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-- Durante três décadas a COVID_19 matou mais de 4 bilhões de pessoas no mundo e, das 3 bilhões que sobraram, a maioria estava estéril, como eu. Principalmente quem era jovem ou criança quando o primeiro Novo Corona Vírus começou a circular. Casas e edifícios, por todo o mundo, foram se tornando inúteis. Não havia quem os habitasse. Lentamente foram sendo demolidos ou viraram ruínas. Indústrias foram abandonadas, o consumo despencou e só as universidades conseguiram manter-se e manter funcionando a rede mundial de computadores. Até hoje ainda usamos máquinas e celulares que foram fabricados antes do mundo começar a ruir. Edifícios que tinham algum valor histórico foram preservados e as pessoas começaram a morar neles e abandonar todo o resto. Começaram também a destruir casas, prédios, fábricas, tudo o que não tinha mais serventia e sobre as montanhas de escombros a vegetação foi se refazendo e crescendo e o tempo se encarregou de mudar completamente a face do planeta. |
O Castelo dos Futuros de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano |
LEIA O LIVRO AQUI, SEM CUSTO!
Em plena pandemia, Maria Helena viaja com sua filha bebê pelo corredor de árvores do Castelo, que é um Portal do Tempo, e cai em 2108. Encontra uma Terra recuperada, com poucos habitantes e muita natureza preservada. Parece um paraíso, mas é um inferno psicológico.
São muitas as viagens de Helena até que ela volte para o seu tempo "certo", 2021, Brasil, pandemia. Vai também a um 2108 alternativo, com o planeta agredido por guerras e desastres ecológicos, como os tsunamis do ar.
E vai ainda a 2063 e a um 2021 alternativo, onde não existe pandemia e o presidente do Brasil é outro.
Uma reflexão sobre o que estamos causando ao nosso planeta, ao nosso lar, à nossa Mãe Terra e sobre que futuro esperar, dependendo de como agirmos agora.
Com prefácio do premiado escritor Márcio Leite.
Assistir vídeo do pré-lançamento. Ver Chamada dessa subpágina.
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Castelo livro 3 Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
Para Mauro Caetano, que sempre enxergou para além do tempo presente.
Nota da Autora
“Um Castelo Além do Tempo”, livro anterior a essa aqui, conta a história de Susana que entra no Corredor de Árvores do Castelo e viaja para o passado, vai de 2020 a 1910. Lá, se envolve com a família Meyer, proprietária do lugar e, quando vem de volta para seu tempo, encontra um descendente dos Mayer, igualzinho a aquele pelo qual – George – ela se apaixonara em 1910.
Já, em “O Castelo dos Futuros”, a heroína – Helena -- é descendente de um outro ramo da família dos Mayer, os Zom e viaja pelo mesmo Corredor do Tempo e das Árvores mas, ao contrário de Susana, não vai para o passado e, sim, para o futuro. Mas será único esse futuro?
Prefácio por Márcio Leite
A viagem no tempo sempre foi tema fértil na literatura de ficção, assim como universos paralelos e campos de probabilidades, uma vez que acomodam a abstração da Física Quântica de forma quase onírica. Explorar viés literário versátil, com idas e vindas na linearidade do tempo, e assim, obter histórias montadas, desmontadas e remontadas em outra vertente da realidade, à guisa de experiência migratória capaz de acampar em diferentes terrenos da mente dos leitores, parece fácil para a autora. Fazer isso sem se perder no cipoal de fatos cronologicamente embaralhados, sem levar o leitor a labirintos insolúveis, com a elegância da autora de O Castelo dos Futuros é coisa rara. Isabel Fomm de Vasconcelos, com a protagonista Maria Helena Smith e sua pequena e doce Carmen Vitória, no perímetro do Clube do Castelo e da represa de Guarabitinga, trafegam por diferentes ambientes do espaço-tempo, em torno de uma saga familiar recheada de mistério, onde possivelmente - vejam que uso a palavra possivelmente -- se mescla realidade e fantasia. O vertiginoso entrelace de datas, fatos e relações de parentesco revelado em viagens no tempo, e que algumas vezes resultam em distopia é, neste caso, um deleite para o leitor.
Marcio Leite É médico clínico, homeopata e psicoterapeuta. Apaixonado por livros, escreve desde a adolescência. Permaneceu como "escritor de gaveta" por muitos anos, até que começou a ganhar seus primeiros prêmios literários, inicialmente no âmbito da Sobrames (Sociedade brasileira de médicos escritores), da qual faz parte. Em 2008 ganhou o Prêmio SESC de Literatura com o Romance O momento mágico. Em 2011, seu segundo romance, Pelas frestas do telhado, arrebatou o Prêmio Internacional da UBE - RJ. Em 2015 publicou Fragatas não pousam no mar, um romance sutil, com viés no realismo fantástico. Vários de seus contos venceram prêmios nacionais, a exemplo do Festival de Paranavaí - PR 2013; Concurso de Contos de Ponta Grossa - PR 2014; Academia Itajubense de Letras - MG 2014; Prêmio Cataratas 2015.
Introdução
Maria Helena Smith, trineta de Helen Zom, tinha no corpo as marcas da família Waltman, os mesmos olhos azuis, os mesmos cabelos dourados, o mesmo olhar de quem enxerga para além da simples paisagem. Nascera em 1977, descendente de uma linhagem de filhas únicas, filha da bisneta de Helen, Augustine, que se casara com um imigrante austríaco de Santo Amaro que, por sua vez, fizera fortuna no ramo imobiliário.
Antes de morrer, em 2017, Augustine, que estava com 77 anos, chamou Maria Helena e contou-lhe uma história sobre um Portal do Tempo que existia no Clube do Castelo. Explicou a ela que só quem tivesse um desejo sincero de voltar ao passado ou de trazer alguém do passado até o presente, seria capaz de abrir o Portal e viajar por ele. Disse ainda que esse era um segredo revelado por sua própria bisavó, Helen Zom Krauss, e que nunca fôra levado a sério por ninguém da família.
Augustine, porém, convencera seu marido, o rico Otto Smith, a comprar um título patrimonial do Castelo, que ela herdara com a morte dele e que, agora, seria de Maria Helena, a filha que crescera no Castelo. -- Cuidado – disse ela, com sua voz agonizante – minha filha. Se tentar viajar pelo Portal, dificilmente conseguirá. Não é assim que acontece. Você precisará estar caminhando entre as árvores da rampa que desce da sede até a praia e, quase sem querer, sentir o sincero desejo de recuar no tempo...
-- E por que, mamãe, eu sentiria esse desejo? – perguntou Maria Helena.
-- Não sei – respondeu ela – Talvez você nunca o sinta, estando ali. Mas se sentir, por qualquer motivo, e estiver exatamente ali, o Portal se abrirá para você. Esse é um segredo da nossa família. Sua trisavó Helen o revelou, antes de morrer, à filha dela, Maria Júlia, sua bisavó que, por sua vez, também antes de morrer, o revelou a sua avó Monique, minha mãe, e estou agora revelando a você.
-- Minha trisavó viajou por ele, por esse suposto Portal?
-- Não. Nenhuma de nós jamais teve essa experiência, mas nossa Helen Zom Krauss garantia que era verdade, que ela estivera no Castelo, em 1930 eu acho, quando ele ainda era residência da família que o construiu e uma moça que morava lá disse a ela ter recebido uma visita de alguém do futuro, do ano de 2019. Talvez seja você que, daqui alguns anos, viaje pelo Portal.
Maria Helena sorriu, achava que a mãe talvez, por estar à beira da morte, estivesse sonhando. Como que lendo seus pensamentos Augustine disse: -- Você tem que me prometer, antes que eu me vá, que não deixará morrer esse segredo. Mesmo que você não viaje pelo Portal, conte à sua filha, antes de morrer, para que nenhuma de nós seja pega de surpresa em um tempo diferente. Você promete?
-- Sim, mãe, prometo. – Contarei à minha filha se, algum dia, eu tiver uma.
Capítulo 1 – Histórias Cruzadas
Maria Helena, grávida de 37 semanas, olha pela janela do quarto de hospital onde está internada, em São Paulo, naquela primavera de 2020. Sorte ter uma janela. Com o estabelecimento lotado, ela fôra colocada numa enfermaria reservada às grávidas, população de alto risco para essa terrível pandemia que sacudia a face do planeta. Sabe que vai dar à luz uma menina e pensa que estranho destino seria aquele da família Zom-Krauss, uma família de mulheres que enviuvavam muito cedo e tinham apenas filhas únicas. Seria esse também o seu destino, ela pensava. Principalmente agora que seu marido, aos 45 anos, estava internado em outra ala do mesmo hospital, numa UTI, completamente isolado e só, vítima da terrível e desconhecida COVID-19, ele, do grupo de alto risco, já que tinha problemas cardíacos congênitos.
Ela o conhecera havia pouco mais de três anos, quando tropeçara na raiz de uma árvore na grama do Clube do Castelo e ele a amparara, impedindo-a de cair. Seus olhos se encontraram e os dois imediatamente souberam que eram almas gêmeas, finalmente se conheciam. Helena estava, então, completando 40 anos de idade e jamais poderia imaginar que, pouco tempo depois, estaria grávida e ele, seriamente doente. Casaram-se apenas 3 meses após de se terem conhecido e logo após a morte da mãe dela, Augustine.
No seu leito de morte, Augustine Zom-Krauss Smith revelara à sua única filha o segredo do Corredor do Tempo que havia na rampa ladeada por pinheiros que descia, da portaria do Clube do Castelo à praia da represa de Guarabitinga. Helena pensara que sua mãe estava delirando. Até o dia em que uma amiga mandara entregar a ela, no isolamento do hospital, um livro chamado “Um Castelo Além do Tempo”* em que a autora descrevia a viagem feita pela personagem principal de 2019 a 1910, sendo transportada ao passado por uma névoa, exatamente no Corredor das Árvores do Castelo, onde Augustine jurara estar a passagem para outros Tempos.
O livro acabara de ser lançado virtualmente, lançamento feito e transmitido ao vivo via YouTube e Facebook, da entrada de um outro Castelo, réplica do Clube, mas distante mais de 200 quilômetros de São Paulo. Nesse outro Castelo, pelo que Helena pudera deduzir ao ver o vídeo da live do evento, funcionava um centro de estudos e pesquisa de assuntos esotéricos, chamado Fundação George Mayer.**
Se não fossem a gravidez e a pandemia, Helena teria ido procurar a autora do romance, esse que falava em viagens no tempo, pessoalmente. Mas agora o máximo que podia fazer era tentar contata-la pelo celular, nas mídias sociais. Acabara encontrando-a, com um nome um pouco diferente, no Facebook. Pedira a sua amizade, alguns dias antes e até agora... nada!
Era muito estranho para Helena imaginar que uma desconhecida tivera acesso a uma lenda que ela, até então, acreditara correr apenas em sua própria família. Mandara para a autora a seguinte mensagem: “Li o seu livro e, coincidentemente, essa história de viagens no Tempo pelo Corredor das Árvores do Castelo, me foi narrada por minha mãe, em seu leito de morte, como um segredo apenas pertencente a nossa própria família.”
Naquele momento, o alerta do seu celular, mostrou-lhe que entrara algo no Messenger. Era a resposta de Isabel, a autora do livro: “Esse segredo é também da nossa família. Pelo seu nome, deduzo que você é uma antepassada de Helen Zom.”
“Sim – respondeu Helena – como a senhora sabe disso?”
“Helen Zom – foi a resposta – era irmã gêmea de Augusta Waltman. As irmãs foram separadas ainda bebês e Augusta criada sem saber da existência da outra, até se encontrarem aos 66 anos de idade. Augusta era a esposa do homem que construiu o Castelo e morava nele, antes dele se tornar clube. Ela era trisavó do marido da minha filha, Susana. Você ainda não leu meu livro inteiro, não é? Essa história está no capítulo 44, pag. 225.”
“Estou quase lá – mentiu Helena, que mal passara do capítulo 4 – mas essas viagens no Tempo são apenas lendas familiares, não?”
“Talvez – disse Isabel – Termine o livro e tire suas próprias conclusões”
“Farei isso – respondeu Helena – Muito grata por sua gentileza em me contatar”
“Foi um prazer conhecer uma descendente de Helen Zom” – respondeu Isabel, dando o assunto por encerrado.
Helena terminou de ler o livro exatamente no instante em que sua bolsa arrebentou e iniciou-se o trabalho de parto de sua filha, que se chamaria Carmen Vitória: Carmen, como a personagem da ópera predileta de seu marido e Vitória, por ter sido concebida naturalmente quando Helena há muito passara da idade de se tornar primigesta.
Era uma história muito intrigante, essa do livro, talvez fruto da grande imaginação da escritora, talvez baseado na realidade. Os nomes dos personagens eram todos reais. Susana**, a filha da autora, era casada com o trineto da irmã gêmea da própria trisavó de Helena, teria viajado no Tempo exatamente como Augustine dissera a ela que ocorreria, se ela assim o desejasse e se estivesse no Corredor das Árvores do Castelo.
Helena trabalhava no mesmo prédio, na Rua Joaquim Eugênio de Lima, travessa da Av. Paulista, que Susana. Mas noutro escritório de advocacia. Conhecia-a de vista, ela era uma advogada um pouco mais nova do que a própria Helena, atuando na mesma área, a cível. Talvez criasse coragem e a contatasse, como contatara à mãe dela, a autora. Talvez. Mas teria que pensar mais. Agora seus pensamentos estavam centrados em sua bebê e em seu marido doente. Depois.
* “Um Castelo Além do Tempo – livro publicado pelo Soul Editora ** George Meyer e Susana – personagens principais do livro citado.
Capítulo 2 – Tempo de Dúvidas
-- Minha trisavó era uma bruxa. Ela veio para o Brasil, já viúva, com a família, primos e sua filha Maria Júlia em, 1914. Essa Maria Julia foi mãe solteira, um escândalo no seu tempo, e teve uma única filha, Monique, que vem a ser a mãe da minha mãe, Augustine. Todas tiveram uma única filha. Há mais de cem anos as mulheres da minha família dão à luz a uma menina, como eu, agora. E, muito provavelmente, na minha idade, esta terá sido, de fato, a minha única gestação. Por que será isso? Destino? Uma simples coincidência? Ou uma determinação genética? O que o senhor, como médico, diria? Todas essas mulheres passaram às suas filhas a história da Helen Zom, que era uma bruxa respeitada em Santo Amaro, onde vivia. Naquele tempo Santo Amaro era um município e considerado mesmo longe de São Paulo. Ainda assim, vinham pessoas de todo o estado, principalmente políticos, se consultar com essa minha antepassada. Dizem que ela possuía o dom da visão. E havia uma mulher muito rica que a ajudava, enviando regularmente para a casa dela, mantimentos, utensílios domésticos, roupas de cama e mesa, essas coisas. É voz corrente na família que ela poderia ter ganho muito dinheiro com suas previsões do futuro. Mas ela nunca aceitou nenhum centavo pelas consultas que dava. Dizia que aquele dom viera a ela como uma benção e não como algo para ser comercializado, transformado em dinheiro, em bens materiais. Mesmo assim, muita gente, agradecida pelas revelações dela, enviava-lhe presentes, até mesmo algumas joias, que ainda estão na família, estão comigo, porque só eu sobrei. Os primos que vieram com ela para o Brasil tiveram poucos filhos ou nenhum. Muitos eram estéreis e a família simplesmente acabou. Agora somos eu, a minha filha recém-nascida e o meu marido, isolado numa UTI por essa pandemia maluca e talvez só fiquemos mesmo, agora, ela e eu.
O médico, sem levantar os olhos da planilha onde preparava a papelada para a alta, perguntou: -- Você tem bens? Tem como viver? Ou tem uma profissão?
-- Não se preocupe, doutor. Eu sou uma advogada cível bem sucedida, trabalho num escritório grande, próximo à Avenida Paulista e estou em licença maternidade. Tenho como sustentar minha filha, ainda que meu marido se vá. Só não tenho com quem deixa-la, não existem agora, nessa pandemia, as escolinhas para crianças pequeninas, não sei como poderei trabalhar.
-- A justiça tem funcionado em teleconferência, você não sabe disso?
-- Sim, eu sei, mas não vai durar para sempre.
Eram 4 da manhã e o plantonista que passara para dar-lhe alta parecia cansado demais, olheiras por cima da máscara e por baixo da proteção frontal. Todo paramentado, mas o pesado EPI não escondia-lhe o cansaço.
-- Muito obrigada por me escutar, doutor. – disse Helena -- Eu estava mesmo precisando conversar com alguém. Desde que me internei aqui só converso virtualmente.
Ele deu um sorriso cansado. -- Eu também – desabafou. – Com os meus colegas, é só trabalho e correria. Quanto à questão das filhas únicas, não existe nenhuma evidência científica sobre um caso como o de sua família. Eu não saberia responder a essa sua pergunta. Mas não há motivos para preocupação. Pode ser, inclusive, que essa sua bebezinha, depois de crescida, case-se e tenha muitos filhos. Você terá netos e bisnetos e esquecerá esse fantasma de destino, fatalidade ou mesmo genética. Pronto. – completou ele, estendendo-lhe a papelada – Você já pode ir para casa. Mas muito cuidado. Siga todas as orientações que recebeu da enfermagem, principalmente na hora de amamentar, sempre use máscara e mantenham-se, as duas, em isolamento, ok?
-- Ok, doutor –Muito obrigada por tudo.
Helena não sabia, mas aquele plantonista, Dr. Artur, era um dos diretores do hospital. Na pandemia, todos os médicos eram necessários na frente de combate e mesmo ele, um Ph.D., especialista em Reprodução Humana, dava plantões, como se residente fosse.
Amanhecia quando o motorista de aplicativo ajudou-a a desembarcar do carro, com aquela parafernália toda que veio da maternidade e mais a bebezinha, toda embrulhadinha e protegida. Em que mundo estranho sua filha nascera? Todas as pessoas distanciadas e usando máscaras, as ruas muito mais vazias, o medo nos olhares, a incerteza quanto ao futuro, a crise mundial, crise na saúde e crise na economia. Como seria a infância dessa menina? Como seriam as suas relações, caso se mantivessem por anos todas essas medidas de precaução, caso não se conseguisse uma vacina eficaz? Uma infância sem brincadeiras? Sem abraços e beijos? Sem brigas na escola? Sem escola?
Uma dor, uma fina agulhada, atingiu-lhe o peito, ante ao pensamento que sua filha cresceria num mundo privado da simples alegria de conviver, privado do toque, privado dos abraços, com os sorrisos escondidos por trás das máscaras e – a mais triste, para ela, das perspectivas – também sem um pai... Sem um pai, como acontecera com todas as mulheres, filhas únicas, da família, cujos pais faleceram muito cedo ou, no caso de Maria Julia, o pai nem sequer conhecera a filha. Estaria acontecendo com ela agora? Seu marido na UTI, vítima da COVID_19, lutando pela vida, venceria?
