O coração é a raiz da
vontade. O bom comportamento tido por Mário Alves, Vladimir Herzog,
Marcos Arruda, Carlos Eduardo Pires Fleury e outros resultou de um longo
processo de autoeducação, de disciplina, de humildade, que não se deixou
iludir por esse voluntarismo esquerdizante revestido de autossuficiência
em certos militantes que, de tão centrados em si mesmos, quando presos
são os primeiros a entregar os outros.
“Na quarta-feira, fui
acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a
equipe do Capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do
dia anterior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça,
nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite,
quando me serviram a primeira refeição naquelas quarenta e oito horas:
arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha,
ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do
Capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a ‘equipe da
pesada” .../
.../ “Ao chegar à Oban,
fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do Capitão Maurício
passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE
em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos
ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para
que eu ‘confessasse’. Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara.
Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de
pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores,
comandados pelo Capitão Maurício. Davam-me ‘telefones’ [tapas nos
ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei
quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se
reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu
negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas,
prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo
marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um
soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3
x 2,5 m, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão
e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.”.../
.../Na Oban, os militares
procuravam “quebrar” as resistências do preso alternando torturas,
perguntas, ameaças. O medo de sofrer novamente as mesmas dores era, por
vezes, mais pavoroso que as próprias dores. Naquele inferno, não
faltavam os gestos de solidariedade: um copo d’água e um cobertor
significam companheirismo, presença amiga, solidariedade. Saber que
alguém nos apoia é vencer a solidão que nos torna vulneráveis. Por isso,
a percepção, na fé, da presença de Deus em suas vidas tanto encorajava
os primeiros mártires cristãos.
Frei Betto ou Carlos
Alberto Libânio Castro nasceu em Belo Horizonte a 25 de agosto de 1944.
Presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) de sua cidade natal,
mais tarde foi diretor nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica).
Era estudante de jornalismo em São Paulo quando foi preso pela primeira
vez, em 1964. Nesse ano foi para a Ordem dos Dominicanos. Formado,
chegou à chefia de reportagem da "Folha da Tarde", em 1969. Foi
assistente de direção de Zé Celso Martinez Correa e colaborador da
famosa revista "Realidade". Foi novamente preso e sofreu todas as
auguras dos presos políticos de então. Hoje é autor de 54 livros,
publicados no Brasil e no Exterior. Seu livro mais recente é "A Obra do
Artista, uma visão holística do Universo" publicado pela editora José
Olympio. "Batismo de Sangue" teve a sua 14. edição em 2006, pela editora
Rocco.
4. Trechos selecionados do
mais recente livro (ainda inédito)
“O Espelho ou a História
Quase Invisível”
por Isabel Fomm de Vasconcellos
Rene Magritte, 1964, O Filho do
Homem
1964
Fabrizio se orgulhava de dizer que jamais se deixara iludir com as
promessas do ex presidente, o mineiro Juscelino Kubitscheck, de fazer
com que o Brasil crescesse cinquenta anos em cinco. Mesmo Brasília, a
grande cartada política de Juscelino, raciocinava Fabrizio, deveria ter
custado grande parte dos recursos que eram para ser aplicados no
desenvolvimento da nação, que ambicionava crescer tanto... Fabrizio
lembrava-se dos primeiros anos de escola de sua filha Cláudia quando a
menina voltava das aulas toda entusiasmada porque a professora explicara
que o Brasil era o melhor país do mundo: não tinha terremoto, nem
vulcão, nem furacão... E iria crescer cinquenta anos em cinco...
Cláudia também se entusiasmara agora, na adolescência, com o esplendor
da bossa nova, explodindo inclusive fora do país, e com as primeiras
manifestações das lutas por um mundo mais justo, por maior igualdade
social, pelo fim do preconceito de raça, pensamentos que estavam na
infância do ideário que acabaria por caracterizar a década
revolucionária em todo o mundo ocidental.
Fabrizio surpreendia-se, e de fato também se preocupava, com o interesse
da filha pelas questões políticas. Mas acabava sempre conversando
bastante com ela, principalmente à mesa do jantar, sobre todo esse
universo que Antônia agora fazia questão de desconhecer. Isso fazia com
que Antônia se sentisse excluída, como se Fabrizio estivesse lhe
roubando a filha.
