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31 de março de 2014

50 anos do Golpe Militar no Brasil

 

 

ESPECIAL SEMANA DOS 50 ANOS DO GOLPE.

 

 

5. Frei Betto e Frei Tito

trechos do livro "Batismo de Sangue", Frei Betto, 1982

Fillipino Lippi,Tortura de São João Evangelista, afresco de 1487, capela de Florença

Caçula entre onze irmãos, Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza a 14 de setembro de 1945. Aluno dos jesuítas, ingressou na JEC, afirmando-se logo como um dos seus mais ativos militantes. Nomeado dirigente regional em 1963, transferiu-se para o Recife.../...

.../ A fé cristã o inquietava. Deus irrompera em sua vida como apelo, desafio e paixão. Perseguia-o a ideia de consagrar-se integralmente à causa do Evangelho. Espírito místico, afeito ao silêncio e à oração, considerou a hipótese de fazer- se irmãozinho de Foucault, decidindo-se porém pelos dominicanos, mais vinculados aos militantes da JEC. Nos primeiros dias de 1966, entrou no noviciado, no Convento da Serra, em Belo Horizonte. Após a profissão simples, quando assumiu por três anos os votos de obediência, de pobreza e de castidade, a 10 de fevereiro de 1967, Frei Tito transferiu-se para a capital paulista. Residia no convento das Perdizes e cursava filosofia na USP.

Como em todo o país, também em São Paulo o movimento estudantil era o setor da sociedade civil que melhor expressava o descontentamento frente ao regime militar. Na faculdade, Tito participava das reuniões e das manifestações, colocando-se a serviço de seus companheiros, o que lhe permitiu obter o local em Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968. Preso com os congressistas, passou pela triagem do DOPS sem que percebessem sua condição religiosa.

Frei Tito foi novamente preso na madrugada de 3 para 4 de novembro de 1969... /

 

 

... / Para certos militares, todo réu é culpado, até prova em contrário — princípio emanado da Doutrina de Segurança Nacional e infundido na cabeça de todos que, durante anos, comandaram a repressão no Brasil. Parte-se da ideia de que ninguém confessa os seus “crimes”, a menos que seja for­çado a falar. E para isso só há um recurso: a tortura. A dor física, o pânico psíquico e o medo desencadeiam, no prisio­neiro, o instinto de sobrevivência, sob ameaça de levá-lo a dizer ou assinar o que querem seus carrascos. Troca-se a dignidade pela preservação da vida. Nesse momento, a esco­lha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte por fidelidade aos princípios assumidos.

 

Em liberdade, quando ainda a nova geração de combatentes não conhecia a fúria repressiva, alimentava-se o mito do herói indomável, capaz de abraçar a morte sem um gemido, como quem encontra o prêmio de seus sacrifícios pelo advento da nova sociedade. No cárcere, os instrumentos de suplício reduziram essas pretensões aos limites da fragilidade humana, embora não tenham faltado testemunhos exemplates, como o de Frei Tito, o de Virgílio Gomes da Silva, o de Apolônio de Carvalho, o de Manuel da Conceição e de tantos outros. A maioria, porém, sucumbiu às atrocidades sofridas. Sabia-se a diferença entre a resistência quebrada e a delação assumida, voluntária. Havia compreensão e perdão para os que falavam sob tortura; discriminava-se punitiva- mente os que colaboravam com a polícia em pleno domínio de suas faculdades. A escola carcerária ensinava que a fide­lidade não se reveste apenas de maturidade ideológica adqui­rida na prática social, mas sobretudo de amor à causa e às pessoas pelas quais e com as quais se luta.

 

SAÚDE&LIVROS DEIXA, NESTA SEMANA, SUA HABITUAL PROGRAMAÇÃO PARA DAR ESPAÇO AOS SEUS ESCRITORES E OS 50 ANOS DO GOLPE MILITAR NO BRASIL. LEIA AQUI:

 

1. 31 de março:

Nosso saudoso

Juvenal Azevedo fala da ilusão da esquerda pouco antes do golpe.

 

2. 1 de abril

Maria José Silveira conta como foi o seu 1 de abril de 1964.

 

3. 2 de abril

Dr. José Luis Zabeu fala, do ponto de vista médico, sobre a dor e a tortura.

 

4. 3 de abril

Trecho inédito do livro "O Espelho - Ou a História Quase Invisível" de Isabel Fomm de Vasconcellos.

 

5. 4 de abril

Frei Tito e Frei Betto, trechos do livro "Batismo de Sangue", Frei Betto, 1982.