Esse é um tempo de muitas dúvidas. Helena lembra-se de sua infância, aprendendo a nadar na enorme piscina do Clube do Castelo, brincando no gramado imenso, todo verde, rolando com outras crianças. Crescer era ter contato, era tocar, interagir, brincar, acarinhar... Toda a sua infância e juventude passadas no Castelo, tantas histórias, namoros, amizades, esportes, competições esportivas, festas, eventos... Agora até os clubes paulistanos estavam proibidos de funcionar, por causa da pandemia. O que significava, afinal, tudo aquilo? Por que o mundo estava passando por isso? Seria a resposta do planeta a tantos desmandos da humanidade? A tanto descaso para com a vida, com a terra, com a Mãe Natureza? Talvez não. Vírus eram coisas naturais na história do ser humano. Há 100 anos, a gripe espanhola também ceivara milhões de vidas... e passara. E esse vírus de agora? Passaria?
Naqueles primeiros dias de convivência com sua filha, mal tivera tempo para si mesma. Depois, tudo foi se ajeitando. Carmen Vitória era um bebê tranquilo. Mamava nas horas certas. Dormia metade do dia e quase toda a noite. Estimulada, brincando, já sorria. Era encantadora! Helena estaria muito feliz, se não fosse pela doença do marido. Nenhuma notícia. O isolamento era completo. E, se ele morresse, ela nem teria a oportunidade de despedir-se dele, sequer poderia vê-lo. Era difícil demais. No entanto, mulher prática que era, Helena foi se preparando para o pior. E foi o pior que veio, afinal, num telefonema da Saúde. Foi depois dessa notícia que seu leite secou.
A família dele possuía um jazigo num dos cemitérios mais tradicionais de São Paulo. Mas até o enterro foi à distância e com o caixão fechado. Carmen Vitória conheceu seus avós paternos, porém de longe. O contato mais próximo era sempre o virtual. Para a menina recém-nascida – julgava Helena – esse seria o modo normal de relacionar-se com os outros. De longe e pelas telas. Era uma perspectiva cruel demais.
O ser humano é um animal gregário. Como conseguir viver mantendo distância dos seus pares?
Capítulo 3 – Tempo de Esperança
Carmen Vitória estava completando seis meses de idade quando, pela primeira vez, Helena pôde leva-la ao Castelo. Desejava que sua filha crescesse ali também, como ela própria crescera, naquele lugar mágico e encantador.
Todas as pessoas ainda usavam máscaras pois, apesar da já existência de uma vacina, ainda se estava longe de poder vacinar a todos. Os clubes e parques de São Paulo estavam afinal abertos, mas com muitas restrições. Restrições e precauções já tinham virado rotina na vida de todos.
Maria Helena descia pelo Corredor das Árvores em direção à praia, empurrando o lindo carrinho onde estava Vitória, quando uma densa névoa as atingiu. Então, quando se dissipou, revelou uma paisagem totalmente diferente daquela, do ano de 2021.
Aconteceu – pensou Helena – viajamos no Tempo. Mas para qual ano?
Entre os grandes pinheiros que ladeavam a rampa de pedras do Corredor das Árvores, inúmeros arbustos de azaleias de todas as cores, floridas. Uma coisa é certa – pensou Helena – estamos em julho, as azaleias florescem em julho. Mas em que ano? Ela nunca soubera que, entre as árvores do corredor, houvesse azaleias...Epa! Mas, no passado, as árvores eram eucaliptos. Aqui eram enormes pinheiros, não pequenos pinheiros como em 2021...Não. Não fazia sentido. Olhou para as margens da represa. Onde estavam os prédios, aquela montanha de prédios ladeando a barragem? E, para o outro lado, onde estavam os bairros com suas casas e ruas simétricas e automóveis estacionados? Tudo era verde. Pouquíssimas edificações, aqui e ali, pelas margens. No Corredor, amarradas aos troncos dos pinheiros, muitas, muitas orquídeas... E o perfume de tantas flores se confundia naquele ar frio e puro. Ar puro? Sim, o ar que respirava era leve... Afinal em que momento do tempo estariam elas? Pelo entorno da represa do Guarabitinga, parecia o passado. Pelos pinheiros do Corredor da Árvores, parecia o futuro.
Foi então que um senhor de cabelos brancos e porte forte, aproximou-se dela: -- Oh... Que criança mais linda! Como a mãe. Vieram visitar o velho Castelo?
-- Sim – respondeu Helena improvisando – Eu estava justamente imaginando o quão velho ele seria...
O homem riu: -- A represa do Guarabitinga foi construída em 1908. O Castelo, em 1909. Foi uma das primeiras edificações às margens da represa. Faça as contas: ele tem 199 anos.
Helena sentiu o tremendo choque dessa revelação. Ela imaginara que o Corredor das Árvores a levaria sempre ao passado. Mas estava no futuro! Estava em 2108! 87 anos à frente do seu tempo.
-- O senhor sabe, meu avô costuma contar – continuou ela, improvisando ainda mais – que as margens da Guarabitinga eram coalhadas de prédios e de bairros, com casas populares e velhas mansões...
-- Ah... sim, é verdade – respondeu ele – Mas isso foi antes da Regeneração. Eu me lembro, a paisagem no entorno era horrível... poluída, muito feia mesmo. Tão diferente da beleza natural que se pode ver hoje. Eu era apenas um menino, mas eu me lembro bem de tudo isso...
-- Desculpe-me, mas estamos em 2108... Como o senhor pode se lembrar de uma paisagem tão antiga?
-- Moça, eu tenho 102 anos. Nasci em 2006. Quando a grande pandemia começou, no final 2019, eu já era um mocinho. Tinha 13 anos. É claro que, naquele tempo, acreditávamos que logo descobririam uma vacina e nos livraríamos daquele pesadelo que mexeu com a vida em todo o planeta... Além disso, nós, os jovens de então, acreditávamos que seríamos quase imunes, que nada nos aconteceria.
--Mas não foi assim, não é? – continuou improvisando Helena.
-- Ah... não... Você, moça, é jovem... Nem imagina a tragédia que vivemos. Na década que se seguiu, a despeito das vacinas, vimos o vírus reincidir, em formas mutantes, e as vacinas não conseguiam acompanhar a velocidade dessas mutações. Milhões e milhões morreram.
Helena, diante da incrível mudança da paisagem do entorno do Castelo, já deduzira que houvera alguma drástica redução da população mundial. Nada poderia explicar a ausência dos muitos edifícios às margens da represa.
-- O senhor teve perdas na sua família nessa época?
-- Todos morreram, moça. Eu, como muitos, fiquei só no mundo. E, pior, foi um grande tombo na nossa jovem arrogância descobrir que, se não tínhamos sintomas porque éramos jovens, tínhamos o mais cruel dos efeitos da COVID_19: a esterilidade. Foi assim que a população do mundo acabou se reduzindo drasticamente, mas isso você sabe, não?
-- Sim – disse ela improvisando mais ainda – Mas nunca consegui entender como as cidades e os bairros mudaram...
-- Moça, seja sincera... Você é uma viajante do Tempo, não é? Suas roupas, o carrinho do seu bebê... Eu sei que esse Corredor das Árvores é às vezes um Portal do Tempo. Quando esse Castelo era um clube, muitas pessoas disseram que havia uma sócia que, às vezes, parecia desaparecer, se esvair no ar e logo, uma fração de segundo depois, voltava a aparecer. Mais tarde, lançaram um romance sobre isso, as viagens dela no tempo, e muitos curiosos vinham aqui tentando viajar também. Mas, que eu saiba, ninguém jamais conseguiu. Mas eu vi você chegando. Você veio numa nuvem. Não havia ninguém aqui e, de repente, baixou uma névoa e cá estava você, com sua linda criança.
-- Sim, o senhor está certo. Mas eu pensava que iria para o passado. Jamais imaginei que viria ao futuro.
-- Em que ano você vive?
-- Vivo em 2021... – e riu – ou será que devo dizer “vivia”?
-- Você conhece a história desse Portal do Tempo?
-- Sim, minha mãe me contou ao morrer. Disse que era um segredo de família, mas aí eu li esse livro, esse mesmo que o senhor citou, e fiquei sabendo não só que outra família compartilhava desse segredo, como também havia um vínculo entre mim e a moça que viajara no tempo. O marido dela e eu temos trisavós em comum. Gêmeas que foram criadas separadas.
-- No livro, Helen Zom e Augusta Waltman. Pois é – disse ele – se você conhece a história sabe que tanto você, sua filha quanto eu estamos no que George e Carmen chamavam de “bolha no Tempo”. Certamente, em algum momento, voltaremos exatamente para onde estávamos, você em 2021 e eu em 2108. Se tivermos sorte, lembraremos dessa experiência. Se não, a lembrança será como se tivesse sido um sonho...
-- Como aconteceu com Evelyn, no livro, antes das lembranças voltarem a ela, pensara que fôra apenas um sonho.
-- Isso mesmo.
-- É estranho imaginar que o Castelo ainda está aqui, 87 anos depois e tantas casas e edifícios que havia em torno da Guarabitinga tenham desaparecido. Como foi que isso aconteceu?
-- Durante três décadas a COVID_19 matou mais de 4 bilhões de pessoas no mundo e, das 3 bilhões que sobraram, a maioria estava estéril, como eu. Principalmente quem era jovem ou criança quando o primeiro Novo Corona Vírus começou a circular. Casas e edifícios, por todo o mundo, foram se tornando inúteis. Não havia quem os habitasse. Lentamente foram sendo demolidos ou viraram ruínas. Indústrias foram abandonadas, o consumo despencou e só as universidades conseguiram manter-se e manter funcionando a rede mundial de computadores. Até hoje ainda usamos máquinas e celulares que foram fabricados antes do mundo começar a ruir. Edifícios que tinham algum valor histórico foram preservados e as pessoas começaram a morar neles e abandonar todo o resto. Começaram também a destruir casas, prédios, fábricas, tudo o que não tinha mais serventia e sobre as montanhas de escombros a vegetação foi se refazendo e crescendo e o tempo se encarregou de mudar completamente a face do planeta. Todas as moedas perderam o valor e as pessoas começaram simplesmente a suprir umas as necessidades das outras, por trocas ou por simples solidariedade. Ninguém tinha o que fazer com tantas casas, com tantos veículos, automóveis, tratores, helicópteros, aviões. Em todos os países tudo foi sendo empilhado em “cemitérios” de máquinas e veículos. As cidades se reinventaram. Toda a população sobrevivente foi primorosamente educada, muitos passaram a vida inteira estudando, para preservar o conhecimento que a humanidade atingira até o século XXI. Formaram-se comissões no lugar dos governos. Comissões para tudo. Para toda e qualquer decisão. Por fim, a solidariedade se sobrepôs à barbárie e ao individualismo. Para nos locomover nas cidades usamos veículos à vela, como antigos carros, mas movidos pela força do vento. Quando não há vento, andamos em bicicletas ou a cavalo ou em carruagens. Ainda temos alguns aviões e helicópteros, todos movidos por combustíveis de origem vegetal. Deixamos de matar animais, por esporte ou para nos alimentarmos. O mundo se tornou vegetariano. O ar agora é puro. Os oceanos pararam de invadir as cidades litorâneas. Os animais moram nas florestas e não trazem mais seus perigosos vírus para os humanos. Compreendemos que epidemias e pandemias estavam vindo a nós como consequência da devastação da Terra. Não como se o planeta deliberadamente se vingasse da humanidade, com pensaram alguns místicos. Mas apenas por um lei da própria natureza. Os animais, expulsos de seus habitat naturais pela destruição destes, acabavam mais próximos dos humanos e a eles transmitiam seus vírus que, até então, ficavam escondidos nas florestas. O que você está vendo no entorno da Guarabitinga é uma pequena amostra do que foi ocorrendo por todo o mundo.
-- O senhor está me dizendo que a pandemia do COVID_19 durou três décadas? – perguntou Helena, assustada.
-- Sim. E suas consequências ainda mais tempo.
-- E quem é o senhor? O Castelo, agora com essa vegetação tão linda, tantas flores, o que é hoje?
-- Eu sou o Guardião desse centro comunitário. Há uma comunidade no entorno, nessa região. Existem escolas, universidades, bibliotecas e centros agrícolas. O único meio de comunicação é a World Wide Web e, por ela, todos os habitantes do planeta trocam informações. Mas a sobrevivência básica vem de pequenos núcleos como o nosso. Gostaria de ver mais de perto?
-- Sim, é claro – respondeu Helena.
Então foram subindo pelo Corredor das Árvores e viraram à esquerda no fundo do Castelo para irem até o que, antigamente, era o salão de festas do clube. Helena viu, estarrecida, que havia uma pequena lagoa com uma fonte, onde antes era a piscina e as duas únicas edificações eram o conjunto de salões interligados e o próprio Castelo. Onde antes estavam as quadras de tênis e as poliesportivas, hortas enormes e muitas, muitas árvores frutíferas. No salão, uma grande espécie de feira, onde havia desde pés de alface até aparelhos celulares, era o centro de abastecimento da pequena comunidade. Havia telas e terminais de computadores por toda a parte, mas ainda estavam ali também estantes e mais estantes cheias de livros de papel. Na sala de vidro uma linda música parecia brotar das paredes e Helena reconheceu, estarrecida, uma versão instrumental de “Let it Be” dos Beatles...
A cozinha do Castelo funcionava no mesmo lugar, com entrada pela adega, que fôra um pub em no tempo de Helena, e pela escada que descia do salão maior. Era uma grande cozinha subterrânea onde algumas famílias preparavam refeições e grandes bolos confeitados.
No Castelo moravam o guardião e uma família composta por um casal de mulheres homossexuais e cinco crianças concebidas por reprodução assistida, conforme lhe foi explicado.
-- Uma coisa maravilhosa, depois da pandemia, -- explicara o Guardião -- foram os bancos de óvulos e de espermatozoides, além dos próprios embriões congelados, que existiam em clínicas de todo o mundo. Com mais de 99% da população jovem estéril, esses bancos salvaram a humanidade. A maioria absoluta das grávidas, durante décadas, era apenas a hospedeira de embriões cujos pais eram desconhecidos. Por isso foi se perdendo a noção de hereditariedade, da família fechada, da posse dos filhos e até mesmo das heranças materiais. Hoje, tudo é de todos. E nada é de ninguém.
-- Ah – suspirou Helena – Acho que eu preferiria ficar por aqui, nesse tempo, em vez de voltar para o meu 2021...
-- Parece que isso não é possível – respondeu o Guardião – Se é verdade que essas viagens no Tempo criam as tais “bolhas” que nunca existem no Tempo Linear, um dia essa “bolha” estoura. Mas, por ora, você e sua filha são benvindas aqui, conosco. Vocês podem ocupar o quarto de hóspedes, que fica antes da escada da torre.
-- Bom – respondeu Helena – se eu vou ficar aqui por dias ou horas ou meses, o que quer que seja, gostaria de contribuir. Vi que todos têm aqui alguma tarefa. Também quero fazer alguma coisa.
-- Qual é a sua profissão em 2021? – perguntou o Guardião.
-- Sou advogada.
-- Que tal então trabalhar na Resolução de Conflitos? Temos conselheiros que ouvem as partes que estão em litígio e procuram a melhor forma de conciliar os interesses dessas partes.
-- Mas... – titubeou ela – Mas... as leis de vocês devem ser bem diferentes das de 2021.
-- Não temos leis – foi a surpreendente resposta do Guardião.
-- Como assim? – fez ela, já rindo.
-- Usamos nosso bom senso. Para isso servem os Guardiões e os Gabinetes de Resolução de Conflitos. A regra principal é: que não se prejudique os interesses comuns, os interesses de todos...
-- Nunca imaginei um sociedade sem leis, mesmo que fosse dirigida por Anarquistas – exclamou Helena e, por consequência lógica, perguntou: -- E religião? Vocês também não têm religião?
-- Temos sim – respondeu o Guardião – Temos todas as que já existiam no tempo em que você vive. No Brasil, há gente de todas as raças e credos. Embora com a população drasticamente reduzida – hoje somos apenas 24 milhões de pessoas em todo o território brasileiro – explicou – ainda temos representantes de todas as religiões, sim.
-- Mas, então, vocês têm leis. Todas as religiões têm suas leis.
-- No entanto, o Estado é laico, e sem leis. A única lei – se é que posso chama-la de lei – é a manutenção do bem estar de todos. Gostaria de conhecer um Gabinete de Resolução de Conflitos?
-- Ah... Gostaria, sim.
-- Então deixe a sua pequena no nosso Abrigo de Atividades Infantis e eu a levarei até lá. É aqui, na casa quase vizinha ao Castelo, uma das poucas que restou do que, no seu tempo, era o Condomínio Castelo, aquele bairro do entorno.
-- Sim – respondeu Helena – Em torno do Castelo havia dezenas de casas, casas grandes, espaçosas e apenas um pequeno terreno livre, ainda com árvores, onde funcionava o estacionamento dos sócios.
-- Agora são somente três grandes casas. Numa delas funciona o Abrigo das Crianças e, na outra, a escola dos jovens. Na terceira, o Gabinete de Resolução dos Conflitos e a Biblioteca Principal da Comunidade. Todos, agora, estudam até a idade adulta, todas as escolas são como as antigas Universidades e formam os mais diversos tipos de profissionais. De paisagistas ecológicos a médicos e engenheiros, por exemplo.
O Abrigo das Crianças era o lugar mais cheio de flores que Helena já vira. Mais ainda do que a cidade de Holambra. Havia apenas 8 bebês, de 0 a 5 anos na ala dos pequeninos e um casal cuidava deles e os entretia, com mobiles, telas e brinquedos tácteis. Receberam muito bem a Carmen Vitória. Helena desejou que houvesse, em 2021, um local como aquele, para deixar sua filha enquanto estava no escritório. A menina, em 2021, estava matriculada numa ótima escolinha, pertinho da firma de advocacia onde Helena trabalhava, porém ainda fechada pela pandemia e Helena, trabalhando em Home Office, ansiava pelo dia em que pudesse voltar ao trabalho presencial e deixar Vitória na escolinha... mas aquilo ali... aquilo era um sonho!
Caminharam de volta à casa quase vizinha ao Castelo. Helena se lembrava bem daquela casa. Fôra construída nos anos 1970 e por duas décadas fôra a única casa no caminho que saía da Avenida da Praia para o Castelo. Pertencia a um senhor a quem todos chamavam de Indiana Jones da Guarabitinga, já que ele explorara cada centímetro das margens da represa.
Nessa casa, no segundo andar, numa sala envidraçada com vista para a represa, funcionava o Gabinete de Resolução de Conflitos.
Um homem estava sentado diante de uma tela de computador (onde estaria o computador? – pensou Helena) de frente para a janela e, portanto, de costas, para ela. O Guardião falou:
-- Olá. Desculpe interromper. Temos uma nova voluntária.