Com
ele, Cláudia vira desmoronar a imagem positiva que tinha do governo de
Juscelino. Ele lhe explicara, que além de endividar o país com a
faraônica Brasília, Juscelino levara os louros da implantação da
indústria automobilística quando, de fato, todas as leis que tornaram
possível essa implantação, tinham sido promulgadas no segundo mandato de
Getúlio Vargas e que a maioria das montadoras supostamente trazidas por
Juscelino já estavam há tempo atuando no país. Na verdade, o processo de
industrialização – explicava Fabrizio, atribuído a JK, começara bem
antes dele, com a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional e da Belgo
Mineira, nos anos 1940. E Brasília demoraria muito para se tornar uma
cidade, fora uma despesa imensa, paga com recursos que endividaram o
país, uma realização para inglês ver – afirmava ele -- que nenhum
benefício real trouxera ao povo brasileiro e nem mesmo à elite,
excetuando alguns asseclas de JK, que enriqueceram do dia para a noite.
Cláudia, embora fosse uma menina rica, estudava num colégio estadual.
Naquele tempo era comum que as famílias de posse mandassem seus filhos
para colégios do governo, alguns deles, onde se dizia estar o melhor
ensino do estado. Criada como uma menina da elite, no colégio estadual
aprendera a conviver com outras realidades sociais e econômicas de
alguns de seus colegas menos privilegiados e aprendera também o quanto
era, até então, muito pobre e limitada a sua visão de mundo. Embora, por
influência tanto da avó Júlia como de sua mãe, tivesse crescido com o
gosto pela literatura e pelas artes em geral, confrontada com a dura
realidade da vida de seus colegas mais pobres, Cláudia adquirira uma
nova dimensão de pensamento: A política.
Inteligente e perspicaz, logo estava militando entre as organizações
secundaristas de seu colégio e, não se surpreendeu com o golpe militar
de 1964, quando este aconteceu, porque já discutira inúmeras vezes com
seus colegas de escola e, mais tarde, de faculdade, e também com seu
próprio pai, os rumos que o país estava tomando depois da renúncia de
Jânio Quadros, em 1961, e toda a tumultuada posse de Jango Goulart.
Apesar de setores mais conservadores terem tentado impedir a posse de
Jango e, depois, terem tentado controla-lo através da instalação do
regime parlamentarista, nada poderia deter o ex vice de Jânio e agora
presidente, que, de namoro sério com os comunistas da URSS e da China,
pensava em resolver o problema econômico do Brasil dando um belo calote
em seus credores.
Em
1º de abril de 1964, quando o país amanheceu sob a pesada bota dos
militares golpistas, tomando o café da manhã e ouvindo as notícias no
moderno rádio portátil, pai e filha se entreolharam e disseram, ao mesmo
tempo: “Eu sabia!”
1968
Cláudia sorri à lembrança
de quando ela e seu pai acompanharam, na manhã de 1º de abril de 1964,
pelo rádio, o golpe dos militares. Pai e filha tinham dito ao mesmo
tempo: “Eu sabia”. Mas aquela fora a última vez que tinham
concordado com qualquer coisa na vida. Mesmo assim – reflete
Cláudia—concordado apenas na aparência. O “eu sabia” de
Fabrizio referia-se a revolução que ele esperava e pela qual ansiara, já
que os rumos que Jango Goulart estava dando ao país o desagradavam
profundamente. Fabrizio morria de medo dos comunistas, dos chamados
“lacaios de Moscou”, que – imaginava— trariam apenas mais miséria ao
país, caso instalassem aqui seu governo socialista. Imagine –
costumava dizer – se esses fanáticos assumem o poder no Brasil vão
querer dividir a pouca riqueza do país entre todos e o resultado será
que ficaremos todos miseravelmente pobres. A riqueza do Brasil não dá
para todos. E, pobres, jamais conseguiremos crescer, sem os ricos não
haverá geração de empregos, não haverá progresso. O Brasil estagnará
para sempre na sua condição de subdesenvolvido...