 

O coração é a raiz da vontade. O bom comportamento tido por Mário Alves, Vladimir Herzog, Marcos Arruda, Carlos Eduardo Pires Fleury e outros resultou de um longo processo de autoeducação, de disciplina, de humildade, que não se deixou iludir por esse voluntarismo esquerdizante revestido de autossuficiência em certos militantes que, de tão centrados em si mesmos, quando presos são os primeiros a entregar os outros.

“Na quarta-feira, fui acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do Capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia ante­rior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas quarenta e oito horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do Capitão Ho­mero de que, no dia seguinte, enfrentaria a ‘equipe da pesada” .../

.../ “Ao chegar à Oban, fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do Capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu ‘confessasse’. Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo Capitão Maurício. Davam-me ‘telefones’ [tapas nos ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.”.../

 

.../Na Oban, os militares procuravam “quebrar” as resistências do preso alternando torturas, perguntas, ameaças. O medo de sofrer novamente as mesmas dores era, por vezes, mais pavoroso que as próprias dores. Naquele inferno, não faltavam os gestos de solidariedade: um copo d’água e um cobertor significam companheirismo, presença amiga, solida­riedade. Saber que alguém nos apoia é vencer a solidão que nos torna vulneráveis. Por isso, a percepção, na fé, da presença de Deus em suas vidas tanto encorajava os primeiros mártires cristãos.

 

Frei Betto ou Carlos Alberto Libânio Castro nasceu em Belo Horizonte a 25 de agosto de 1944. Presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) de sua cidade natal, mais tarde foi diretor nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Era estudante de jornalismo em São Paulo quando foi preso pela primeira vez, em 1964. Nesse ano foi para a Ordem dos Dominicanos. Formado, chegou à chefia de reportagem da "Folha da Tarde", em 1969. Foi assistente de direção de Zé Celso Martinez Correa e colaborador da famosa revista "Realidade". Foi novamente preso e sofreu todas as auguras dos presos políticos de então. Hoje é autor de 54 livros, publicados no Brasil e no Exterior. Seu livro mais recente é "A Obra do Artista, uma visão holística do Universo" publicado pela editora José Olympio. "Batismo de Sangue" teve a sua 14. edição em 2006, pela editora Rocco.

 

4. Trechos selecionados do mais recente livro (ainda inédito)

“O Espelho ou a História Quase Invisível”

 por Isabel Fomm de Vasconcellos

 Rene Magritte, 1964, O Filho do Homem

1964

 

Fabrizio se orgulhava de dizer que jamais se deixara iludir com as promessas do ex presidente, o mineiro Juscelino Kubitscheck, de fazer com que o Brasil crescesse cinquenta anos em cinco. Mesmo Brasília, a grande cartada política de Juscelino, raciocinava Fabrizio, deveria ter custado grande parte dos recursos que eram para ser aplicados no desenvolvimento da nação, que ambicionava crescer tanto... Fabrizio lembrava-se dos primeiros anos de escola de sua filha Cláudia quando a menina voltava das aulas toda entusiasmada porque a professora explicara que o Brasil era o melhor país do mundo: não tinha terremoto, nem vulcão, nem furacão... E iria crescer cinquenta anos em cinco...

Cláudia também se entusiasmara agora, na adolescência, com o esplendor da bossa nova, explodindo inclusive fora do país, e com as primeiras manifestações das lutas por um mundo mais justo, por maior igualdade social, pelo fim do preconceito de raça, pensamentos que estavam na infância do ideário que acabaria por caracterizar a década revolucionária em todo o mundo ocidental.

Fabrizio surpreendia-se, e de fato também se preocupava, com o interesse da filha pelas questões políticas. Mas acabava sempre conversando bastante com ela, principalmente à mesa do jantar, sobre todo esse universo que Antônia agora fazia questão de desconhecer. Isso fazia com que Antônia se sentisse excluída, como se Fabrizio estivesse lhe roubando a filha.

Com ele, Cláudia vira desmoronar a imagem positiva que tinha do governo de Juscelino. Ele lhe explicara, que além de endividar o país com a faraônica Brasília, Juscelino levara os louros da implantação da indústria automobilística quando, de fato, todas as leis que tornaram possível essa implantação, tinham sido promulgadas no segundo mandato de Getúlio Vargas e que a maioria das montadoras supostamente trazidas por Juscelino já estavam há tempo atuando no país. Na verdade, o processo de industrialização – explicava Fabrizio, atribuído a JK, começara bem antes dele, com a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional e da Belgo Mineira, nos anos 1940. E Brasília demoraria muito para se tornar uma cidade, fora uma despesa imensa, paga com recursos que endividaram o país, uma realização para inglês ver – afirmava ele -- que nenhum benefício real trouxera ao povo brasileiro e nem mesmo à elite, excetuando alguns asseclas de JK, que enriqueceram do dia para a noite.