O homem se voltou, sorrindo, para eles, girando a cadeira onde estava sentado e levantou-se. Helena não pôde evitar o grito.
-- Sou tão assustador assim? – brincou ele.
Helena titubeou... -- Desculpe, é que o senhor é muito parecido com o meu falecido marido.
O jovem era a cara de Jorge, o marido que ela perdera para a COVID_19. O Guardião, percebendo que ela estava realmente chocada, puxou uma cadeira e fez com que ela se sentasse. Ela não tinha coragem de levantar os olhos e fitar novamente o homem. Era Jorge redivivo! Lágrimas escorreram-lhe pela face. Ele se aproximou e tocou-lhe de leve no ombro:
-- Moça, lamento se lhe causei alguma perturbação. Peço desculpas.
Finalmente ela conseguiu levantar os olhos para ele: -- Eu é que peço desculpas. O senhor nada fez. Eu é que me descontrolei. Lamento.
-- Dispense o “senhor”, pode me chamar de você, sou Douglas Santa Bello, um dos membros desse Gabinete.
-- Muito prazer – disse ela, tentando recompor-se e estendendo a mão a ele
– Sou Maria Helena Zom-Krauss Smith Bello, todos me chamam apenas de Helena.
-- Temos o último sobrenome em comum – disse ele sorrindo – Seríamos primos distantes?
-- Helena veio do passado – apressou-se em explicar o Guardião – mais precisamente do ano de 2021, o ano em que o mundo começou a mudar.
-- Pelo Corredor das Árvores do Castelo? – fez ele, não sem surpresa.
-- No meu tempo isso era um segredo – disse Helena, tentando rir.
-- Até agora – respondeu Douglas – eu julgava que fosse uma lenda. E acrescentou: Bello é seu nome de casada, o nome de seu marido?
-- Sim. Ele se chamava Jorge dos Santos Bello.
Douglas foi até a tela onde estivera sentado e disse: -- Procurar genealogia de Jorge Santos Bello – a partir do ano de 2020. Lá estava – Carmen Vitória, a primeira descendente e seguiam-se datas e nomes até chegar ao próprio Douglas que, nascido em 2078, neto de um dos primos-irmãos, por parte de pai, de Vitória, vindo a ser, portanto, sobrinho-bisneto da filha de Helena.
Helena teve que rir: -- Isso é muito maluco – disse a ele – Você, um homem de 30 anos, é sobrinho-bisneto da minha filha, a bebê que nesse momento está sendo cuidada no Abrigo das Crianças ali no outro quarteirão...
Douglas voltou-se para o Guardião: -- Mestre, isso é mesmo verdade ou alguma espécie de brincadeira que vocês estão fazendo comigo?
-- É verdade, Douglas. Eu estava lá no Corredor e vi uma névoa estranha baixar e se dissipar em seguida – exatamente como diziam as velhas histórias – e lá estavam Helena e sua filha, como uma aparição.
Naquele resto de tarde, Douglas explicou a ela todo o funcionamento e a dinâmica do Gabinete de Resolução de Conflitos. Em seguida foram os dois para o Castelo apreciar o pôr do sol sobre a represa. -- Nem pensar em passar pelo meio do Corredor das Árvores – disse ele. – Você poderia ir embora, deixando aqui sua filha, ops, minha tia bisavó, quero dizer. Nesse caso, eu desaparecia, por jamais ter chegado a nascer!
E riram os dois, subitamente felizes por estarem juntos.
Tal como acontecera com George, Carmen, Leo e Susana, no livro que Helena lera, ela também agora começava a achar possível apaixonar-se por Douglas e, também como os personagens do livro, estava sentindo que isso seria uma traição a Jorge.
Não teve tempo de amadurecer esses pensamentos porque assim que avistaram, do portão do Castelo, a enorme extensão de grama que descia ao lado do Corredor até a praia, Helena gritou, lembrando-se outra vez do livro:
-- Meu Deus, o Cosmo de Vagalumes! Eles voltaram!
Ela lembrava-se bem da tristeza que sentia, depois de ler a descrição dos Cosmo de Vagalumes no livro, que, em seu próprio tempo, não existissem mais os vagalumes, nos fins de tarde do Castelo, cobrindo a grama com suas luzes piscantes, como se estrelas fossem.
Douglas olhou para ela espantado: -- Como voltaram? Algum dia não estiveram aqui?
-- Passei toda a minha vida no Castelo que, no meu tempo, era um clube. Nunca vi um vagalume sequer sobre a grama ou em qualquer lugar. Soube da existência deles por um livro, cuja ação se passa no começo do século XX.
-- Sim – disse ele – Eu também li “Um Castelo Além do Tempo”, mas não me lembro de a personagem principal se referir a ausência dos vagalumes em seu próprio tempo, 2019, não é?
-- O livro é mais que um simples romance. É a história do que a Susana verdadeira, a personagem a qual você se refere, viveu mesmo no Castelo.
-- Aqueles personagens são reais, então?
-- Sim, eu conheço a Susana, de vista. Ela é advogada como eu e trabalhamos em escritórios diferentes, mas no mesmo edifício.
-- Acho que eu quero ler novamente aquele livro... – disse Douglas, pensativo.
-- Eu também – respondeu Helena.
-- Vamos fazer isso agora nos terminais de leitura do Castelo?
-- Preciso ir buscar Vitória no Abrigo Infantil. Funciona até as 19h00, me avisaram.
-- Eu vou com você – disse ele. – O jantar é colocado no Buffet da Sala de Vidros a partir das 19h00 e há mesas coletivas enormes não só ali como na Sala da Lareira. Vamos jantar todos juntos. Você, eu e sua filhinha. Amanhã de manhã, antes de começarmos o trabalho no Gabinete, podemos ler o livro. Café da manhã das 6 às 8. Consegue acordar às 6?
-- Se eu tiver um despertador...
-- Na parede do seu quarto há uma tela. Diga a ela, em voz alta, tudo o que precisar, despertador, toalhas, sabonetes, aparelhos para higiene bucal. Tudo ela pode prover a você, ok?
-- Obrigada. Em duas horas conseguiremos reler o livro, não?
-- Sim. – respondeu ele – E saberemos melhor o que estamos vivendo agora. Venha, vamos pegar Vitória e voltar para o jantar.
Capítulo 4 – Tempo de Vários Tempos
Quando, na manhã seguinte, Helena e Vitória desceram para o café, Helena notou que todos cumprimentavam o guardião e o chamavam de mestre. Ela já estava ali havia quase 24 horas e ainda não soubera o nome dele... Aproximou-se. -- Bom dia, Mestre!
-- Bom dia, Viajante e sua linda menina! – respondeu ele, com um sorriso iluminado.
-- Permita-me – disse Helena – uma pergunta.
-- Pois não – respondeu ele.
-- Todos o chamam de Mestre ou de Guardião..., mas qual é o seu nome?
Ele riu. -- Eu mesmo às vezes me esqueço! Chamo-me Orlando De Novio.
-- Sua família é de imigrantes italianos?
-- Sim. Meu tetravô fez a vida no Brasil, como imigrante. Chegou aqui com 14 anos de idade, trabalhou muito, se instalou no bairro do Bixiga. Seu filho, meu bisavô, foi longevo num tempo em que se morria entre 70 e 90 anos de idade. Chamava-se Orlando, como eu. Lutou, como pracinha, na II Guerra Mundial, em 1944 e 1945.
-- Nossa! O senhor realmente conhece a sua própria história.
-- Sim, meu bisavô escreveu um livro, sua autobiografia. Eu o li, várias vezes, aliás. Por isso sei que ele se casou com minha avó, Cristina, e tiveram uma filha única. A menina foi a minha avó, Márcia Cristina . Sou filho do filho dela, também Orlando.
Foram interrompidos por Douglas, que chegava.
-- Bom dia, meninas! – cumprimentou ele jovialmente – Vamos nos servir?
Depois do café, deixaram Vitória na
escolinha e foram à biblioteca. Em dois terminais, colocaram o texto do
livro “Um Castelo Além do Tempo” e começaram a leitura. Helena tinha lido o livro antes de ter alta da maternidade, em tempo de vida real, pouco mais de alguns meses antes. Douglas o tinha lido ainda jovem e surpreendeu-se por ter esquecido algumas partes importantes.
Então, terminada a leitura, quando ambos saíam do Castelo em direção ao Gabinete, Douglas disse: -- Eu não me lembrava direito dessa coisa das “bolhas” do tempo. Se você e sua filha chegaram aqui pelo Portal do Corredor da Árvores, então estamos vivendo numa bolha, eu inclusive. Ou seja, quando você se for, tudo isso, para mim, será pouco mais que um sonho, se é que conseguirei recordar-me...
-- E isso o incomoda? – perguntou Helena.
-- Muito – respondeu ele – Incomoda muito. Agora que a conheci, a perspectiva de não mais conviver com você, de não mais andar pelo cosmos de vagalumes com você, de não mais tomar café da manhã com você e sua linda filhinha... Isso muito me entristece. Sinto como se você sempre tivesse sido parte da minha vida.
-- Se existe mesmo uma memória genética – riu ela – eu existo dentro de você, afinal sou sua trisavó!
-- E será pecado fazer amor com a própria trisavó? – perguntou ele, olhando-a bem dentro dos olhos.
-- Talvez não. Mas a sua trisavó não está disposta a trair o seu trisavô.
-- Não seria uma traição! Você me disse que ele morreu na pandemia! Você não o estaria traindo.
-- Estaria sim. Minha alma ainda está de luto por ele. Eu o amava demais e por isso me assustei com a semelhança física de vocês quando nos conhecemos. Veja bem, no livro que acabamos de ler, George se apaixona por Susana, que veio a ele do futuro. Mas depois encontra Carmen, a bisavó de Susana, que é fisicamente igualzinha a ela. E Susana, de volta ao seu presente, encontra Leo, igualzinho a George, o bisavô dele. Você também encontrará uma pessoa do seu próprio tempo e talvez igualzinha a mim... quem sabe? Mas eu não posso te amar. Não por ser sua antepassada, mas porque ainda estou amando o seu trisavô, embora ele já tenha partido.
-- Quem te garante que eu não sou ele? Que não somos a mesma pessoa em momentos diferentes na linha do Tempo?
-- Talvez sejam mesmo – respondeu Helena – e talvez não. No livro tanto George quanto Leo, tanto Susana quanto Carmen, sentem-se como pessoas diferentes, embora cogitem que possam ser as mesmas pessoas em diferentes épocas. Para mim, Jorge morreu, sou viúva e você é outro homem, fisicamente igual a ele, mas – você tem que admitir isso – com uma formação completamente diversa, com experiências nada parecidas. Você não é o meu marido.
-- O luto não dura para sempre –respondeu ele – um dia talvez você se descubra apaixonada por mim como eu já me sinto apaixonado por você.
Capítulo 5 – Mundo Mudado
Helena passou o dia todo trabalhando na Resolução de Conflitos. Estudou a “jurisprudência” que se formara naquele serviço e começou a compreender o quanto haviam mudado, nesses quase noventa anos, não apenas o costume e o way of life dos seres humanos, como também eram incrivelmente diferentes os valores e as relações entre as pessoas.
Às 19 horas atravessou a rua para ir buscar Carmem Vitória no abrigo das crianças. Mas a menina não estava lá.
Helena olhou estarrecida para a Cuidadora Janine: -- Como? O que foi que você disse? Por que minha filha não está aqui? Onde está o meu bebê?
-- Calma – respondeu a Cuidadora – A menina foi levada por uma família maravilhosa, um casal heterossexual que tem apenas um filho homem, concebido através de um embrião daqueles muitos que ainda existem congelados nas Clínicas de Reprodução. Eles ficaram encantados com a Carmen Vitória e a levaram, acreditando que você, por ser viúva, quisesse ter uma vida livre das obrigações da maternidade.
Helena entrou em pânico: -- Como assim? Vocês estão loucos? Simplesmente entregaram uma bebê que foi deixada aos seus cuidados sem ao menos perguntar se era isso que eu queria? Eu quero a minha filha de volta! – gritou ela, já avançando sobre o pescoço da moça, como se quisesse esganá-la.
Duas outras cuidadoras a seguraram sem violência, com ternura até.
-- Você não precisa se desesperar—disse Janine – Vitória está apenas a um quilômetro daqui – e apontando pela janela, para a represa, lá abaixo – Ela está naquela casa linda, cercada de jardins, deve estar jantando agora. E, se você a quer de volta, nós a levaremos até lá. Será bom para que você conheça a família que quer ficar com ela. Você sem dúvida verá que, com eles, ela terá um desenvolvimento mais harmonioso do que apenas com a mãe. Você logo perceberá que é o melhor para ela e ficará feliz por isso. Além disso, ela saberá sempre que você é a mãe biológica, com livre acesso a ela, quando bem o entender. Você não a está “perdendo”, como sua atitude parece indicar que tem esse sentimento. Você a está beneficiando. Não só a ela, como a você também, que estará mais livre para se dedicar às atividades que escolher. Você está trabalhando com o Douglas, não está?
Mais calma, Helena desabou sobre o sofá azul que ficava sob a janela.
-- Meu Deus! Vocês não compreendem que é simplesmente um terror, para uma mãe, ser separada de sua filha?
As cuidadoras olharam espantadas para ela.
-- Mas você não está sendo separada dela. Já lhe dissemos que ela sempre saberá quem é sua mãe biológica e você poderá estar com ela todas as vezes que assim o desejar.
Como explicar a elas o forte laço maternal que parecia ter desaparecido junto com as mudanças? ... Como era mesmo o que o Guardião dissera quando tentara lhe explicar o mundo de 2108? Lembrou-se: “A maioria absoluta das grávidas, durante décadas, era apenas a hospedeira de embriões cujos pais eram desconhecidos. Por isso foi se perdendo a noção de hereditariedade, da família fechada, da posse dos filhos e até mesmo das heranças materiais. Hoje, tudo é de todos. E nada é de ninguém.”
-- Bem, moças – disse Helena – eu quero a minha filha de volta para mim e é comigo que ela ficará. Lamento se o casal se decepcionará.
-- Vamos até a casa – respondeu a Cuidadora Janine, a que Helena quase agredira. Quando você vir com quem e como ela vai ficar, talvez mude de ideia.
Helena riu um riso sarcástico. Estava de fato em um outro mundo. Uma coisa, porém, lhe ocorreu. Se a sua filha era a tia-bisavó do Douglas, então elas, em algum momento, seriam levadas de volta a 2021. E o pensamento a tranquilizou. Não fossem aquelas pessoas acreditar que ela poderia aceitar ser separada da própria filha! Isso lhe parecia simplesmente desumano!
-- Vou pedir ao Guardião para levar você até a casa onde sua filha está. Ele é muito sábio e talvez possa fazê-la compreender... – começou Janine e foi interrompida pela fala quase desesperada de Helena:
-- Pode deixar que eu mesma vou pedir a ele– disse, tentando se controlar para não ter uma explosão de raiva.—E saiu pisando duro.
O Guardião estava terminando seu jantar quando foi interrompido por uma Helena nervosa e agitada.
-- Mestre, por favor, venha comigo até essa casa para onde levaram a minha filhinha...
-- O que houve? – disse ele, com ar preocupado – Quem levou a sua filha?
-- As Cuidadoras a entregaram para um casal que quer ficar com ela!! E isso sem ao menos me consultar! Venha comigo, Mestre! Vamos busca-la! Ela está naquela casa ali, adiante – apontando, pela janela, para a casa que as cuidadoras haviam mostrado a ela.
-- Sim – respondeu ele – É a casa dos Meyer. Eles moram ali, com o filhinho deles e mais três pessoas maravilhosas, que são artistas plásticos. Uma ótima escolha!
-- Mestre – disse Helena tentando se controlar – Em 2108 pode parecer uma ótima escolha. Mas em 2021 é considerada uma atitude simplesmente desumana separar assim mãe e filha. Estou desesperada, Mestre! Quero a minha filha!
-- Sim – disse ele, pensativo—Vamos até lá, então. Mas já vou avisando que, se eles não concordarem, vocês terão que ir a uma sessão de Resolução de Conflitos.
-- Como? – quase gritou Helena – Eu sou a mãe dela! Simplesmente não podem roubar a minha menina!
-- Veja bem, Helena – começou a explicar ele – Ninguém roubou a sua filha. Simplesmente nós entendemos que é melhor, para uma criança, ser criada por um casal, homo ou hetero, mas com pai e mãe. Os Meyer, certamente, só querem o melhor para a sua menina. E você também deveria querer. Não lhe explicaram que ela sempre saberá que você é a mãe biológica e que poderá estar com ela a cada vez que o desejar?
-- Ela é minha filha! – quase gritou Helena – Eu quero estar com ela o tempo todo! Eu é que quero cria-la e ama-la e educa-la. Que merda de sociedade é essa que julga poder separar a mãe de sua própria filha?
-- Não é preciso nos ofender, Helena. Vamos até lá. Se os Meyer concordarem, traremos de volta a menina.
-- Como assim... SE eles concordarem? Eu é que sou a mãe! Ela é minha filha e tem o direito de ficar comigo!
Procurando se acalmar, Helena argumentou:
-- Mestre, você sabe que eu vim de 2021. Sabe que Vitória, a minha menina, será a tia-bisavó de Douglas, sabe que esta é apenas uma bolha no tempo e que, nós duas, teremos que voltar para a nossa época... Não compreende?
-- Você acha que eles acreditarão que você veio de 2021 e que tem valores diferentes dos nossos? Eles, como casal, têm todo o direito de reivindicar para si mesmos a educação de uma criança que não tem pai, só mãe.
-- Mestre, pelo amor de Deus! Ninguém tem o direito de roubar o filho dos outros.
-- Têm sim, querida Helena. Hoje em dia, o que mais importa na nossa sociedade é o desenvolvimento de nossas crianças. Sem elas, não haverá futuro. Poucos de nós somos capazes de conceber. Os que o são, nem sempre geram mais de 1 ou 2 filhos. Então, quando uma criança está numa situação considerada não ideal ao seu desenvolvimento, a sociedade tem todo o direito de intervir. Veja, ninguém está “roubando” a sua filha. Os Meyer a levaram para uma vida mais completa do que ela teria só com a mãe, mas é você que continua sendo a mãe dela, criatura! Você sempre terá todo acesso a ela e ela será criada sabendo muito bem quem é a sua mãe biológica.
Conversavam descendo a rua lateral à direita da porta principal do Castelo. Iriam depois, atingida a praia, caminhando pela beira da represa por cerca de 800 metros até chegarem aos limites da casa dos Meyer. Helena estava perplexa, mesmo assim conseguia compreender o raciocínio de uma sociedade que se considerara, por muito tempo, à beira da extinção. Compreendia também que, de um jeito ou de outro, ela e Vitória acabariam por sair dessa bolha temporal e o Corredor das Árvores, no Castelo, as levaria de volta ao exato momento em que tinham partido em 2021. Se, em 2019, Susana viajara no tempo para encontrar o livro de George e Carmen, no passado, certamente o Corredor das Árvores levara a ela e à sua filhinha, para um futuro, com algum propósito. Alguma mensagem, alguma lição, elas teriam que receber conhecendo aquele mundo tão diferente no futuro.
