou indirecta, entre essas personagens, ficção e factos históricos, ou… ou estarei redondamente enganado…?!

Para quando a obra completa, repito…?

 

Um abraço,

 

António

 

Linda Naufel de Freitas comentou sua publicação no grupo Livro-presente de Natal: Primeiro Chegam os Anjos.

Linda Naufel de Freitas

Linda Naufel de Freitas

20 de abril de 2014 22:10

Li e achei muito bom.

Solange Malamud

Solange Malamud

20 de abril de 2014 19:41

Isabel, parabéns! Adorei seus contos em" Primeiro chegam os anjos" e esse capítulo do novo livro também é ótimo. Você tem uma narrativa muito rica, muito brasileira.

De: Osmar de Almeida Marques
Enviada em: quinta-feira, 15 de setembro de 2016 12:37
Para: Isabel Fomm de Vasconcellos
Assunto: Sugestão

Bom dia Isabel...

Gostei muito da sub página, mas gostei muito mais da leitura do "Espelho" - bela lição de história, muito bem escrita por você. Viajei bastante nela e lembrei-me do Espelho Mágico da Dona Vanda - Rua Antonio das Chagas... Muita história, muito conhecimento.

Anexo, alguns escritos que se referem à viagens. Tudo começou com "Aquela folha de papel almaço...".

São escritos antigos, mas que consegui recuperar hoje. Tem mais alguns. Espero que os aprove.

Abraços,

Osmar