Cláudia, embora fosse uma menina rica, estudava num colégio estadual. Naquele tempo era comum que as famílias de posse mandassem seus filhos para colégios do governo, alguns deles, onde se dizia estar o melhor ensino do estado. Criada como uma menina da elite, no colégio estadual aprendera a conviver com outras realidades sociais e econômicas de alguns de seus colegas menos privilegiados e aprendera também o quanto era, até então, muito pobre e limitada a sua visão de mundo. Embora, por influência tanto da avó Júlia como de sua mãe, tivesse crescido com o gosto pela literatura e pelas artes em geral, confrontada com a dura realidade da vida de seus colegas mais pobres, Cláudia adquirira uma nova dimensão de pensamento: A política.

Inteligente e perspicaz, logo estava militando entre as organizações secundaristas de seu colégio e, não se surpreendeu com o golpe militar de 1964, quando este aconteceu, porque já discutira inúmeras vezes com seus colegas de escola e, mais tarde, de faculdade, e também com seu próprio pai, os rumos que o país estava tomando depois da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e toda a tumultuada posse de Jango Goulart. Apesar de setores mais conservadores terem tentado impedir a posse de Jango e, depois, terem tentado controla-lo através da instalação do regime parlamentarista, nada poderia deter o ex vice de Jânio e agora presidente, que, de namoro sério com os comunistas da URSS e da China, pensava em resolver o problema econômico do Brasil dando um belo calote em seus credores.

Em 1º de abril de 1964, quando o país amanheceu sob a pesada bota dos militares golpistas, tomando o café da manhã e ouvindo as notícias no moderno rádio portátil, pai e filha se entreolharam e disseram, ao mesmo tempo: “Eu sabia!”

 

1968

Cláudia sorri à lembrança de quando ela e seu pai acompanharam, na manhã de 1º de abril de 1964, pelo rádio, o golpe dos militares. Pai e filha tinham dito ao mesmo tempo: “Eu sabia”. Mas aquela fora a última vez que tinham concordado com qualquer coisa na vida. Mesmo assim – reflete Cláudia—concordado apenas na aparência. O “eu sabia” de Fabrizio referia-se a revolução que ele esperava e pela qual ansiara, já que os rumos que Jango Goulart estava dando ao país o desagradavam profundamente. Fabrizio morria de medo dos comunistas, dos chamados “lacaios de Moscou”, que – imaginava— trariam apenas mais miséria ao país, caso instalassem aqui seu governo socialista. Imagine – costumava dizer – se esses fanáticos assumem o poder no Brasil vão querer dividir a pouca riqueza do país entre todos e o resultado será que ficaremos todos miseravelmente pobres. A riqueza do Brasil não dá para todos. E, pobres, jamais conseguiremos crescer, sem os ricos não haverá geração de empregos, não haverá progresso. O Brasil estagnará para sempre na sua condição de subdesenvolvido...

Já o “eu sabia” de Cláudia era a certeza que ela tivera de que os donos do poder não permitiriam que os seus sonhos de igualdade e justiça social se realizassem. A elite brasileira – pensava ela – não quer abrir mão de alguns privilégios para que mais pessoas tenham acesso a mais bens de consumo, ignorando que um povo com maior poder de compra gera mais progresso e mais empregos; a elite não quer o povo educado, bem alimentado, feliz, porque acredita que para dominar é preciso humilhar e denegrir, em vez de compreender que o povo bem educado é um povo que trabalha melhor, que produz mais, que cria mais e, portanto, gera mais progresso.

Só a educação e uma distribuição de renda mais justa poderão tirar o Brasil de sua condição de subdesenvolvido... – dissera ela tantas vezes.

Mas a verdade é que seus sonhos de juventude estavam perdendo a guerra.

Durante esses quatro anos, a Ditadura Militar só endurecera. Aquela vã promessa – em que seu pai acreditara – dos militares que, depois do golpe e de colocar ordem na casa, devolveriam o poder aos civis – não passara de mais uma mentira. Através da decretação de atos institucionais, o governo militar fora cerceando as liberdades democráticas e ela já ouvira conversas, em sua casa mesmo, nas recepções que ela preferiria não frequentar, mas frequentava, que até o final daquele ano, os homens endureceriam ainda mais, falava-se mesmo em fechamento do congresso e incremento da censura à imprensa. Muitos dos empresários e políticos que frequentavam as festas de seus pais e que haviam apoiado o golpe, hoje já se sentiam traídos e usados pelos militares. Quase nenhum daqueles homens apoiara o golpe militar para que se instalasse uma ditadura. Ao contrário: apoiaram para que não se instalasse uma ditadura: a da esquerda. E agora...