-- Mestre – perguntou Helena então – Essa família Meyer será descendente dos Meyer que, no começo do século XX, construíram o Castelo?
-- Sim, eles são – disse o Guardião – e conhecem muito bem a história toda.
-- Então devem saber das viagens pelo Corredor das Árvores. Sendo assim não será tão difícil para eles compreender que Vitória e eu viemos de outro tempo e que teremos que retornar a ele.
--No entanto, ponderou o Guardião, nesse momento eles não sabem de nada disso. Eles fizeram o mais natural, estão agindo pelo bem da comunidade, querendo dar uma formação plena a uma criança. Como eu já expliquei, as crianças são o que há de mais importante em nosso mundo.
A casa dos Meyer era uma linda residência térrea que, no tempo de Helena, fôra um restaurante à beira da praia, frequentado pelos paulistanos que buscavam o lazer que a Guarabitinga poderia lhes proporcionar em dias de sol. Fôra, evidentemente, reformada e ficava no centro de um grande jardim, coberto de flores e com grandes árvores frutíferas, algumas em plena florescência. Quando entraram na casa, sem se fazer anunciar ou mesmo bater à porta, os Meyer estavam terminando sua refeição. Pelas paredes da casa, quadros à óleo, enormes e lindos que o Mestre se apressou em explicar serem obras dos outros três moradores. Vitória, sentada numa cadeirinha de jantar, ao ver Helena estendeu os bracinhos balbuciando “mamã...”.
Helena correu para a menina e a arrancou da cadeirinha, prendendo-a fortemente nos braços. Só então se deu conta que nem cumprimentara as pessoas que ali estavam, à mesa.
Lianda Meyer era uma mulher alta, bronzeada pelo sol, de cabelos ruivos e olhos cor de mel.
-- Vitória – disse ela – sua mamãe ficou tão pouco tempo longe de você e já estava com saudades. – Sorriu para Helena: -- Que bom que você veio conhecer o novo lar da sua filha biológica! Seja, e será sempre, muito benvinda a esta casa!
Juvenir Meyer se apresentou à Helena e esta aos três artistas plásticos que estavam à mesa: Joel, Augusto e Evelyn.
Helena sabia que só à força aquelas pessoas seriam capazes de arrancar Vitória dos seus braços. Mas já percebera também que a violência parecia não ter espaço nas atitudes daqueles seres.
Sentaram-se todos nos amplos sofás que ficavam próximos às muitas janelas da sala principal da casa e o guardião começou a explicar a história de Helena e Vitória que eram oriundas de uma época com valores muito diferentes dos deles. Estava no meio da explicação quando um Douglas, ligeiramente agitado, irrompeu porta adentro.
Cumprimentou a todos e então disse: -- Lamento dizer isso, mas vocês cometeram um engano. A menina Vitória não está apenas com a mãe. Ela logo terá um pai, eu mesmo, que já marquei a cerimônia do meu casamento com Helena para o próximo domingo.
Seguiram-se expressões esfuziantes de alegria e cumprimentos aos noivos. Helena olhava tudo estarrecida. Como Douglas, o sobrinho-bisneto de Vitória, poderia, de repente, tornar-se pai de sua própria antepassada? Ela mesma, Helena, não tinha a menor intenção de casar-se com Douglas que, afinal, era seu trineto... Que loucura! Mas sentiu-se extremamente grata pelo gesto do rapaz e compreendeu toda a generosidade que ali se escondia. Sem dúvida, aquela era a única maneira de conservar consigo a própria filha. Que mundo mais doido esse! – pensou.
Quando saíam da casa e começavam a caminhar de volta ao castelo, Helena – toda feliz com a amada filha recuperada – foi logo dizendo:
-- Pôxa, Douglas! Muito obrigada por ter inventado essa história de casamento. Como o Mestre me explicou, se não fosse você, eu é que teria ido parar no Gabinete de Resolução de Conflitos...
Ambos voltaram-se para ela, espantados. Douglas disse:
-- Acho que você não entendeu, Helena. Não inventei nada. Eu marquei mesmo o nosso casamento porque esta é a única solução para você poder ficar com sua filha.
-- Você enlouqueceu? – quase gritou ela – Não podemos nos casar! Vitória é a sua tia-bisavó. Nós precisamos voltar no Tempo, ela e eu, e o mais depressa possível.
-- Enquanto você estiver em 2108, se quiser manter a sua filha o tempo todo junto de você, não haverá outra solução a não ser dar a ela uma família. Se não quer se casar comigo, terá que se casar com alguém.
Helena começou a chorar. Bem que sua mãe, em seu leito de morte, a avisara. Viajar no tempo nem sempre dava em boa coisa. Teria ela agora que viver ao lado de um homem que era fisicamente igual ao seu marido morto? Seria uma tortura.
O Mestre passou delicadamente o braço pelo ombro dela, Douglas pegou Vitória ao colo, a menina parecia assustada ante as lágrimas de sua mãe.
Foi então que ela ouviu o Mestre dizendo: -- Minha filha, vamos à farmácia do Castelo. Eu vou lhe dar um antiemotivo.
-- Antiemotivo? – perguntou Helena, surpresa – O que é isso? Um remédio para suprimir as emoções?
-- Há muito o mundo compreendeu o perigo físico das emoções. As descargas de adrenalina, quando constantes, acabam deteriorando artérias, sobrecarregando glândulas e minando para sempre a nossa saúde. Você vê – explicava então Douglas – nós não adoecemos porque vivemos em paz.
Helena quase arrancou Vitória dos braços dele. -- A paz, para vocês, é a ausência de emoções? Como se pode viver sem emoções? Elas são a base das nossas ações, desde para produzir obras de arte como para conquistas científicas...
-- E também para a guerra – interrompeu-a o Mestre. Desde que vencemos a pandemia, as guerras cessaram. A humanidade estava ocupada demais, tentando sobreviver à esterilidade e às milhões de mortes causadas pelo vírus, ocupada demais para guerrear entre si. Depois, controladas as emoções, muito depois, todos os conflitos começaram a se resolver pelo diálogo, pela racionalidade.
--É... sem emoções me parece natural que vocês tratem as suas crianças como produtos a serem formados por escolhas “racionais”... – então lembrando-se das azaléas no Corredor das Árvores e da imensa quantidade de flores e árvores floríferas que viu no jardim dos Meyer, perguntou: -- E a beleza? E a arte? Vi os quadros nas paredes da casa, do Castelo, vi as flores por toda parte... Ouvi os Beatles e Mozart brotando do nada nos ambientes... Como podem apreciar a arte, a beleza dos jardins e da música, se não têm emoções?
-- Ah, mas nós as temos. Só que seletivamente. Apenas as positivas. Se não tivéssemos emoção alguma, como eu teria me apaixonado por você assim, logo à primeira vista? – rebateu Douglas.
Quando chegaram ao Castelo, Helena deu um jeito de escapar de ambos, do Mestre e do Douglas, temendo que eles quisessem afinal que ela tomasse tal supressor de emoções. Subiu para o quarto com a desculpa de dar banho em Vitória e só desceu para o jantar quando, espiando pelo mezanino, viu que tanto o Mestre quanto Douglas já não estavam mais na sala de vidros e nem na sala da lareira.
Capítulo 6 – Positivo e Negativo
Helena, no entanto, não demoraria a perceber que era muito difícil saber quais eram as emoções positivas e quais as negativas. Afinal, assim como algumas religiões africanas justificavam seus “trabalhos” feitos para o lado escuro da vida com a desculpa de que “o mal de um pode ser o bem de outro”, a emoção negativa de um pode ser a emoção positiva de outro.
Janine, a cuidadora encarregada do Abrigo das Crianças, há muito sonhava em conquistar a atenção e o amor de seu vizinho, o encarregado da Resolução de Conflitos, Douglas. Ele, no entanto, parecia pensar que toda a convivência deles – muitas vezes almoçavam juntos, até liam juntos e também iam aos rinques da patinação, que adoravam, juntos – não passasse de uma forte amizade, de uma forte afinidade. Para Janine, porém, aquilo era amor. Quando ficou sabendo que Douglas estava de casamento marcado com Helena para dali a poucos dias, correu para o Mestre. Com a desculpa de querer localizar o livro físico “Todos os Homens São Mortais”, de Simone de Beauvoir, que precisava ler como parte de seus estudos sobre a Psicologia da Morte, na Universidade, começou a puxar conversa com o Guardião.
-- Pois é, Mestre. Meu amigo Douglas parece enfeitiçado por essa tal de Helena. Vão se casar no domingo e se conhecem apenas há uns poucos dias...
-- Seu amigo tem um coração generoso, embora diga também que se apaixonou por Helena à primeira vista. A verdade é que a moça não pertence ao nosso Tempo e não consegue, por isso, entender os nossos costumes com relação às crianças. Ela veio, pelo Corredor das Árvores, do ano de 2021.
-- Nossa! – espantou-se Janine – Então a história de viagens no Tempo por entre as árvores do Castelo é mais que uma lenda?
-- Sim – disse o Mestre. – Mas eu sempre soube disso. Sempre tive a certeza de que o clássico literário “Um Castelo Além do Tempo” não era mera ficção.
-- Mas se ela é uma Viajante do Tempo, um dia acabará voltando para o Passado?
-- Provavelmente.
-- E por que Douglas quer se casar com uma mulher que poderá desaparecer da vida dele em qualquer momento?
-- Ele diz que se apaixonou por ela. Mas é mais que isso. Ele compreende o sentimento materno que ela possui, típico da sua época, mas que chegou até ela como parte de uma cultura construída socialmente a partir de meados do século XVIII e que predominava sobremaneira no tempo em que ela nasceu. Douglas sabe que as mães dos séculos XIX, XX e XXI dificilmente aceitariam separar-se de suas crias. Mas ele sabe também que hoje, no nosso Tempo Presente, crianças têm que ter uma família completa e Helena é viúva...
-- Ele vai casar-se com ela apenas para que os Meyer não criem a filha dela?
-- Exatamente.
Então – pensou Janine – esse casamento é um engodo, uma falcatrua. Pensou, mas nada disse.
Na manhã seguinte, antes de abrir as portas de sua creche, Janine estava sentada no mesmo sofá onde tinham estado o Mestre, Douglas, Helena e Vitória, na casa dos Meyer. Era muito amiga de Lianda e sabia que esta ficara bastante decepcionada por “perder” a guarda de Vitória. Janine mesmo indicara a criança à amiga, pois sabia que Helena não tinha marido.
-- Eu acredito – disse Janine – que você e Juvenir devam ir ainda hoje à Resolução de Conflitos, reivindicar a guarda da menina Vitória. Fiquei sabendo que Douglas se casará com Helena apenas para evitar que vocês fiquem com a menina. Não será um casamento feliz, já que é apenas de conveniência e, assim sendo, não proporcionará um desenvolvimento harmonioso e seguro à pequena menina. Vocês terão que pedir o afastamento de Douglas e Helena dessa sessão e conversar com outros Mediadores, é claro, que não eles, já que são partes interessadas e envolvidas na questão.
-- Ah...— suspirou Lianda – eu tinha feito tantos planos para essa criança..., Mas não tive dúvidas quando Douglas anunciou seu casamento com Helena. Nunca imaginei que ele pudesse se casar com ela apenas para impedir que Juvenir e eu tivéssemos a guarda de Vitória.
-- Mas foi exatamente isso que o Guardião me explicou. Aliás, ele parece inclinado a exercer uma compreensão fora do comum para com os sentimentos dessa Helena. Eles não contaram a vocês que ela é uma Viajante do Tempo?
-- Sim, eles contaram. Mas isso não muda nada. Se ela vive aqui agora deve viver de acordo com os nossos costumes e não com os que porventura tenham vindo com ela do passado. – respondeu Lianda.
-- Não é apenas isso! – disse Janine – Vocês têm que reivindicar a guarda da menina, mas têm também que impedir que haja esse casamento de pura fachada, sem amor!
-- O que, aliás, você mesma, Janine, deve estar querendo impedir. Não é segredo, pelo menos para mim, o seu amor por Douglas, é natural que não queira vê-lo casado com outra. Mas não sei se é apenas um casamento de conveniência, ele deve mesmo estar se importando com essa Viajante, deve estar envolvido com ela, pois afinal sabe que ela sofrerá se perder a guarda da filha, ele está reconhecendo o sentimento antigo que ela traz, esse sentimento ultrapassado de posse exclusiva dos filhos. Afinal, ela vem de um tempo em que não se reconhecia o valor das crianças para a sociedade como um todo, conhecia-se apenas o sentimento egoísta da posse dos filhos.
-- Estou impressionada com esse seu conhecimento de sentimentos passados – respondeu Janine.
-- Tenho que ser justa. Não posso ignorar os sentimentos da Viajante e você sabe muito bem que estudei profundamente a sociedade pré-pandemia, inclusive essa foi a minha tese de mestrado, O Mito do Amor Materno, como no livro clássico daquele filósofa do século XX, Elizabeth Badinter.
-- Mais uma razão para você e Juvenir reivindicarem a guarda e a formação dessa criança!
-- Não sei, Janine. Se Douglas se apaixonou por essa moça, não acho que devamos interferir. Essa seria uma atitude negativa, a meu ver. Afinal, a menina terá uma criação ideal, por pai e mãe devidamente apaixonados.
-- Você não entende! Ela não o ama. Vai casar-se apenas para poder ficar com a filha, com esse negativo e antiquado sentimento de posse! Essa criança será criada de maneira muito diferente das nossas crianças. Será criada sufocando-se com o afeto sincero, sim, mas possessivo de sua mãe biológica.
-- Preciso pensar – responde Lianda, já meio cansada da insistência da amiga.
-- Mas você não tem muito tempo – concluiu Janine – o casamento é daqui a poucos dias. E nem eu tenho tempo – riu – tenho que ir abrir a escolinha. E despediram-se com um beijo um tanto ressentido.
Janine e Lianda não foram as únicas a madrugar naquela manhã. Helena, com Vitória em seu carrinho, foi ver o sol nascer entre o Corredor das Árvores. Seu único desejo, naquela hora, era voltar para o seu próprio tempo, viver o luto pelo marido, voltar ao trabalho no escritório e ver sua filha crescer no tempo certo. Aquele não era o tempo nem o mundo delas, compreendia. Não poderiam ser felizes ali. Ansiava pela volta, esperava por uma névoa que sequer se avizinhava no horizonte, enquanto subia e descia pelo Corredor das Árvores, na esperança de viajar de volta ao seu próprio mundo.
Por que razão afinal tinham vindo a esse Tempo? O que a vida estava querendo lhe mostrar com essa experiência esdrúxula? Talvez nada. Talvez não houvesse propósito algum em tudo aquilo.
Do terraço, acima da sala de vidros, o Mestre Guardião observava mãe e filha, no carrinho, caminhando sem parar pelo Corredor das Árvores. Ela quer voltar – pensou ele – e não posso dizer que não tenha razão em querer.
Quando mais tarde Janine, depois de abrir a escolinha, sentou-se ao lado dele para o desjejum, ele disse: -- Você foi à casa dos Meyer tentar fazer com que eles reivindicassem a guarda da menina!
Janine olhou espantada para ele: -- Lianda lhe disse?
-- Não – fez ele balançando a cabeça – Eu deduzi. Sabia que você faria isso quando lhe contei e lhe contei, apesar de saber, porque também não estou gostando da ideia desse casamento e de uma criança ser criada sofrendo as consequências dos moldes da antiga posse materna. Não pelo menos nos dias atuais. Não sei se Helena viajou no Tempo para nos fazer refletir sobre a nossa maneira de viver, para nos fazer repensar, repensar se estamos ou não, afinal, no rumo certo. Estamos num impasse irônico: se respeitarmos o direito da nossa Helena em exercer sentimentos que há muito nos deixaram, como a posse materna, estaremos desrespeitando a nossa própria filosofia com relação às nossas crianças. Vitória será criada com uma visão de mundo diferente das outras crianças. O que não seria justo para com ela. Se, por outro lado, desrespeitarmos o sentimento materno de Helena e a separarmos de sua filha, estaremos consolidando um ato de violência contra a própria Helena, o que contradiz o nosso desejo de não-violência. Veja, o que é positivo para nós, será negativo para elas. E será negativo também para Douglas, que se julga apaixonado por Helena e, portanto, quer que ela conserve a filha sempre ao seu lado, para evitar o sofrimento da separação.
-- Mestre, a única coisa que consigo pensar é que sou eu quem deve se casar com Douglas e não essa intrusa que veio parar em nossas vidas apenas para desequilibrar os nossos próprios princípios e crenças. Isso é que é negativo: o desequilíbrio. Gostaria que ela voltasse, afinal, para a sua vida em 2021 e nos livrássemos de todos esses impasses.
-- Ela está tentando – respondeu o Guardião – desde o amanhecer caminha pra cima e pra baixo no Corredor das Árvores, com a menina no carrinho, e nem veio ainda tomar o seu café.
Enquanto isso, Helena, caminhando, pensava nas estranhas noções daquela gente, daquele tempo, imbuída de intenções positivas para a sua filha e tão negativas para ela própria.
Janine também pensava em emoções negativas e positivas enquanto caminhava de volta ao seu trabalho. Ela estava plenamente consciente de que seus sentimentos por Helena beirariam o ódio, se ela não tivesse controladas as fortes emoções pela ingestão regular dos antiemotivos. Afinal, não eram apenas os ciúmes, era também aquela sensação de injustiça: ela tanto cultivara sua relação com Douglas, tantas esperanças depositara nele, em que ele um dia percebesse a lógica de amá-la, sua companheira de inúmeras atividades... e ele se apaixonara por aquela estranha, aquela estranha ao mundo deles, ao Tempo deles... Se, ao menos, Lianda resolvesse contestar aquela união e a guarda de Vitória... Mas, pelo jeito, a amiga não faria isso. Aceitara a sugestão de Janine, pegando Vitória para criar, apenas pelo cívico dever de proporcionar a todas as crianças de seu meio um ambiente ideal para o seu desenvolvimento. Não havia afeto envolvido. E Janine percebeu a falta que a emoção, em Lianda, fazia agora para a concretização de seus planos de impedir um casamento que – ironia das ironias – ela mesma acabara por precipitar.