Já o “eu sabia” de
Cláudia era a certeza que ela tivera de que os donos do poder não
permitiriam que os seus sonhos de igualdade e justiça social se
realizassem. A elite brasileira – pensava ela – não quer abrir
mão de alguns privilégios para que mais pessoas tenham acesso a mais
bens de consumo, ignorando que um povo com maior poder de compra gera
mais progresso e mais empregos; a elite não quer o povo educado, bem
alimentado, feliz, porque acredita que para dominar é preciso humilhar e
denegrir, em vez de compreender que o povo bem educado é um povo que
trabalha melhor, que produz mais, que cria mais e, portanto, gera mais
progresso.
Só a educação e uma
distribuição de renda mais justa poderão tirar o Brasil de sua condição
de subdesenvolvido...
– dissera ela tantas vezes.
Mas a verdade é que seus
sonhos de juventude estavam perdendo a guerra.
Durante esses quatro
anos, a Ditadura Militar só endurecera. Aquela vã promessa – em que seu
pai acreditara – dos militares que, depois do golpe e de colocar ordem
na casa, devolveriam o poder aos civis – não passara de mais uma
mentira. Através da decretação de atos institucionais, o governo militar
fora cerceando as liberdades democráticas e ela já ouvira conversas, em
sua casa mesmo, nas recepções que ela preferiria não frequentar, mas
frequentava, que até o final daquele ano, os homens endureceriam ainda
mais, falava-se mesmo em fechamento do congresso e incremento da censura
à imprensa. Muitos dos empresários e políticos que frequentavam as
festas de seus pais e que haviam apoiado o golpe, hoje já se sentiam
traídos e usados pelos militares. Quase nenhum daqueles homens apoiara o
golpe militar para que se instalasse uma ditadura. Ao contrário:
apoiaram para que não se instalasse uma ditadura: a da esquerda. E
agora...
Para Cláudia, jornalista
recém formada, cheia de ideais nobres daquela sua geração (que pregava o
amor em vez da guerra, que não confiava em ninguém com mais de 30 anos,
que sonhava com a igualdade social, o fim dos preconceitos, com um mundo
mais justo) a censura era como um pesadelo. Mesmo ela, que trabalhava
numa moderna revista feminina, sofria com a censura. Seus artigos,
dirigidos a uma nova mulher, viviam sendo riscados de vermelho pelo
editor, considerados “avançados demais”, Pensamentos – dizia ele
– que chocarão as mulheres mais conservadoras, pensamentos para os
quais a mulher brasileira ainda não está preparada.
3. A Dor e a Tortura, Uma
Visão Médica
por Dr. José Luis Zabeu
Ortopedista do Hospital e
Maternidade Celso Pierro da PUC-Campinas
Elifas Andreato, painel
exposto na Câmara dos deputados, Brasilia.
Métodos
de tortura física existem desde o início da história humana, em geral
quando se busca confissões ou delações de adversários ou inimigos. Além
de todos os questionamentos éticos e morais que envolvem esta prática,
há um enfoque científico que a faz algo ainda mais abominável: a dor.
A tortura: uma pessoa
submetida a métodos físicos que provoquem dor, além de toda a pressão
emocional que um momento como este produz, vai, progressivamente,
perdendo seu controle de ideias e ações. Seu cérebro não entende o
motivo de tantos estímulos desagradáveis repetidos, não consegue impedir
que as lesões sejam produzidas, e tudo entra em falência. O cérebro
passa a mandar a pessoa falar o que o torturador quer ouvir, equilíbrio
e ponderação passam a não mais existir. Só resta uma sensação primitiva
de sobrevivência, que faz o torturado ainda ter alguma força para poder
interagir.
Entre os muitos métodos de
inflingir dor, um dos mais ‘populares’ são estímulos aos pés e
tornozelos, como compressão, torção, queimaduras e choques. São regiões
muito sensíveis e que facilmente geram dor insuportável. Diferente de
afogamentos, sufocamentos e outras agressões que podem alterar a
consciência da pessoa, a agressão aos pés geralmente mantém o torturado
lúcido, em extremo sofrimento. E também facilmente se gera o componente
de dor crônica, quando este estímulo de agressão é frequente, intenso,
mais ainda quando gera lesões definitivas nos nervos e articulações.