Talvez ela própria devesse permitir-se a emoção. Talvez fosse isso que estava faltando agora para que ela pudesse agir em seu próprio benefício. Percebia, racionalmente, que deveria sentir muita raiva da situação, deveria sentir e, se sentisse, talvez lhe ocorresse uma atitude a tomar para reverter todo o quadro. Mas agora era tarde. A sua dose mensal de antiemotivos só teria que ser renovada dali a 15 dias. No entanto, mesmo com a repressão química das emoções, ela podia, racionalmente, imaginar o que estaria sentindo e, pensando nisso, seu coração foi batendo mais aceleradamente, percebeu que estava ocorrendo uma mudança física em seu corpo, as veias de suas mãos saltaram e, perante a injustiça que, com a razão, ela percebia, sentiu brotar a emoção, foi ficando pálida e a raiva a invadiu com toda a força de uma represa que se rompe. Deixou-se desabar sobre a cadeira de sua escrivaninha de trabalho. Ela estava sentindo! Estava sentindo, a despeito da castração química que seu povo impunha às emoções. E, porque estava sentindo, decidiu-se. Levantou-se, saiu e, com passos firmes, atravessou a rua em direção ao Gabinete de Resolução de Conflitos, decidida a enfrentar, como se deve, o seu amor apaixonado por outra.
Enquanto isso, Helena que acabara de dar o desjejum à Vitória, na já quase vazia sala de vidros, também estava tomada pela ira. Revoltava-se contra a vida que aquele Tempo, que não era o seu, estava a lhe impor. Ela não se casaria, de jeito nenhum, com Douglas e muito menos permitiria que os Meyer se apoderassem de sua filhinha. A raiva – pensou então – também pode ser uma emoção positiva!
Capítulo 7 - Controle
Helena, com Vitória no carrinho, saiu do Castelo quase em fúria, decidida a ter uma conversa daquelas com Douglas, seu trineto. Afinal, alguma consideração, ao menos pela descendência, ele devia a ela. Aquela estúpida decisão de casar-se com ela e marcar a cerimônia sem ao menos consulta-la, a irritara. Os homens continuam iguais, 87 anos depois – pensou – sempre querendo decidir sem ouvir as mulheres!
No mesmo instante, Janine saía, pisando duro, do Abrigo das Crianças. Também estava disposta a dizer poucas e boas a Douglas. Afinal, que absurdo era esse de casar-se com uma mulher que poderia se esvanecer de repente dentro de uma névoa qualquer? Nesse caso, deixando-o só e, para sempre, casado, pois jamais poderia explicar a qualquer mediador de conflitos que estava “viúvo” de uma mulher que voltara a seu próprio tempo, quase um século antes desse tempo presente.
Afinal, embora voz corrente no entorno do Castelo, as viagens pelo Corredor das Árvores não passavam de lenda. Ninguém de fato acreditaria. Nem mesmo ela, Janine, estava certa de acreditar, aquela mulher poderia ser qualquer uma, vinda de qualquer lugar, sabedora das crendices que cercavam o Castelo..., Mas por que inventaria a história de vir do passado? O que estava querendo aquela Helena, afinal?
Encontraram-se as duas em frente à casa de Resolução de Conflitos. Janine, que não estava acostumada a lidar com a raiva que estava sentindo então, partiu aos socos e pontapés para cima de Helena, que apenas se esquivava dos golpes e tentava colocar o carrinho, com a filha dentro, encostado à cerca viva da casa, para protege-la. Sabia que, se revidasse, acabaria obrigada a engolir um daqueles comprimidos supressores de emoção.
Douglas, ouvindo os gritos de Janine, saiu para apartá-las.
Arrastou Janine para dentro da casa, perguntando à Helena se ela estava bem. Helena, embora com borboletas no estômago, trêmula e assustada, fez que sim com a cabeça. Pegou a filha no colo e, puxando o carrinho, foi andando devagar em direção ao Castelo. Tremia. A todo instante se perguntava o que, afinal, teria ido fazer naquele futuro que, inclusive, poderia nunca chegar a acontecer? Pelo que deduzira de tudo o que lera sobre essas “viagens no Tempo” do Corredor do Castelo, aquela realidade onde estava poderia não ser mais que uma espécie de “bolha temporal” e todos os que desta participavam acabariam voltando para o momento exato em que tinham partido. Assim, tudo o que viviam nessas bolhas poderia ser apenas um futuro alternativo. Um futuro que jamais existiria de fato. Afinal, Helena já ouvira falar sobre sequelas deixadas pela COVID-19, mas nunca sobre a doença causar alguma esterilidade...
Em 2020, quando esperava, como quase todos os habitantes do planeta, pelas vacinas que a protegessem desses novos coronavírus, Helena pensava que, afinal, a vida realmente nunca fôra aquele passeio tranquilo e cheio de benesses que alguns de seus conterrâneos e contemporâneos julgavam que fosse.
Helena pensava em seu avô que lutara na II Guerra Mundial e que sempre se emocionava ao ouvir Elvis Presley cantando Unchainded Melody, e dizia que era exatamente assim que se sentira na trincheira, ao pensar na mulher que amava e para quem, afinal, acabara voltando.
Helena pensava em todos os que não tiveram a mesma sorte de seu avô William Krauss que, depois da guerra, ainda vivera alguns anos com sua amada prima irmã Monique, com quem se casara 3 anos depois de voltar do front e morrera, por fim, de causas naturais.
Helena pensava nos judeus nos campos de concentração, pensava no incrível sofrimento das mulheres feitas cobaias para as experiências médicas de Mengele.
Pensava nos jovens mutilados da guerra estúpida do Vietnam.
Pensava em John Lennon, o gênio poeta friamente assassinado por coisa nenhuma.
Pensava no sofrimento de quem tinha dor de dente na Idade Média.
Pensava nos muitos povos escravizados por outros povos, em toda a História e, de fato, até aquele mesmo momento, no seu presente da década de 2020.
E pensava em seu amado marido que a “gripezinha” do presidente psicótico levara para sempre.
E olhava abismada para a futilidade e a irresponsabilidade de tantos jovens frequentando festas clandestinas, lotando as praias e os bares, sem se importar com a doença coletiva e cruel que tomara conta do mundo, como se aquilo não existisse, como se milhões de mortos nessa pandemia fossem como um filme de Hollywood...
Imagine, que ironia, se esses mesmos jovens que não levavam a sério a Pandemia, que se arriscavam a contrair o vírus e – pior – levar esse vírus para contaminar os mais velhos em suas próprias casas, pudessem imaginar que, por sequela, ficariam estéreis, condenados a jamais constituir família...
Viver nunca fôra brincadeira. E todos aqueles jovens se contaminando com o vírus que desprezavam, sem sintomas, sem a doença aparente e sem saber que a contaminação acabaria nessa esterilidade geral e transformaria ainda mais o mundo, tornando-o o que seria em 2108. Um mundo verde, de ar puro, mas despido da maior parte dos sentimentos humanos.
Os embriões congelados e esquecidos nas clínicas de Reprodução Assistida de todo o planeta é que tinham sido os responsáveis por repovoar a Terra. Crianças que não tinham mãe nem pai, que cresciam em lares onde eram muito bem tratadas e educadas mas – julgava Helena – não verdadeiramente amadas. Sem amor (e, ainda por cima, tomando os tais remédios para brecar emoções) que tipo de mundo construiriam essas crianças?
Aquele mundo de 2108, onde estava agora, que à princípio lhe parecera tão perfeito, sem poluição, com aquele ar levíssimo, aquele verde cheio de esplendor e cercado de flores, revelava-se um reino de crueldade e insensibilidade em meio a um cenário de sonhos. Se fosse assim, como era ali, no planeta inteiro, a Terra recuperada e plena de uma Natureza ideal, seria habitada por seres humanos gentis, mas despidos de emoções e de sentimentos mais profundos.
Não – pensou ela – isso é apenas uma bolha temporal. Uma brincadeira do Universo. Isso nunca acontecerá!
No entanto, ela estava ali e teria que ficar ali – intuía – até que o propósito dessa viagem maluca fizesse algum sentido para ela. Queria desesperadamente voltar para o seu tempo real. Temia por sua filha. Temia por si mesma e um mau pressentimento rondava-lhe o coração. Estava disposta a ir conversar cobre isso com Orlando quando, quase alcançando a entrada do Castelo, viu uma cena que não combinava com o ambiente: cinco homens uniformizados, vestidos em azul, passaram correndo por ela e entraram na casa onde estava Janine. Helena parou, atônita, e esperou, sem saber bem o que estava esperando. Logo viu Janine sair da casa com eles, como se fosse um robô, rígida, os olhos vidrados... Douglas saiu também. Dois daqueles veículos movidos à vela pararam ao lado do grupo. E levaram Janine com eles. Douglas caminhava em direção a Helena e a filha.
-- O que é isso? – perguntou ela, assustada – O que aconteceu com Janine?
-- Ela se descontrolou. Às vezes esse é o efeito do abuso dos antiemotivos. De tanto suprimirem as emoções negativas, numa situação de estresse, podem fazer com que estas venham à tona. Foi o que aconteceu com a nossa amiga. Mas os Guardiões da Saúde tratarão dela e logo ela retornará para nós, linda e calma como sempre foi.
-- Douglas – perguntou Helena – eles a levaram para uma espécie de hospício, você sabe, um lugar onde internam loucos?
Ele riu: -- Já ouvi falar em hospícios... Mas isso é coisa de um passado muito distante, de uma sociedade dominada por emoções negativas.
-- Está certo – respondeu Helena, tentando controlar a indignação que já a invadia – Sou sua trisavó, sou antiga! Mas como eles ficaram sabendo que Janine teve isso que você chama de “descontrole”?
-- Ah... Todos nós temos, em nossos comunicadores pessoais, uma simples tecla que os avisa. Eles nos localizam e vêm rapidamente. É um serviço comunitário dos mais eficientes.
Helena engoliu em seco: Um mundo onde uma simples crise de raiva exige tratamento químico? O que é isso? Uma espécie de ditadura do que eles definiram como sanidade? Disse:
-- Eu vi Janine sendo levada! Um horror! Estava dopada, parecia um robô, uma máquina! Que mundo é esse, de vocês, onde uma simples explosão de raiva necessita de tratamento químico?
-- É um mundo sem guerra! É um mundo de paz! – respondeu ele.
-- E também um mundo de seres humanos incompletos! – quase gritou Helena – Nós temos dois lados, Douglas! Um lado anjo, um lado agressivo! Se suprimirmos a raiva e agressividade, teremos suprimido o que a raiva e a agressividade têm de bom e de positivo.
-- O que por exemplo?
-- O impulso da transformação! O impulso da criatividade! A revolta é que nos leva a buscar novos caminhos, novas soluções. Se somos todos passivos e bonzinhos, o que criaremos?
-- Criamos a paz, o equilíbrio, você não percebe, Helena? Resolvemos nossos conflitos de forma pacífica! Pelo diálogo! Pelo entendimento! Pela tolerância! Descontrolados e raivosos não teríamos nada disso!
-- Não. – respondeu ela -- Não podemos negar os nossos sentimentos negativos! Temos que superá-los, mas não ingerindo supressores da emoção! Temos que superá-los com inteligência e racionalidade! Meu Deus, vocês criaram uma humanidade feita de robôs, sem a metade dos seus sentimentos, sem a metade que, de fato, os impulsiona para encontrar melhores opções!
Capítulo 8 – Razões
Helena deixou Douglas ali, plantado na porta da casa, e foi-se de volta ao Castelo, sem nem mesmo se despedir. Estava chocada com a cena que vira, uma cena que parecia saída de um filme político de ficção, tão comuns no seu tempo, de regimes totalitários e intolerantes e de controle do povo por drogas ou técnicas de lavagem cerebral. Absolutamente incompatível com o mundo de paz que a paisagem entorno dela sugeria. Como fôra mesmo que Douglas se referira aqueles homens de azul? – tentou lembrar-se – Sim... Guardiões da Saúde... Guardião? O mesmo título de Orlando... Mas ele seria então Guardião de que?
-- Do Castelo e toda a região em torno – respondeu ele simplesmente, quando perguntado. Helena voltara ao Castelo e o encontrara pescando num ancoradouro. Depois de prender o carrinho de Vitória a uma das árvores da beira da praia, fôra sentar-se ao lado do mestre e mergulhara os pés na água.
A água era um verdadeiro milagre. Desde criança ela se acostumara à cor escura, marrom, da água da represa de Guarabitinga. Não era apenas o leito da represa, de terra e com os tocos das árvores que haviam sido derrubadas para a sua construção, era também a extrema poluição dos rios e da própria represa, onde vários esgotos clandestinos (no tempo em que ela vivia) eram despejados. Agora não. Em dias de vento a represa voltava a ficar com aquele tom amarronzado devido às ondas que se formavam na superfície e acabavam revolvendo também o fundo. Mas muito menos do que há 8 décadas passadas. Agora, vista de longe, a água era sempre azul. E, de perto, transparente o suficiente para que Helena pudesse enxergar seus próprios pés e, mais, muitos cardumes, até tartarugas, e os troncos petrificados quase dez metros abaixo da superfície.
Perguntou a Orlando: -- Mestre, por que você pesca se ninguém por aqui come carne?
-- Ah, por esporte e distração. Pesco e devolvo o que pesco imediatamente.
-- Mas o peixe não fica ferido?
-- Nossas iscas são muito diferentes agora. Ligam-se ao animal por sucção. Depois basta apertar e um botãozinho e a isca se solta em nossa mão, sem ferir o peixe, como acontecia antigamente com aqueles estúpidos anzóis de gancho.
Helena, deliciando-se com o frescor das águas limpas, com o ar leve e puro, com a ausência de barulhos agressivos, apenas o canto dos mais diversos pássaros e o farfalhar do vento nas folhas, com o perfume da flores, pensava por um segundo que talvez fosse melhor mesmo viver naquele tempo, naquela terra despoluída, generosa, equilibrada, como deveria ter sido sempre. Não seria porém capaz de viver numa sociedade que controlava o que o ser humano tinha de mais precioso: suas emoções.
-- Mestre – disse ela então a Orlando – acabo de ver uma cena impensável, algo que não combina com a paz aparente desse seu mundo e de seu tempo. Cinco homens vestidos de azul...
-- Levaram Janine para tratamento – interrompeu ele. – Você viu alguma violência nisso? Eles a amarraram, colocaram nela uma daquelas estúpidas “camisas de força” usadas no seu tempo para conter pessoas descontroladas?
-- Não, Orlando – respondeu ela – Vi pior que isso: eles a doparam! Você há de concordar que a violência é a mesma.
-- Minha filha – respondeu com suavidade o Guardião – às vezes esse é o preço que qualquer um de nós pode ter que pagar por usufruir dos benefícios dos antiemotivos. Se os tomarmos em excesso, nossa cota acabará antes do tempo certo e aí ficaremos sujeitos a esse descontrole causado pelas emoções negativas que, reprimidas por toda uma vida, podem aflorar de repente. Nesse caso, como aconteceu com Janine, é necessário ir para um tratamento intensivo e recuperar o equilíbrio. Não se preocupe. Ninguém fará mal a ela. Em dois dias ela estará de volta, calma e feliz como sempre foi.
-- Calma, pode ser. Mas feliz... Ninguém é feliz sem estar completo. Vocês estão suprimindo tudo o que há de bom nas emoções negativas... Já discuti isso com Douglas...
-- Sim. Eu vi.
-- Viu como?
-- Nós guardiões podemos ver tudo o que acontece nas áreas pelas quais somos responsáveis. – disse ele, tirando do bolso um celular antigo com uma pequena tela. Veja – mostrou a ela – apertando algumas teclas. Apareceram, com incrível nitidez e som perfeito, várias imagens de vários lugares do entorno e do Castelo.
-- Nos vigiam! – exclamou ela! – Invadem a privacidade de qualquer um de nós! Isso é absurdo! É pior ainda do que os antiemotivos. Parece aquele livro famoso de George Orwell, o “1984”, com sua sociedade controlada por um “Big Brother”...
-- Só nós, os Guardiões, temos acesso à frequência pela qual as imagens são transmitidas e não as usamos para bisbilhotar a vida alheia. Nós as usamos quando há alguma crise, como a que houve entre Janine e você.
-- Não entendi porque ela me agrediu.
-- Antes de você chegar ela ainda tinha esperança de casar-se com Douglas. Sempre, desde menina, é apaixonada por ele.
-- Então ela tem sentimentos que vocês classificariam como negativos, os ciúmes, por exemplo.
-- Já explicamos a você, Helena: ela excedeu a cota mensal de antiemotivos, na tentativa de aceitar a nova situação de Douglas, apaixonado por você e querendo proteger os seus ultrapassados sentimentos de posse na maternidade. Depois, sem eles, veio a crise. Mas passará. Sei que Douglas já lhe explicou isso também, mas me atrevo a repetir, na esperança de que você finalmente compreenda: nossa sociedade evoluiu muito desde que eu era uma rapazote amargurado, pobre, cheio de inveja daqueles ricaços que frequentavam a Guarabitinga com seus barcos e iates, que eu achava magníficos, sem ter consciência do quão poluidores eles eram com seus motores à gasolina. Salvar o mundo, ameaçado pelas trágicas consequências da Pandemia das décadas de 2020 e 30, fez com que nos uníssimos todos, em cada canto do Planeta, esquecêssemos as nossas desigualdades, as guerras, as intolerâncias com os que porventura julgássemos diferentes de nós. Quando tudo começou a mudar, nos alegramos com a Regeneração (que foi lenta) da Terra, com o nascimento dos embriões antes condenados ao congelador, mas logo percebemos que, sem nenhuma providência mais prática, quando o mundo afinal se estabilizasse, voltaríamos nossos olhos novamente para nossos próprios umbigos e veríamos ressurgir o individualismo, a ausência de empatia e solidariedade para com nossos irmãos, a intolerância e, depois disso, novamente a guerra.
-- Tivemos vários encontros mundiais, -- continuou ele – cada um em sua tela da rede, onde discutimos tudo isso à exaustão. A única providência que, percebemos, poderíamos tomar para evitar a volta de tantos desmandos de nós próprios, seria a supressão da emoções negativas. Durante duas décadas fomos aperfeiçoando os nossos comprimidos antiemotivos. Eles são altamente sofisticados, eles são o resultado de muita tentativa e erro e, graças a eles, já há mais de três décadas, vivemos em paz. Somos solidários. Somos todos irmãos e somos felizes por sermos irmãos e vivermos em paz.
-- Eu compreendo racionalmente as suas razões, -- disse Helena – mas jamais poderei aceitar isso. Prefiro correr o risco de viver a guerra, a literal ou mesmo a cotidiana, a ver suprimida a metade de mim. Lamento, Orlando. Tudo o que eu quero, cada dia mais e mais, é partir desse seu mundo e voltar ao meu. Sei que voltarei porque, afinal, Douglas viu sua genealogia no computador e sabemos que minha filha Vitória é sua antepassada. Portanto, ela e eu voltaremos sim à 2021. Mas, já que estou presa aqui por enquanto, diga-me: como vocês fazem para viajar?
-- Ah... – respondeu ele – existem transportes coletivos, por trilhos, que nos levam a outros agrupamentos humanos. Para atravessar os oceanos, usamos velhos navios adaptados ou mesmo até alguns dos antigos aviões. Agora essas máquinas funcionam com combustíveis vegetais. É necessário fazer um pedido formal ao Guardião Mor para obter a autorização de deslocamento, fornecendo os motivos pelos quais desejamos nos deslocar.
-- E que motivos são aceitos? – perguntou Helena.
-- Pesquisa científica, reuniões presenciais para estudo e aperfeiçoamento, curiosidade história e até mesmo o simples desejo de mudar de ares.
-- Quero mudar de ares! – disse, decidida, Helena – Quero ver o mar! Não preciso ir longe. A Baixada Santista já estaria ótimo...
Orlando riu: -- Você terá uma grande surpresa! Todo o litoral brasileiro, a partir da década de 2040, começou a ser destruído por enormes tsunamis que se formavam como consequência de outros desastres ecológicos: desde o imenso derretimento dos icebergs das calotas polares (a temperatura do planeta, de 2020 a 2040, diferentemente do que previam os cientistas do seu tempo, subira mais de 10 graus centígrados, todo o clima, regime de chuvas, estações do ano, tudo se transformou, passando por violentos terremotos, tornados, furacões). As cidades litorâneas foram lambidas e engolidas pela fúria dos oceanos. Você pode ir às cidades, aqui próximas, que antes foram Santos e São Vicente. Mas nada reconhecerá. Quando os oceanos começaram a derrubar os prédios, o mar ficou imundo, cheio dos destroços das construções, prédios, portos, navios, vegetação. Foram mais de duas décadas para que tudo se sedimentasse e o mar voltasse a ser o velho mar de antes. Muitas construções foram implodidas antes que o oceano as devorasse. Prédios de inegável valor arquitetônico e histórico foram transferidos para terras bem mais distantes da beira-mar, com imensos guindastes que conseguiam escavar a terra em torno deles e transporta-los, como se eles fossem a decoração de um imenso bolo feito de terra, para outros locais... Ah... riu ele... Acredito que a primeira construção assim transportada tenha sido a capela do antigo Hospital Matarazzo, próximo à Avenida Paulista, aqui em São Paulo, ainda em 2019. Os engenheiros conseguiram suspender a capela, intacta, para um terreno mais de 10 metros acima de onde ela estivera originalmente. Como você vê, nessas oito décadas, vencemos muitos dos grandes desafios resultados do desequilíbrio ecológico, não apenas da Pandemia.
-- E, por falar nisso, -- disse, curiosa, Helena – E a Avenida Paulista? Ainda existe?
-- É agora um grande parque – respondeu o guardião – Quase todos os edifícios que você conheceu ainda estão lá. Alguns se tornaram apenas esqueletos de concreto que servem de suporte para as muitas plantas trepadeiras que foram cultivadas para que cobrissem o concreto com seu manto verde. Outros prédios ainda funcionam como universidades, museus e centros de pesquisa. Eles usam, inclusive, energia elétrica, um privilégio para poucos hoje, já que temos poucas usinas e a maioria de nós usa a energia solar, como você mesma viu, aqui no Castelo. A Paulista é um enorme parque, gramados, árvores, flores e trilhas para os trenzinhos à vela que levam de uma ponta a outra dos seus 2,5kms de extensão. Se você quiser ir até lá, a apenas 500 m daqui, há coletivos desses trens, só que bem maiores, que vão da represa a outros locais da cidade, como a Paulista, logo de manhã, e voltam ao anoitecer. Para fazer o trajeto, você leva alguma coisa – de alimentos a objetos artesanais e eletrônicos (que, aliás, quase não têm valor, já que existem aos milhões, dos antigos, conservados em grandes depósitos no nosso Mercado Central de Trocas que funciona bem próximo, aliás, à Avenida Paulista).
-- E se eu não tiver nada para levar?
-- Ah, não leve. Não é uma exigência, é uma cortesia pelo serviço que está sendo prestado pela Coletividade do Transporte.
-- E se alguém, mesmo tendo o que levar, burle essa cortesia e não leve nada?
O Guardião olhou para ela espantado: -- E por que alguém faria isso?
Helena riu, lembrando-se da estação de metrô em Estocolmo onde existiam, na época em ela nascera, catracas livres para aqueles que não pudessem, por qualquer razão, pagar pela passagem. Era uma lenda do seu tempo, que corria, inclusive pela Internet. Um brasileiro perguntara a uma funcionária do metrô o que aconteceria se alguém, mesmo tendo o dinheiro da passagem, resolvesse entrar por aquela catraca livre e viajar sem pagar. E ela respondera exatamente o que o Guardião acabara de dizer: E por que alguém faria isso?
Helena e Vitória tinham recebido uma muda de roupa cada uma para que pudessem mandar as usadas, no dia, ao Coletivo de Lavanderia do Castelo, que as devolvia na manhã seguinte, limpas e perfumadas e levava as do dia anterior. No blazer que Helena usava quando viajara no tempo, estava o seu celular e ela se esqueceu disso ao entregar a roupa para lavar. No dia seguinte, lá estava o seu telefone, no mesmo bolso, mas com uma diferença: 100% carregado.
-- Mestre – perguntou ela por fim – Qual é então o maior desafio das pessoas numa sociedade onde não há posições a galgar? O que conquistar?
-- Ora – respondeu ele – O conhecimento, é claro. Todos estudam sem parar e são capazes de exercer diversas funções em suas comunidades. O sujeito que você vê cuidando da horta, amanhã pode ver dando aulas de computação numa escola da Paulista ou controlando um transporte qualquer. Ninguém tem uma única rotina. Pode trocar de função, a qualquer momento, com qualquer outra pessoa. Ninguém se entedia e todos têm sempre o que aprender.
-- Mas o Douglas, por exemplo, trabalha na Resolução de Conflitos. E a Janine, na creche.
-- Não por muito tempo. Existem outras pessoas capacitadas para as funções que eles estão exercendo agora, assim como eles também têm experiência a capacitação para funções diversas. A qualquer momento, podem trocar.
-- Então, Orlando, eu posso ir à Paulista nesse fim de semana?
O mestre riu: -- Não existe fim de semana. Todos os dias são dias. Você pode ir quando bem entender.
-- Então irei amanhã.
-- Vá mesmo. Vai lhe fazer bem e eu vou providenciar para você e para Vitória a autorização para ir ver a Nova Baixada Santista e suas maravilhosas praias.
Capítulo 9 O Bem Mais Precioso
Descendo a Serra do Mar, pelas grandes janelas da trenzinho, Helena olha encantada a beira da estrada, coberta por manacás. Lembrava-se quando era criança e seus pais a levaram à Santos por uma estrada muito antiga, piso de cimento, que era o “Caminho do Mar”, construída como uma trilha ainda nos tempos do Império.
Desde 1985, fechada ao tráfego de veículos, a única maneira de conhecer o caminho percorrido por D. Pedro I, em 1822, imediatamente antes de seu grito de Independência ou Morte, é indo a pé, em excursões. Em 1926 a trilha fora cimentada, o leito alargado, em toda a sua extensão e os pais de Helena contavam que chegaram a viajar por ela, de automóvel, antes da proibição. O percurso é bem mais curto do que o das outras estradas, porque o Caminho do Mar é mais íngreme e de curvas muito perigosas para o trânsito dos carros. Helena encantara-se com as antigas edificações que ali estão preservadas, encantara-se com a vista maravilhosa (por sorte, aquele foi um dos raros dias sem neblina na serra, sem chuviscos, e, portanto, de plena visibilidade). Lá do alto – lembrava-se ela – era possível ver então algumas cidades que compunham a Baixada Santista. E havia muitos manacás floridos, como os que agora ela admira pelas janelas do trem. Vitória, em seu colo, balbucia: Flores, mamã..
No dia anterior, em seu passeio pela Paulista, Helena e Vitória tinham admirado os enormes canteiros de flores, árvores floríferas, todo o perfume misturado pelo ar e a menina aprendera a falar “flores”.
Quando desembarcaram na Baixada, uma charrete coletiva levou-as até a praia, ou o que antigamente era a praia do Gonzaga. Agora, completamente irreconhecível. Cercada pela recuperada Mata Atlântica, com poucos edifícios, pequenos prédios, casas grandes. A areia limpa, o mar azul... Uma paisagem de sonho! “Deveria ser assim quando os portugueses chegaram, em 1500..., só que sem casas” – imaginou ela.
No caminho, um casal simpático puxara conversa com ela e agora estavam eles, sentados num banco de pedra, cercado por coqueiros, admirando o mar. Alguns surfistas. Alguns banhistas. Nada parecido com a praia, coalhada de gente se trombando, da qual ela se recordava. Assim como nada parecida com o década de 2020, fôra sua viagem. Linda, sossegada, sem poluição, sem milhares e milhares de automóveis na Rodovia dos Imigrantes, congestionamentos, horas, às vezes, para andar os 90kms que separavam Santos de São Paulo.
Foi então que o casal começou a falar sobre o que os inquietava: -- Desculpe – disse a mulher – mas você não acha perigoso vir à praia com sua filha e sem seu marido?
-- Não entendi... Por que seria perigoso?
-- Alguém poderia pensar que você é sozinha com ela. Você sabe, as crianças são o bem mais valioso que temos. Se você for uma mulher sozinha com uma criança... bom... alguém poderia pensar que isso não é certo, que ela deveria ter uma família constituída e...
-- Roubá-la? – perguntou Helena, sentindo todo o horror de quando a separaram da filha voltar ao seu peito, ao seu estômago, ao seu coração.
-- Não... – riu a outra – Ninguém faria isso. Mas poderiam denunciá-la e reivindicar a guarda de uma menininha sem pai.
-- Ela tem pai! – mentiu Helena, já em pânico.
-- De qualquer maneira – disse o homem, pensativo – eu a aconselharia a jamais viajar com essa criança sem o seu marido a acompanha-las. É perigoso. Você pode ter, no mínimo, que ficar dando explicações a um Conselho da Infância.
Todo o encanto daquele dia azul, naquela praia maravilhosa, se esvaiu.
-- Tem transporte agora? – perguntou Helena – Acho que é melhor eu voltar, então.
-- Sim, ao meio-dia tem um trem que sobe a serra. Vamos acompanha-la.
Os manacás, na volta, subindo a serra, pareciam ter desbotado. Como apreciar a beleza quando se carrega uma angústia sem fim dentro do peito? Se Helena voltaria para o seu tempo, antes disso teria que se unir em casamento, de fato, com seu trineto, caso quisesse – e como queria! – manter em segurança a sua menininha.
Aquele era um mundo onde as crianças se igualavam a um “bem”, no sentido estritamente material. Os seres humanos eram orgulhosos demais para pensar que, simplesmente, poderiam desaparecer da face da Terra, extinguir-se. As crianças, porém, não eram objeto de seu amor, eram apenas crianças geradas de embriões cujos pais desconhecidos e perdidos, não estavam mais ali para dar-lhes o imprescindível amor de uma família naturalmente constituída.
Helena sentira isso na pele, ao ver os seres daquele novo tempo não levavam em conta a existência de seu amor por Vitória. Para eles, ela nada mais era que uma criança para impedir o despovoamento do planeta. Alguém a ser treinado, mas não amado. Ela estivera, até então, firmemente decidida a considerar a ideia do casamento com o Douglas simplesmente como impensável. Mas percebia agora claramente que Vitória jamais estaria segura naquele mundo apenas com ela, a mãe, sem um pai ou, até mesmo, uma outra mãe, já que ali casais homoafetivos eram vistos com naturalidade. Ela não queria casar-se com ninguém. Seu coração ainda vestia luto pelo marido morto em 2020. O que ela queria era apenas voltar ao seu próprio tempo.
No entanto, imaginou, se permanecesse quieta no seu canto e sempre dentro do Castelo não correria tantos riscos. E, afinal, era lá que estava o portal do tempo que a levaria de volta.
Ainda angustiada, ao chegar da viagem, foi admirar o pôr do sol e caminhar pela alameda das árvores, desejando, com toda a força que era capaz, viajar novamente, agora para o passado. E seu desejo foi tão forte que, de repente, aconteceu! Uma névoa baixou subitamente sobre ela e Vitória e, quando se dissipou, lá estavam os pinheiros mirrados, lá estava o conhecido caminho das árvores, agora sem azaleias, sem perfume, sem orquídeas e certamente – pensou – com a montanha de prédios e construções cercando a represa. Já ia sorrindo, aliviada, quando ergueu os olhos para as margens da Guarabitinga, lá adiante e o que viu não foram os conhecidos edifícios... eram ruínas!
Capítulo 10 – 2064
Mal se recuperou do espanto, uma moça, vestida com um sujo e esgarçado uniforme militar, estava ao seu lado. Colocou a mão em seu ombro e disse, alegremente, com um belo sorriso: -- Olá, vovó! Então era tudo verdade! Você está aqui, afinal, em 2064, como sempre me disse que estaria.
Nada mais ocorreu, à atônita Helena, do que perguntar: -- Quem é você?
-- Sua neta, é claro – respondeu a moça, já abraçando-a. Helena permaneceu rígida. – Sou Diana Zom Krauss Belo! – E voltando-se para a bebê Vitória que sorria em seu carrinho, agitando os bracinhos – E essa é Vitória, minha mãezinha querida... que linda é, assim pequenininha! Meu Deus, eu nem consigo acreditar que você está aqui, que as histórias que me contou sobre o Castelo, sobre as viagens no tempo... É tudo verdade – disse, emocionada, com lágrimas escorrendo pela face. Confesso que nunca acreditei, embora tenha lido e relido aquele livro...
-- Sei – fez Helena – Um Castelo Além do Tempo. Você sabia que nós viríamos, então, mesmo não acreditando...
-- Sim! Você me contou, mais de uma vez, aliás – respondeu rindo. Venham, venham comigo...
-- Vovó – dizia ela enquanto caminhavam em direção ao Castelo – sei que você ainda não viveu nada do que lhe trouxe até esse presente. Sei que você saiu do seu tempo, em 2021, e nada sabe do que houve então, exceto o que lhe podem ter contado em 2108.
Diana era terceiro sargento do Exército Brasileiro. Primeiramente lotada num quartel no centro da cidade de São Paulo, já se esquecera das histórias de viagens no Tempo, que sua avó lhe contara, quando foi, de repente, transferida para a região de Guarabitinga, apenas um mês antes daquele dia, 28 de outubro de 2064, em que sua avó dizia que estaria lá, vinda de 2108, fugindo de um futuro muito estranho, onde a Terra se recuperara em sua saúde e em exuberante natureza e as pessoas tinham perdido grande parte das suas emoções.
Quando Diana ficou sabendo que iria em missão, com mais 20 soldados, para o Castelo da Represa de Guarabitinga, imediatamente lembrou-se das loucas histórias que sua avó lhe contara.
Vitória, sua mãe, achava, então, que eram sonhos, sonhos dementes de uma velha senhora que estava apenas dando nova roupagem às lendas que corriam nas família.
Helena nada contara a filha, Vitória, que, evidentemente não poderia lembrar-se daquelas estranhas viagens quando ainda era apenas uma bebê. Mas, de repente, quando a neta crescera, achou que tinha que contar-lhe, afinal, acabariam mesmo se encontrando em 2064 e a jovem Diana tinha que estar preparada para o inusitado encontro.
Vitória engravidara em 2043. Na verdade, fôra um ato cívico, uma das primeiras hospedeiras das doções de espermatozoides advindos dos bancos de congelamento das clínicas de reprodução assistida, que já estavam conscientes do estrago que a pandemia fizera nas jovens gerações, tornando-as inférteis.
Diana contou, então, a sua avó toda a história de 2021 até aquele momento: ela própria nascera em 2044, quando sua mãe, Vitória, tinha apenas 24 anos de idade e Helena se revoltara pela decisão dela, já que estava vendo-a repetir o destino das mulheres Zom: ter uma única filha.
Em 2061, aos oitenta anos de idade, Helena decidiu contar a Diana que se encontrariam no corredor das árvores do Castelo dali a apenas três anos. -- Você vai viajar para o futuro? – perguntou Vitória ao ouvir o que julgava ser apenas o começo da demência senil em sua mãe.
-- Não, para o passado – respondera Helena – Primeiro eu fui, com você ainda bebê, para o futuro, em 2108 e, naquele mundo lindo e louco, que os habitantes restantes sobre o Planeta, construíram e onde minha filha – ou seja, você – disse – era considerada uma espécie de “bem coletivo”, uma das poucas crianças que se encarregariam de povoar a Terra. Eu, sem marido, não era vista como a mãe ideal. Naquele novo mundo, lindo, mas louco, as crianças tinham que ser criadas por algum casal, homo ou hetero, não importava, mas um casal. Tentei desesperadamente voltar ao meu tempo. Mas as árvores me levaram a 2064, onde Diana me esperava. É por isso que ela tem que saber dessa história.
Tanto Vitória quanto Diana acreditavam que a demência senil gerara em Helena uma imaginação muito, muito fértil. A riqueza de detalhes dos sonhos que ela narrava eram inacreditáveis. E ela dizia: -- Daqui a um ano apenas o Brasil será também arrastado para essa guerra que já se apresenta em diversos países. Se já estamos muito mal, se a nossa economia já não se sustenta, se vivemos esses tempos tão difíceis na terra, aqui no Brasil pioraremos muito. O Caos em que estamos mergulhados agora será pouca coisa comparado ao que viveremos. Não sei exatamente como será, mas vi o que sobrará de nós em 2064. Ruínas. São Paulo em ruínas. Se esse vírus maldito já matou mais 45 milhões de brasileiros nessas quatro décadas, a guerra matará ainda mais.
Naqueles quarenta anos, convivendo com o vírus mutante que, a cada ano, desafiava os esforços dos cientistas em produzir novas vacinas, cada vez mais caras, cada vez mais raras, de difícil acesso pelos países cuja economia ia desabando, cujas instituições iam se desmantelando, cujo abastecimento, tanto de alimentos quanto de energia, ia minguando, o mundo muito empobrecera. 45 milhões de mortos, apenas no Brasil, pela pandemia, e mais um número muito alto de mortes por doenças que ressurgiam aos montes, por subnutrição, por falta de assistência médica adequada, pelo espectro da miséria que corria solta pelo planeta. E, por fim, pelas muitas guerras, desorganizadas e cruéis, que pipocavam aqui e ali e mal se sustentavam, os exércitos também decadentes e desorganizados.
Quando, em 2062, a guerra chegou ao Brasil, Vitória e Diana se perguntaram se a demência de Helena era também premonitória ou se ela realmente soubera de tudo isso por ter viajado no tempo.
Essas eram as lembranças de Diana. Mas sabia que aquela avó que estava ali com ela, agora, não tinha essas mesmas lembranças. Afinal, saíra de 2021 direto para 2108 e, de lá, para esse momento em 2064.