Em resumo: a dor gerada em
sessões de tortura, além de rebaixar o indivíduo ao menor nível de
dignidade possível, gera consequências por toda a vida: seu corpo tende
a ser mais sensível a estímulos dolorosos, a dor provoca alterações
significativas de comportamento e induz quadros de depressão e
ansiedade, afetando o convívio social de modo permanente. Isto deve ser
lembrado quando se discute punições aos que torturam: seus atos não são
meros momentos de maldade, e sim ações que afligem sofrimento físico e
mental por toda a vida aos que à tortura foram submetidos.
A dor pode ser definida
como uma experiência desagradável ao corpo e ao emocional, causada por
danos físicos e que, quando persistente, pode estar presente mesmo na
ausência de um estímulo nocivo (a chamada ‘dor crônica’).
Sabe-se que a dor é
fundamental para que se sobreviva; ela nos alerta de problemas e nos
motiva a buscar e eliminar causas. Quem ‘percebe’ a dor é um complexo
sistema que se assemelha ao alarme de uma casa: uma cerca elétrica, um
sensor de movimento, quando estimulados, geram sinais que disparam uma
sirene. É o que fazemos quando tocamos a mão em uma chapa quente.
Pequenos filamentos de nervos geram um estímulo elétrico, que é
conduzido até nossa medula, na coluna vertebral, que encaminha esta
informação ao nosso cérebro.
No meio do caminho, já
existe uma resposta, o reflexo de retirdada da mão, mediada pela medula.
No cérebro, ocorre o processamento definitivo da informação e a
definição do que fazer ao longo do tempo: procurar um médico, tomar um
remédio, repousar, etc. É como se a pessoa que está na central de
monitoramento do alarme decida se vai chamar a polícia, avisar o
proprietário ou simplesmente desligar a sirene, entendendo que foi um
alarme falso.
Quando o estímulo de dor é
frequente e repetido, as coisas vão se complicando. A sirene toca a todo
momento, a central de controle das informações vai ficando confusa e
todo este delicado sistema de percepção, condução e interpretação de
estímulos fica comprometido. A dor passa a acontecer mesmo com estímulos
fracos ou até sem qualquer provocação. Chama-se isto de dor crônica.
2.
Um Dia de Abril
por Maria José Silveira
Armando Alves,
1964, sem título
Do
dia 1 de abril de 1964 o que mais me lembro é do rádio tocando
músicas fúnebres. Meu pai, tenso, saindo para o Congresso e o
deixando ligado, na esperança de que escutássemos alguma rara
notícia, ainda que censurada, e minha mãe preocupada atendendo o
telefone que tocava sem parar.
“Os militares tomaram
o poder”, “Jango está foragido”.
O ambiente era pesado,
e tão fúnebre quanto a música das rádios.
Dias assim parecem
perturbar o próprio ar de onde estamos. Posso estar exagerando, mas
acho que não: sirenes ao longe, tanques passando nas ruas desertas
são coisas que mudam a cara da cidade. Notícias de prisão, do voo de
Jango, de quarteladas em tal ou qual cidade, de explosões aqui e
ali, e o ambiente de insegurança se instalando dentro das casas.
Algo de muito grave
estava acontecendo, mas nem de longe eu podia imaginar quão grave.
Nem de longe imaginava como aquele dia mudaria a vida do país e, em
consequência, também a minha.
Brasília era ainda uma
cidade vermelha, cheia de pó, muito sol, poucas árvores, poucos
bares e lojas, muita lama, em vários lugares o jeitão de
acampamento, amigas minhas ainda moravam nas casas de madeira
construídas para os engenheiros nos anos da construção,
Não sei o que se
passava por minha jovem cabeça, olhando da grande janela do meu
quarto de onde se via o eixo. Não saímos de casa, ninguém sabia ao
certo o que aqueles homens duros, empertigados em suas fardas
estariam fazendo, e o dia permanece nebuloso na minha cabeça. Jovens
como eu naquele momento não tinham como entender o que se passava.