Diana levou Helena e a bebê para o restaurante do Castelo – onde sua tropa jantava – e pediu licença ao seu superior para oferecer uma refeição à essa tia (como então a apresentou) e sua pequena filha que tinham vindo procura-la por, naquele momento, não terem onde morar e muito menos o que comer.
Os oficiais superiores amontoavam-se nos aposentos do andar de cima do Castelo, onde mantinham também sua Central de Operações. As salas do andar de baixo, assim como o enorme salão de festas tinham sido dividas por biombos, onde o estavam os alojamentos da tropa, o restaurante, a enfermaria e os chuveiros. Mas onde antes funcionavam o ginásio e a piscina coberta, havia vários alojamentos para refugiados e Diana foi autorizada a instalar lá sua avó e sua mãe bebê, que passavam agora por familiares seus. Naquela noite, porém, jantaram juntas, no restaurante dos miliares.
A noite de primavera estava quente e estrelada e Diana e suas visitantes do Tempo, depois do minguado jantar, foram sentar-se num dos quiosques à beira da represa. Foi ali que Diana contou à Helena toda a história dos 43 anos que a separavam do momento em que partira, no corredor das árvores, com sua bebê.
Helena olhava para aquela jovem militar, em perfeita forma física, parecendo sinceramente feliz por ter encontrado, uma avó jovem e que nem poderia desconfiar da existência dela. Alguma coisa, porém, estava incomodando muito a essa avó. Por mais que tentasse sentir algo pela moça que dizia ser sua neta, não sentia. Nem mesmo estava acreditando que aquela morena, tão diferente de sua filha Vitória e de suas antepassadas, todas de pele e olhos claros, fosse mesmo a filha de sua filha. Diana leu a incredulidade nos olhos de Helena: -- Vovó, você não está acreditando em nada disso... eu percebo. Mas, veja, esse é o seu Castelo em 2064. Quase tudo no entorno está em ruínas, muito diferente do que você deixou em 2021, muito diferente do que você encontrou em 2108.
Helena suspirou: -- Nem você, cara Diana, parece ser a filha da Vitória, que agora é apenas o meu bebê. Você não tem os traços da nossa família – exceto talvez pelos olhos que lembram os de meu falecido marido – e, para ser sincera, não sinto absolutamente nenhum laço afetivo, o que deveria naturalmente nos unir.
-- Mas, vovó – replicou Diana – eu sou filha do óvulo de sua filha com o espermatozoide de um banco de esperma, anônimo, completamente desconhecido. Você pode nada sentir agora, que está fora de seu tempo real, por mim. Mas sempre me amou, desde que eu era apenas uma bebê.
Helena balançou a cabeça, incrédula: -- Desculpe-me – disse com um suspiro – mas este tempo não está certo. Isso deve ser uma daqueles “bolhas” de que falava George Meyer, um futuro alternativo que poderá ou não existir, e estou certa de que não existirá. Tudo o que eu quero agora é voltar, com minha filhinha, para 2021, para o meu tempo real, continuar a minha vida, seguir com ela, ainda de luto pela perda do meu grande amor...
-- Ele não morreu – disse Diana.—Você ainda não sabe disso porque saiu de 2021 antes de descobrir que, na verdade, meu avô continuava vivo.
-- O que é isso, menina? Eu própria fui ao enterro dele, num dia de muito frio e chuva em São Paulo, o dia mais triste da minha vida. Eu vi o caixão...
-- Aí é que está! – interrompeu Diana – você viu um caixão que, supostamente, abrigava o corpo de meu avô Jorge, só que, na extrema confusão que reinava nos hospitais naquele momento da Pandemia, foi enterrado como sendo Jorge Bello, mas não era. Quando Jorge teve alta, recebeu um prontuário médico com o nome de João Carlos Gonzaga. Reclamou. Falou do engano, afinal ele não era esse. O imbróglio todo levou meses para se resolver. A família do outro reconheceu que o vovô não era ele. Checaram os dnas dos dois, mas o que fôra enterrado como sendo Jorge tampouco era João. E não podiam exumar o corpo, era muito arriscado. Depois vieram as confusões burocráticas, mas, enquanto as resolvia em cartórios e órgãos do governo que, naquela época, funcionavam mal e porcamente de maneira virtual, o vovô foi abrigado num alojamento da Prefeitura, para indigentes, e muitos duvidavam da história dele, até que ele fugiu e voltou para casa. Você, Helena, chegara havia poucos meses de sua viagem pelo Tempo e desmaiou quando abriu a porta e viu o que pensava ser o fantasma do seu marido morto... – aqui Diana teve que rir – Essa história virou uma lenda, anedotária, em nossa família. Ele acabou morrendo, muitos anos depois, de causas naturais, mas acho que você não quer saber quando e como isso aconteceu...
-- Não! – disse Helena, assustada – Isso não pode ser verdade. Logo depois que Vitória nasceu recebi o comunicado da morte dele. Passaram-se alguns meses, antes que eu iniciasse essa viagem estúpida pelo Tempo. Por que não teria voltado ele para casa antes disso? Mesmo que oficialmente morto...
-- O problema foi exatamente esse – interrompeu novamente Diana – Ele estava oficialmente morto e as autoridades acreditavam que ele poderia não ser ele, que poderia estar desejando ter uma falsa identidade para encobrir sabe Deus que passado, e não o deixavam sair do abrigo para onde o transferiram. Ninguém, nos órgãos oficiais, levava a história muito a sério e tinham coisas mais importantes para resolver. Por isso passaram-se alguns meses até que ele conseguisse escapar do abrigo e voltar – a pé, da Mooca até o Brooklin – para a casa de vocês.
-- Meu Deus... Ele está vivo! – exclamou Helena – Ele está vivo lá, em 2021, e quando eu voltar...
-- Vai reencontrá-lo e terão uma vida feliz, vocês dois e a minha mãe, esse bebê lindo, Vitória, que, afinal, não crescerá sem um pai.
Capítulo 11 – O Tempo que Não Existiu
Nos dias que se seguiram, Helena viveu um turbilhão de emoções. Perguntava-se, afinal, qual seria o propósito de tudo aquilo, daquelas absurdas viagens pelo Tempo. A revelação de que encontraria ainda o marido que ela julgara morto muito a perturbara. E um detalhe, na história contada por Diana, não batia, não tinha sentido. Se ela, ao voltar a 2021, então sabendo que Jorge não estava morto, por que desmaiaria de susto ao vê-lo retornar?
Viu-se subitamente muito magra porque, além da parca comida disponível naquele alojamento militar que era agora o Castelo, passava os dias inteiros caminhando pelo corredor das árvores, sempre empurrando o carrinho de Vitória, na esperança de que surgisse a névoa que poderia leva-la de volta a 2021. E se não levasse? – angustiava-se – E se fosse parar em outro tempo qualquer?
Em poucos momentos podia estar com Diana, já que esta tinha que cumprir suas obrigações da vida militar.
Nem pôde despedir-se dela porque, no sétimo dia desde a sua chegada, uma névoa baixou e a levou de volta – finalmente!
Quando a névoa se dissipou ela reconheceu a paisagem familiar do ano em que partira. Aliás, imaginava, do momento exato em que partira.
Ainda atordoada, saiu às pressas do Castelo, só pensava em voltar para casa. Reencontraria Jorge! Mas não sabia exatamente quando. Esse detalhe aquela suposta neta não lhe contara. “Suposta neta” era como ela se referia à Diana em seus pensamentos mais íntimos. Não pudera, por nem um minuto, acreditar que aquela moça, tão fisicamente diferente de toda a sua família, fosse de fato sua descendente. Tinha sido mais fácil acreditar que Douglas, em 2108, fosse um deles, afinal ele era a cara de Jorge!
Entretida por esses pensamentos, foi apenas quando cruzou a portaria do clube que percebeu que todas as pessoas ao seu redor não estavam usando máscaras. O estacionamento, lotado, sob as centenárias (e poucas!) árvores que restavam do que antes – na subida da avenida Atlântida até a portaria do Castelo – era um imenso bosque. Helena pensou que quando parara seu carro ali, quase não havia ninguém. Alguma coisa – e ela não sabia exatamente o que – parecia diferente... Seu carro também lhe pareceu outro, num tom de cinza ligeiramente mais escuro do que se lembrava. Estava estacionado junto ao muro que separava aquele terreno da casa vizinha. Abriu o veículo e quando foi colocar Vitória na cadeirinha dos bancos de trás... essa era azul! Mas Helena poderia jurar que comprara a amarela...
O caminho para casa também estava muito estranho! Trânsito pesado, ninguém, dentro dos carros ou nas calçadas ou nos restaurantes (lotados) à beira da represa, com suas mesas externas, usava máscara. Não. Parecia o cenário pré-pandemia... Teria ela voltado para algum ano anterior? Parou num semáforo vermelho. Um jovem bateu com os dedos em nó no vidro do carro dela, era um ambulante, vendendo pequenas garrafas d’água, ela abriu a janela, tirou da bolsa uma nota, pegou a garrafa e perguntou a ele: -- Que dia é hoje?
-- Domingo, moça! 21 de fevereiro de 2021!
Estava certo. Era o dia em que ela partira, pela névoa entre as árvores do Castelo, para o futuro. Mas agora... que espécie de presente era esse? Onde estavam as máscaras? O distanciamento social? As restrições nos locais públicos?
Quando abriu a porta do seu apartamento e colocou o carrinho de Vitória para dentro, levou um susto enorme! Havia alguém dormindo no sofá da sala. Era Jorge! Jorge? Como seria possível? Ele acordou e meio sonolento disse: -- Meu amor, você demorou hoje no Castelo. O que andou fazendo por lá?
Ela atirou-se nos braços do marido. Jorge estava ali, vivo! Não era possível, mas ela só queria afogar-se nos braços dele. Lágrimas inundaram lhe a face.
Ele a afastou delicadamente: -- Maria, o que houve, querida? Algum problema?
-- Maria? – perguntou ela, ainda em choque – Você só me chama de Helena!
-- Não, meu bem – disse ele com um sorriso e acariciando os cabelos dela – Quando não te chamo de Maria Helena, sempre te chamo de Maria.
Ela já sabia então que voltara para um passado alternativo. A cabeça rodava. Sem dúvida, precisaria de ajuda. Disse:
-- Estou bem cansada, meu amor. Vou chamar a Sofia para cuidar da Vitória, quero pedir um jantar só para nós dois, temos muito a conversar.
-- Sofia? – perguntou ele – Não seria a Sandra, a baby-sitter?
-- Sim – respondeu, pensando ter certeza de que a moça se chamava Sofia, pelo menos no outro presente, o outro do qual partira em outro 21 de fevereiro de 2021.
Tirou o celular do bolso e acessou o what’s app. Não havia ninguém de nome Sofia. Mas estava lá: Sandra, baby-sitter. Chamou-a.
Jorge seguiu-a até o quarto da filha, onde Helena, ou Maria, a colocou no berço. Sofia, ou Sandra, se encarregaria de dar-lhe um bom banho, alimenta-la e coloca-a para dormir. Aliás, a bebê agora dormia, tranquilamente.
--Você não vai amamenta-la agora? – perguntou Jorge, com a voz carinhosa – Você sempre a amamenta nesse horário.
Amamentá-la? Seu leite secara, logo depois do parto. Pensando nisso, sentiu que, de uma das suas mamas, escorria algum líquido. Nesse presente alternativo, sem dúvida, ela amamentava normalmente a pequena Vitória.
-- Jorge – disse com a voz cansada e trêmula – Eu estou muito confusa. Não estou reconhecendo essa realidade, esse mundo. Preciso conversar com você. Vamos jantar, tomar um vinho. Por favor, ponha a mesa para nós, peça o jantar do dia no restaurante da padaria aí ao lado, vou tomar um banho enquanto isso.
-- Sim – respondeu ele – eu vou lá buscar. Volto já.
Maria Helena entendeu que, nessa nova realidade, não existiam as entregas, tão comuns depois da pandemia, porque, pelo jeito, também não existia pandemia...
Se, por um lado, estava feliz em ter Jorge de volta, por outro, perguntava-se se estava, novamente, numa daquelas “bolhas” do Tempo, tempos inexistentes, e, portanto, acabaria novamente indo embora daquela “realidade” de agora. Estava confusa, emocionada, perturbada, desesperada.
À mesa, depois do brinde, perguntou a Jorge se ele se lembrava da velha lenda da família dela sobre viagens no tempo pelo corredor do Castelo. Ele se lembrava mas, claro, não acreditava. Ele também lera “Um Castelo Além do Tempo” e conhecia as teorias sobre as bolhas no Tempo, a história toda, da viagem de Susana às origens do Castelo em 1910, enfim, tudo.
Então ela começou a falar. Falou da pandemia, da suposta morte dele por COVID-19, de seu desespero, de sua tristeza, de sua solidão e de como ela e Vitória tinham sido transportadas para o futuro. Ele a escutava, um misto de horror e surpresa nos olhos. Em dado momento ela disse:
-- E a situação toda se agravou bastante porque o nosso presidente Baldonaro insistia em negar a gravidade da pandemia e demorou muito a comprar e liberar as primeiras vacinas...
-- Presidente Baldonaro? – espantou-se ele – Que eu saiba existe um Jesus Baldonaro no Congresso, deputado federal do Baixo Clero da câmara, um sujeito retrógado, atrasado mesmo...
-- Então... – respondeu ela atônita – Ele foi eleito presidente em 2018, fazendo-se passar por honesto e íntegro, em contraposição aos desmandos do PT, à corrupção atribuída ao partido, enganou a todos nas redes sociais... E Lelo estava preso no sul do país, vítima da enorme armação da Operação Limpa Rápido e daquele juiz vendilhão...
-- Maria – disse ele – você está muito confusa, querida. Nunca ouvi falar de nada disso! Em 2018 elegemos novamente o nosso Lelo, o melhor presidente que o Brasil já teve e agora, quase três anos depois, só temos visto crescimento e felicidade no país. A nossa inflação baixou para 1,5% ao ano, eliminou-se a fome, expandiu-se a educação básica, endureceu-se o combate ao desmatamento e às emissões de carbono e Lelo é, como sempre o foi, aclamado no Exterior e aqui mesmo como o grande estadista que é...
-- Ah... Esse é o mundo dos meus sonhos! – exclamou ela – Agora percebo claramente que voltei para um presente que apenas eu desejava, que não existe de fato, que é mais uma bolha, mais um sonho, mais uma ilusão...
Jorge levantou-se e foi até ela. A fez levantar-se da mesa, deu-lhe um beijo na boca e disse: -- Não. Isto não é um sonho. É a realidade. Eu não morri dessa tal co... co o que mesmo, 19? Estamos juntos e felizes. O seu sonho foi o resto...
-- Eu gostaria que você estivesse certo. Mas não. Isso é um sonho. Deixe-me tentar contar-lhe mais, deixe-me desabafar!
Ele voltou ao seu lugar à mesa e ela continuou a contar-lhe o que vivera em 2108 e em 2064.
Do que, afinal, estaria falando a sua mulher? – perguntou-se Jorge. Teria mesmo viajado pelo Tempo? Mas e o presente? Que história maluca seria aquela de um mundo dominado por um novo corona vírus que desafiava toda a estabilidade de todos os países? Como seria possível que um simples vírus desafiasse a ciência, que nem mesmo vacinas, produzidas em tempo absolutamente recorde, pudessem deter as muitas mutações desse vírus? Aquilo era absolutamente inimaginável! Jorge temia pela sanidade mental da companheira mas, ao mesmo tempo, as histórias que ela contava tinham uma coerência que não se encontraria numa mente perturbada.
Quando Maria Helena terminou sua narrativa já era madrugada. Jorge estava perplexo. Não sabia a que atribuir tamanha confusão mental de sua esposa. Um forte desejo o invadiu e ele resolveu que pensaria sobre tudo isso no dia seguinte. Agora só queria ter Maria em seus braços.
Foram para a cama e tiveram uma das noites mais felizes de sua vida. Uma Maria Helena gulosa, quente, vibrante, correspondendo ao desejo dele, um desejo que emergia como se, há anos, estivessem separados.
Manhã seguinte, Helena acordou antes dele. Sabia que estava em meio a um sonho, uma bolha temporal. Decidida, saiu. Sem levar Vitória. Pegou o seu carro (com aquela cadeirinha azul em vez de amarela) e foi direto para o Castelo, sem acordar Jorge ou Vitória, sem tomar café, sem banho, sem nada.
O clube estava fechado. Afinal, era segunda feira. Subornou o porteiro, dizendo que esquecera os documentos no armário do vestiário e iria apenas pega-los. Sabia que a névoa a esperava.
E a névoa a levou, de novo, a 2108.
Capítulo 12 – Outro Futuro
Quando a nevoa se dissipou, Helena viu outra paisagem, no entorno da represa, que vira em outros tempos em que estivera. A diferença é que agora, em vez de um esplendor de verde, nas margens da Guarabitinga, havia ruínas e muito pó e terra vermelha, grandes barrancos. O Guardião estava ao seu lado, mas já não era aquele velho saudável e forte, mas sim um senhorzinho decrépito, vestido em trapos.
-- Orlando – disse ela – o que houve com você?
-- Quem é você? – perguntou ele – Como sabe meu nome?
-- Sou Helena. A viajante do Tempo. Sua amiga.
-- Desculpe-me, moça, mas eu não a conheço.
-- Como assim? Não estamos no Castelo, em 2108?
-- Sim – respondeu ele – estamos em 2108, no que restou do que, um dia, foi o Castelo.
Então Helena percebeu que, apesar de estarem naquele mesmo corredor das árvores, onde ela vira pinheiros acompanhados por exuberantes azaleias e com os troncos das árvores coalhados de orquídeas em flor, agora restavam apenas pinheiros semidestruídos e ruínas do que, um dia fôra o seu amado Castelo.
-- Venha – disse ele, subitamente alarmado – precisamos subir a rampa e nos proteger nas ruínas, está vindo aí mais um tsunami do ar...venha, depressa!
-- O que é um tsunami do ar? – perguntou ela – tentando acompanhar os passos do Orlando Guardião, que a arrastava, puxando-a pela mão, em direção à porta principal do Castelo, onde os salões pareciam estar intactos e onde ele certamente pretendia que se abrigassem.
Lá dentro, protegidos, de uma louca onda de vento, com enormes pingos d’água, que parecia fazer tremer as paredes, ele disse: -- Se você é mesmo uma dessas viajantes do tempo que podem aparecer no meio do corredor das árvores, veio do passado? Não sabe o que é um tsunami do ar?
-- Não tinha a menor ideia, mas agora acho que estou percebendo...—fitando assustada as gotas que se espalhavam pelas janelas, deixando rastros, atingindo os vidros na horizontal, adquirindo a forma de grandes espermatozoides.
-- Sempre existiram rios no céu – começou ele a explicar – correntes de umidade que traziam, por exemplo, da Floresta Amazônica, para cá, nuvens que equilibravam a secura do ar da cidade. No entanto, com o extremo desequilíbrio ecológico e climático que vemos tendo no último século, essas nuvens se tornaram verdadeiros tsunamis e castigam todo e qualquer ambiente. Destroem lavouras, arrastam até construções. Teremos sorte se esse tsunami de agora não levar também o resto das paredes do Castelo que ora nos protegem.
-- Mas, Guardião, quando estive nesse tempo, da outra vez, a Terra tinha alcançado o equilíbrio ecológico!
-- Você sonhou! – respondeu ele – Estamos hoje vivendo as severíssimas consequências da irresponsabilidade dos nossos antepassados. O clima é agora o nosso grande inimigo.
-- Mas o que houve? – perguntou ela – Quando eu vim a 2108 todo o entorno do Castelo era verde, o corredor das árvores coalhado de flores, o ar puro e vocês lutavam contra o despovoamento da Terra...
Ele riu: -- Despovoamento? Hoje somos mais de 30 bilhões de seres humanos que lutam entre si para ter onde morar, o que comer, num planeta arrasado pelo desequilíbrio ecológico.
-- Mas e a esterilidade causada pela pandemia dos anos 2020 a 2040?
-- Não sei de nenhuma pandemia não, moça. Nem de esterilidade. Pelo contrário. Os governos mundiais lutaram para tentar conter o enorme crescimento demográfico do planeta nas últimas 7 décadas. Em vão. Uniram-se também, por fim, tarde demais, para tentar conter também o avanço da devastação e dos desastres causados pelo enorme recrudescer do Aquecimento Global. Nos últimos 50 anos é só o que eles tem conseguido fazer. A ciência, a tecnologia, nada avançou além da década de 2050. Tudo foi se estagnando. Sem dinheiro para a educação. Sem verbas para pesquisas. Sem outra prioridade senão tentar dar de comer às suas populações, cada vez mais pobres, cada vez mais carentes de tudo, do conhecimento à própria subsistência...
-- E por que, então – perguntou Maria Helena – estamos só nós dois aqui nesses vastos 3 alqueires do Castelo, se há superpopulação em toda a parte?
-- Porque eu sou o guardião dessa base militar. Os soldados em suas tropas e com seus comandantes, todos saíram para tentar colocar proteções e barreiras nas nossas muitas casas, que são residências coletivas, lotadas de gente, essas casas que se amontoam, muitas em ruínas, aqui no entorno. Os de alta patente estão lá em cima – disse apontando para o teto da sala e referindo-se ao segundo andar, agora sustentado e calçado por grandes troncos de madeira – debruçados em seus computadores, tentando criar estratégias para conter o próximo tsunami que a meteorologia previu para daqui a dois dias apenas. Essas malditas tempestades horizontais estão vindo a cada vez com maior frequência...
Maria Helena compreendeu que estava no futuro correspondente ao mundo do qual acabara de sair. Um mundo que não passara pela Pandemia da COVID, um mundo que continuara, por isso mesmo, com seu crescimento desordenado e insensível às necessidades da própria Terra. Aquele 2021 não pandêmico teria sido um tempo feliz para ela, para Jorge e para Vitória, mas que causaria a grande infelicidade do planeta: poluição desmedida, crescimento desordenado e a consequente explosão da miséria, de carência de recursos daquele orbe que seria então esgotado por tão estupidamente explorado, a grande lata de lixo de seres sem consciência, egoístas, imediatistas, seres que julgavam ter vindo à vida a passeio, para seu próprio gáudio.
Irresponsáveis! – pensou então – É o que temos sido! Completamente irresponsáveis!
Olhou, penalizada, para aquele Guardião esquelético, com a roupa puída, quase sem dentes na boca... Aquele mesmo homem que, no outro futuro 2108, era um sábio, um velho forte e sadio, bonito mesmo, vivendo num Castelo cercado de verde e de ar puro.
Maria Helena compreendeu, num repente, que preferiria mil vezes o mundo dominado por antiemotivos do que pela miséria.
Amansou a voz para dizer ao velho, cheia de ternura: -- Estamos num sonho. Esse não é o verdadeiro você. Você é forte, sábio e habita um Castelo cercado pela natureza regenerada. Vou embora agora. Espero voltar para o meu Tempo verdadeiro, aquele que gerará um futuro muito melhor do que esse. Aquele que sofrerá muito por uma estúpida pandemia de um novo e estúpido corona vírus. Mas que aprenderá, por essa provação, que é preciso rever cada passo, cada atitude de cada um de nós com relação a todos os nossos irmãos e à Natureza e ao futuro do nosso Lar, a Terra.
-- Você fala bonito, moça, mas não estou entendendo nada do que diz! – respondeu o Guardião.
Foi então que as palavras de Augustine, sua mãe, afloraram às lembranças de Maria Helena: -- Cuidado – dissera ela, com sua voz agonizante – minha filha. Se tentar viajar pelo Portal, dificilmente conseguirá. Não é assim que acontece. Você precisará estar caminhando entre as árvores da rampa que desce da sede até a praia e, quase sem querer, sentir o sincero desejo de recuar no tempo...
-- Sim, mãe querida – respondeu ela em pensamento – Agora compreendo. Foi fácil fazer o Portal do Tempo se abrir quando tive esse sincero desejo de viajar por ele. Hoje – ou há 87 anos, naquele 2021 inexistente – vim decidida a fazer isso. Aquele 2021, com Jorge vivo e feliz, podia ser maravilhoso, mas era apenas mais um sonho, mais uma bolha... Vou voltar agora. E será fácil, sim, porque tenho o mais profundo desejo de voltar à realidade, mesmo separada do meu amor, mesmo sem saber se ele está morto – como acreditava – ou não, como afirmava aquela minha neta que pode muito bem nunca vir a existir, ou nunca ter existido...
-- Adeus, Orlando – disse ela.
-- Moça, você enlouqueceu! A onda gigante ainda está agindo lá fora, você não pode sair assim!
Maria Helena enfrentou a força do vento com a mesma determinação com que, dali para a frente, passaria a enfrentar a realidade política e social do seu verdadeiro tempo presente.
Capítulo 13 – De Volta
Suspirou de alívio. Ali estava a paisagem conhecida de 2021, ali estava sua bebê Vitória no carrinho, poucas pessoas circulando pelo clube, todas usando máscaras. Às margens da represa do Guarabitinga, com muito mais concreto armado do que verde, enormes edifícios envidraçados lá pra bandas da barragem e loteamentos simétricos na entrada do Terceiro Lago, casinhas iguais, ruas iguais e muitos carros estacionados. Apalpou as mamas. Secas. Sim, era afinal o seu mundo e nele certamente ela estava só com Vitória. E sem leite para a filha.
Percebeu o sol refletido naqueles enormes e envidraçados prédios às margens da barragem. Multiplicavam a luz e o calor. Assim como a montanha de veículos, acessíveis nos dias de hoje, à maioria do povo, multiplicavam a poluição, embora o pesado, nesse caso, fossem mesmo as grandes e antiquadas indústrias e não os carros dos comuns mortais.
Era verão. O dia claro, o céu sem nuvens. Desceu lentamente a ladeira das árvores, agora não sentia nenhum medo de que aquele túnel do tempo as carregasse para outras épocas. Sabia enfim que o controle estava em suas mãos, em seu desejo, como tão bem explicara Augustine, antes de morrer, e ela não prestara a devida atenção.
Maria Helena crescera do Castelo e ouvira, inúmeras vezes, sua mãe falar sobre as mudanças do clima na cidade. Principalmente depois dos aos 1990, quando começou a fazer calor em São Paulo.
-- Antes da década de 1990 – dizia Augustine – São Paulo tinha um clima eternamente úmido e frio. E fôra assim, desde sempre, desde a fundação da cidade em 1554. Estava tudo lá, registrado, na velha coleção de livros que contava a história da cidade, publicados em 1954, quando do festejado IV Centenário da capital do Estado. Rezávamos por um dia de sol – dizia ela-- aqui no Castelo, quando pudéssemos nadar e, enfim, usufruir de tudo o que o clube nos podia proporcionar. Ainda nos anos 1980, era assim. Sempre frio, sempre garoando, mesmo que estivéssemos no verão. Naquele tempo, os prédios não haviam chegado até às margens da barragem da represa. Do lado oposto, poucas grandes casas e mansões de veraneio dos ricos. Nada de bairros populares do outro lado, para além da Ilha das Cobras. A cidade cresceu também para a zona da represa. O que era um clube de campo, viu-se cercado por um bairro residencial, as árvores desapareceram no caminho que traz ao clube. É alto o preço do que alguns chamam de progresso. Para mim – completava ela – esse tipo de progresso é apenas involução. Tem gente demais nesse mundo e todos são cada vez mais exigentes e individualistas. Não percebem que isso, o que eles chamam de progresso, acabará por esgotar os recursos naturais da Terra. O clima está mudando em todo o mundo e esses, que contemplam apenas seus próprios umbigos, fingem nada perceber.
Era sábia sua mãe, pensava Helena ao sentar-se numa das mesas da praia, no Bar da Náutica, para tomar uma cerveja e dar à Vitória uma mamadeira de água mineral. A bebê teria que estar com sede, naquele calorão de mais de 30º graus. No entanto, refletia ela, em apenas um ano de Pandemia quando todos os países tiveram que praticar o isolamento social, diminuir drasticamente os trânsito de veículos, por terra, mar e ar, reduzir a atividade frenética de tantas indústrias, o clima da terra mostrava já algumas melhoras. A poluição recuara. Em São Paulo mesmo, o verão não estava sendo tão insuportável como fôra nos últimos anos, extremamente seco e quente. Sim, era mais fácil do que parecia escapar de um futuro feito de tsunamis aéreos e de grandes desastres “naturais”.
Contemplou longamente o belo pôr do sol que tingia de vermelhos e alaranjados as águas poluídas da represa do Guarabitinga. Depois subiu pelo gramado até alcançar a portaria e encontrou seu carro, cinza-claro, com a cadeirinha amarela de Vitória no bancos traseiro, parado sob uma das poucas árvores que restavam por ali, na área destinada ao estacionamento dos sócios. Dirigiu sem trânsito congestionado até seu apartamento e abriu a porta de casa sabendo que seu amado Jorge não estaria ali e que talvez nunca mais estivesse.
Antes de desligar-se do elegante escritório de advocacia onde trabalhava na Rua Joaquim Eugênio de Lima e que se dedicava às causas, nem sempre nobres, movidas pelos ricos, usou os recursos que tinha então para tentar descobrir se Jorge ainda estava vivo e lutando para provar sua identidade, que teria sido confundida no hospital com a de alguém que se chamava João Carlos Gonzaga. Mas não encontrou registro algum de nada disso.
Em maio, menos de três meses depois de sua “volta” ao presente real, Maria Helena trocou o gordo rendimento de seu trabalho no escritório por um não tão robusto salário como diretora jurídica de uma ONG ecológica, a Terra Azul. Começou a escrever em blogs e sites, um deles de um grande e tradicional jornal paulistano, sobre a necessidade de se frear as mudanças climáticas do planeta, mesmo que o preço disso fosse uma retração econômica.
Estudou – e nunca parou de estudar – tudo o que se sabia sobre efeito estufa, aquecimento global, destruição da camada de ozônio, derretimento das calotas polares e consequente ameaça às cidades costeiras.
Entendeu porque a China era o maior país poluidor do mundo, duas vezes na frente dos segundo colocado, os EUA, com quase o dobro da quantidade de emissão de carbono na atmosfera. Percebeu que os políticos usavam medidas paliativas, como restringir a circulação de veículos pelas ruas, quando os maiores vilões do estrago eram as grandes corporações internacionais. Parou de comer carne bovina ao compreender que o gás metano, outro grande destruidor, vinha das enormes criações de gado que, por exemplo, no Brasil, estavam nas últimas duas décadas enriquecendo brutalmente o chamado agronegócio.
“Gente demais no mundo” – parecia ouvir então a voz de sua mãe.
Não importava a dimensão da atitude de cada um de nós – pensava ela. Tentar o lixo zero na própria casa, adotar o transporte público e a bicicleta, estar atento às próprias compras, informar-se sobre as empresas cuja filosofia fosse a da sustentabilidade e dar prioridade aos produtos destas. Se cada um fizesse a sua pequena parte já seria muito.
Então fez um acordo com o condomínio onde morava e aproveitou cada centímetro de jardim para plantar mais e mais árvores frutíferas que, por sua vez, fariam com que bandos de pássaros retornassem. Incentivou os condomínios do bairro a fazer o mesmo. Passava os sábados distribuindo, gratuitamente, mudas de árvores e plantas aos frequentadores dos parques da cidade.
Incrementou o trabalho da ONG, instituindo novas ações em prol do equilíbrio ecológico e criando novos encontros virtuais, em lives semanais, para debater as possíveis soluções para salvar o planeta, não apenas do Corona Vírus, mas também da destruição, do egoísmo, do individualismo e sua consequente doença, a solidão.
No começo de novembro de 2021, Maria Helena estava na COP26, a conferência internacional sobre o Clima, da ONU, que tivera seu embrião na Rio-92, quase trinta anos antes. O Brasil estava na contramão agora por ter um governo federal negacionista e não representado na decisiva e importante reunião realizada em Glasgow, na Escócia.
Helena tinha a certeza, assim, de que nenhum daqueles futuros para os quais viajara, aconteceria. Tinha a certeza de que não haveria aquela neta Diana a espera-la em 2064 e nenhuma das duas realidades de 2108, a de Regeneração e Antiemotivos e a outra, de miséria, superpopulação e super poluição, seriam algum futuro possível.
Sabia que o futuro estava em suas mãos, estava na mão de todos os seres humanos e que, vencida a pandemia, o mundo seria muito diferente do que fôra até então. Cabia a aqueles que tinham alguma consciência do perigo a que estavam expostos pela desmedida e contínua exploração dos recursos naturais da Terra, cabia a estes o dever de lutar por um mundo muito, muito mais sustentável.
Admirou-se com tudo o que viu na COP26. Com o discurso inflamado do Primeiro-Ministro Britânico – um homem de direita – que alertava para o Agora. O momento é esse – dizia ele. Alguma coisa teria que ser feita a partir desse momento para impedir a condenação das novas gerações a um planeta não mais habitável, destruído, hostil. E, no Brasil, a direita pensava que a mentalidade ecológica era privilégio da esquerda...
Naquela semana passada na Escócia, Helena ouviu inúmeros líderes mundiais, conscientes da necessidade do agir imediatamente. Conviveu com pessoas lúcidas e bem fundamentados em suas ideias, em suas metas.
Tudo isso a fôra convencendo que os momentos em que vivera em bolhas do Tempo de um futuro alternativo não passavam de sonhos, de alertas para as trágicas possibilidades que este presente, 2021, traria ao mundo, caso nenhuma drástica providência fosse realmente tomada com relação ao cessar da agressão do ser humano à Natureza, à sua Mãe Terra.
O Futuro não existe – concluía ela. Nós é que temos que construí-lo. E o faremos com a dignidade que nossos descendentes esperariam de nós. Como? Pela luta política. Pela conscientização das massas. Por uma vontade que não esmoreceria ante qualquer derrota que sofressem ao longo do processo.
Uma grande alegria a invadiu. Sua vida, antes tão amorfa e previsível, ganhara uma nova dimensão e tinha, sim, agora, um sentido.
Na noite em que retornou ao Brasil, Sofia, a baby-sitter que se tornara babá de Vitória por uma semana, enquanto Helena viajara, abriu-lhe a porta com um enorme sorriso e disse simplesmente:
-- Não se assuste, Dona Maria Helena. Mas tem mais alguém aqui em casa.
-- Quem? – perguntou ela, já apreensiva.
-- Seu marido. É uma longa e complicada história, mas ele não morreu de COVID, afinal. Está lá agora, tomando banho e esperando que a senhora chegue.
Helena não desmaiou. Apenas saiu correndo em direção ao banheiro.
FIM 1 de novembro de 2021.
Cronologia dos Personagens do Castelo:
Família de Helen Zom Krauss: 1864 – nascem Augusta e Helen, gêmeas filhas de Herman Waltman fora do casamento. – Augusta é adotada pela esposa de Waltman e a mãe das gêmeas se casa com Zom, que dá nome à Helen. 1890 – nasce Maria Júlia Zom Krauss, filha de Helen Zom e Wimer Krauss 1914 – Viúva, Helen Zom Krauss emigra com primos e sua filha para o Brasil. 1924 – Maria Júlia torna-se mãe solteira, aos 34 anos: Monique Zom Krauss 1948 – Monique casa-se com seu primo irmão William Krausz 1951 – Nasce Augustine Zom Krauss-Krauss 1975 – Augustine se casa com Otto Smith 1977 – Nasce Maria Helena Zom-Krauss Smith 2017 – Maria Helena, já órfã de pai, vê sua mãe, Augustine, morrer aos 66 anos de idade 2019 – Maria Helena casa-se com Jorge Bello 2020 – Nasce Vitória Smith Bello 2021 – Maria Helena viaja pelo Futuro.
Famílias de Susana Fomm de Vasconcellos Expedito Gaetano e Leopoldo Alfredo Meyer-Zetti
1864 – nascem Augusta Meyer e Helen Zom 1882, 17 de julho – Nasce George Meyer, filho de Augusta (morre 1919, 9 de abril) 1890 – Nasce Evelyn, irmã de George Meyer (morre 1952) 1919 – Carmen Fomm de Vasconcellos casa-se com Antonio Expedito 1920 – Nasce Alfredo Jorge Fomm de Vasconcellos Expedito, filho biológico de George Meyer e Carmen Fomm, registrado como filho de Antonio Expedito – o casal tem mais 4 filhos. 1925 – Evelyn Meyer casa-se com Leopoldo Alfredo Zetti 1926 – Nasce Eduardo Meyer Zetti, filho único de Evelyn e Leopoldo 1930 – Morre Antonio Expedito 1948 – Alfredo Fomm de Vasconcellos Expedito casa-se com Wanda Gonçalves 1950 – Eduardo Meyer Zetti casa-se com Inês 1951 – Nasce Isabel Fomm de Vasconcellos Expedito neta de George (oficialmente, de Antonio e Carmen) 1952 – Morrem Evelyn e Augusta Waltman Meyer 1951 – Nasce Alfredo Meyer-Zetti neto de Evelyn 1975 – Isabel casa-se com Mário Gaetano 1975 – Alfredo Meyer-Zetti casa-se com Ângela 1979 – Nasce Leopoldo Alfredo Meyer-Zetti, filho de Alfredo e Ângela Meyer-Zetti 1980 – Nasce Susana Fomm de Vasconcellos Expedito Gaetano, filha de Isabel e Mário 2019 – Susana viaja para o passado.
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