Jovens tenros em geral são alienados, desinformados do coletivo,
desinteressados do coletivo; o coletivo do jovem é seu grupo de
amigos, o mundo ainda pequeno o bastante para caber tão só o grupo
de amigos, os namorados, as paixonites, a escola, a família.
Eu fazia aquela
idiotice que se chamava curso Normal, em um pequeno colégio de
freiras. Entre minhas colegas, havia uma amiga especial, Siboneide.
Nós duas havíamos começado a ler um livro de capa dura azul,
“Fundamentos da Dialética”, de Pulitizer, fascinadas com o que
descobríamos. Não me lembro como veio parar em nossas mãos, e
nenhuma de nós tinha a menor condição de prever que aquele logo
seria um livro proibido.
Como iríamos saber o
que nos aguardava?
Congresso fechado,
deputados cassados e presos, instituições democráticas fechadas,
mentes brilhantes perseguidas, universidades aterrorizadas, inúmeras
prisões feitas, inúmeras mortes, tanques nas ruas, censura nos
jornais e rádios, sindicatos fechados, trabalhadores sem direitos,
artistas censurados, cidadãos exilados: uma ditadura é isso. Um país
sem direitos, oprimido, e com medo.
O resultado foram os
21 anos que deixaram o país com mais miséria, mais problemas, mais
ignorância. E o rescaldo que, depois de 50 anos, ainda nos
acompanha, porque é muito difícil, e leva muito tempo, superar as
perdas de tantos anos e conseguir tomar um rumo livre e justo.
1.
Começo da noite com Giocondo Dias
por Juvenal Azevedo
Operários, Tarsila do Amaral
Nos
meus tempos de militância partidária, estabeleci
alguns contatos com companheiros do Partidão, o
Partido Comunista Brasileiro (PCB), do PS (Partido
Socialista) e da 4ª Internacional (organização
comunista internacional), entre os quais um grupo de
estudantes que frequentavam as aulas da Faculdade de
Filosofia, no Rio de Janeiro, como o Wilson Barbosa
e sua mulher, uma loira extremamente interessante e
pela qual cheguei a ter uma quedinha. Mas essa é
outra história.
Apesar de morar em São
Paulo, fui levado, junto com outros militantes de esquerda, a visitar o
legendário dirigente comunista Giocondo Dias, que morava, se a memória
não me falha, numa casa na Tijuca.
Sou ignorante a respeito
de muitas coisas e quase sempre me socorro de algum humor, quando digo
“minha ignorância é profunda”. Assim, claro que eu sabia o básico sobre
o veterano dirigente do PCB, mas levei muitos anos para descobrir que
Giocondo Dias não apenas era o número dois do Partidão, logo após Luiz
Carlos Prestes, o secretário-geral do Birô Político do PCB, como também
era um militante revolucionário que participara da Coluna Prestes, da
Intentona Comunista de 1935, passara muitos anos em diversos cárceres e
boa parte de sua vida na clandestinidade.
Na véspera do golpe
militar de 1964, quando Prestes chegara a declarar na televisão que o
PCB já estava no governo, os mais conhecidos militantes comunistas
gozavam de bastante liberdade política, o que explicava palestras e atos
públicos com Prestes, Jacob Gorender, Mario Schenberg e outros, como era
o caso da nossa visita a Giocondo Dias.
Revolucionário histórico
Enfim, número dois ou não
do PCB, pra mim Giocondo Dias era uma figura histórica e esse detalhe
não teria afetado em nada a minha admiração pelo revolucionário e pelo
homem.
Entre as perguntas que
fizemos a Giocondo Dias, saltou de imediato aquela que se referia à
possibilidade de uma revolução, já que estávamos em pleno mês de março
de 1964, a poucos dias do que imaginávamos seria a tomada do poder pelas
forças progressistas.
Giocondo Dias era, já
naquela época, um cinquentão, de aparência franzina, voz suavemente
modulada, transmitindo cultura e mostrando um gestual educado. Anos
depois, quando visitei meu irmão no Presídio Tiradentes, em São Paulo,
para onde levavam presos políticos, fiquei conhecendo o também
legendário dirigente do Partidão Jacob Gorender, durante as visitas
semanais que eu realizava nos anos 1971 e 1972. E Gorender também era
fisicamente semelhante a Giocondo Dias: o mesmo corpo franzino, a voz
modulada, exalando cultura e um gestual educado. Eram figuras típicas
dos velhos comunistas revolucionários.
Bem, voltando à explanação
de Giocondo Dias naqueles idos de março de 1964, o número dois do
Partidão engatou um raciocínio que, na época, eu e outros militantes não
levamos muito em conta. Ele disse: "O Brasil caminha para uma ruptura
institucional”.
A noite cai
Essa frase-síntese foi
esmiuçada por ele em uma brilhante "palestra" informal, enquanto
tomávamos suco de caju e cafezinhos. No final da tarde, da janela da
sala víamos o sol se pôr e a noite começar a impor o seu domínio,
observando o lusco-fusco no jardim da casa típica de classe média. A
noite estendia seu raio de ação ― para muito além do que imaginávamos
naqueles tempos.
Hoje, passados quase
cinquenta anos, suas palavras, nos alertando para um possível outro lado
da moeda, voltam a ressoar em minha memória, com acuidade e assombro:
uma quartelada ou golpe militar, neste ano de 1964?!
Entre os assistentes de
sua conversa conosco, creio que não havia nenhum que acreditasse nisso:
dizíamos que os principais chefes militares estavam divididos, alinhando
nomes como o do general Machado Lopes, do III Exército, em Porto Alegre;
do general Amaury Kruel, comandante do II Exército, em São Paulo; e do
próprio general Mourão Filho, comandante da 4a Região
Militar, em Minas Gerais.
Em relação aos
governadores, exceção feita a Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, e
Adhemar de Barros, em São Paulo, havia a perspectiva de normalidade
democrática a governantes como Magalhães Pinto, em Minas, sem falarmos
de esquerdistas notórios, como o governador de Pernambuco, Miguel
Arraes.
Os sindicatos, apesar de
deterem um pequeno percentual de filiados (o Sindicato dos Metalúrgicos,
de São Paulo, tido como o de mais alto número de integrantes no país,
18%), engrossavam a CGT e outras centrais sindicais, nos dando uma falsa
ilusão de poderio. Apesar disso, estávamos cegos de ilusão. Os partidos
de esquerda estavam longe de representar algo parecido com os PCs da
Itália e da França, por exemplo, ou mesmo do peronismo na Argentina.
Esperanças
Havia dois fatos novos. Um
deles, no Nordeste, com as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco
Julião. Outro, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, onde os Grupos
dos 11 formavam o embrião de um poder soviético, sob a liderança de
Leonel Brizola. Em São Paulo e no Rio, as “marchas da família com Deus e
pela liberdade”, financiadas e organizadas pelo Ipes (Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo Ibad (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática), entidades acintosamente pró-norte-americanos, com o apoio
da CIA (órgão da inteligência dos Estados Unidos), revelaram alguns
milhares de mulheres marchadeiras (as chamadas “senhoras de Santana”),
mas estas eram debochadas pelos partidos de esquerda, que as rotulavam
de minorias ínfimas.
As dissensões e
dissidências entre os partidos de esquerda adquiriam às vezes o contorno
de uma guerra interna, deixando em geral de organizar uma autêntica
frente de esquerda para encarar os partidos de direita e as próprias
forças armadas. Até mesmo Leonel Brizola, organizador dos Grupos dos 11,
uma provável organização de poder, era visto com desconfiança por alguns
setores progressistas da sociedade e da política. Acredito que, se
tivéssemos tido tempo para forjar uma estrutura partidária
revolucionária, no prazo de mais um ano ou pouco mais, disseminada pelo
país, poderíamos contrapor ao exército brasileiro um exército
revolucionário como o exército vermelho organizado por Leon Trotsky, em
1917, na Rússia.
Enfim, os argumentos que
brandíamos a Giocondo Dias, acima relatados, não serviram para muito, já
que nossas viseiras não nos permitiam olhar para os lados. Talvez só
hoje possamos entender o que ele queria nos alertar naqueles idos de
março. E isso incluía muitos atalhos para o futuro.
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