Para Cláudia, jornalista recém formada, cheia de ideais nobres daquela sua geração (que pregava o amor em vez da guerra, que não confiava em ninguém com mais de 30 anos, que sonhava com a igualdade social, o fim dos preconceitos, com um mundo mais justo) a censura era como um pesadelo. Mesmo ela, que trabalhava numa moderna revista feminina, sofria com a censura. Seus artigos, dirigidos a uma nova mulher, viviam sendo riscados de vermelho pelo editor, considerados “avançados demais”, Pensamentos – dizia ele – que chocarão as mulheres mais conservadoras, pensamentos para os quais a mulher brasileira ainda não está preparada.

 

3. A Dor e a Tortura, Uma Visão Médica

por Dr. José Luis Zabeu

Ortopedista do Hospital e Maternidade Celso Pierro da PUC-Campinas

 

Elifas Andreato, painel exposto na Câmara dos deputados, Brasilia.

Métodos de tortura física existem desde o início da história humana, em geral quando se busca confissões ou delações de adversários ou inimigos. Além de todos os questionamentos éticos e morais que envolvem esta prática, há um enfoque científico que a faz algo ainda mais abominável: a dor.

 

A tortura: uma pessoa submetida a métodos físicos que provoquem dor, além de toda a pressão emocional que um momento como este produz, vai, progressivamente, perdendo seu controle de ideias e ações. Seu cérebro não entende o motivo de tantos estímulos desagradáveis repetidos, não consegue impedir que as lesões sejam produzidas, e tudo entra em falência. O cérebro passa a mandar a pessoa falar o que o torturador quer ouvir, equilíbrio e ponderação passam a não mais existir. Só resta uma sensação primitiva de sobrevivência, que faz o torturado ainda ter alguma força para poder interagir.

 

Entre os muitos métodos de inflingir dor, um dos mais ‘populares’ são estímulos aos pés e tornozelos, como compressão, torção, queimaduras e choques. São regiões muito sensíveis e que facilmente geram dor insuportável. Diferente de afogamentos, sufocamentos e outras agressões que podem alterar a consciência da pessoa, a agressão aos pés geralmente mantém o torturado lúcido, em extremo sofrimento. E também facilmente se gera o componente de dor crônica, quando este estímulo de agressão é frequente, intenso, mais ainda quando gera lesões definitivas nos nervos e articulações.

 

Em resumo: a dor gerada em sessões de tortura, além de rebaixar o indivíduo ao menor nível de dignidade possível, gera consequências por toda a vida: seu corpo tende a ser mais sensível a estímulos dolorosos, a dor provoca alterações significativas de comportamento e induz quadros de depressão e ansiedade, afetando o convívio social de modo permanente. Isto deve ser lembrado quando se discute punições aos que torturam: seus atos não são meros momentos de maldade, e sim ações que afligem sofrimento físico e mental por toda a vida aos que à tortura foram submetidos.

 

A dor pode ser definida como uma experiência desagradável ao corpo e ao emocional, causada por danos físicos e que, quando persistente, pode estar presente mesmo na ausência de um estímulo nocivo (a chamada ‘dor crônica’).

Sabe-se que a dor é fundamental para que se sobreviva; ela nos alerta de problemas e nos motiva a buscar e eliminar causas. Quem ‘percebe’ a dor é um complexo sistema que se assemelha ao alarme de uma casa: uma cerca elétrica, um sensor de movimento, quando estimulados, geram sinais que disparam uma sirene. É o que fazemos quando tocamos a mão em uma chapa quente. Pequenos filamentos de nervos geram um estímulo elétrico, que é conduzido até nossa medula, na coluna vertebral, que encaminha esta informação ao nosso cérebro.

 

No meio do caminho, já existe uma resposta, o reflexo de retirdada da mão, mediada pela medula. No cérebro, ocorre o processamento definitivo da informação e a definição do que fazer ao longo do tempo: procurar um médico, tomar um remédio, repousar, etc. É como se a pessoa que está na central de monitoramento do alarme decida se vai chamar a polícia, avisar o proprietário ou simplesmente desligar a sirene, entendendo que foi um alarme falso.

 

Quando o estímulo de dor é frequente e repetido, as coisas vão se complicando. A sirene toca a todo momento, a central de controle das informações vai ficando confusa e todo este delicado sistema de percepção, condução e interpretação de estímulos fica comprometido. A dor passa a acontecer mesmo com estímulos fracos ou até sem qualquer provocação. Chama-se isto de dor crônica.

 

 

2. Um Dia de Abril

por Maria José Silveira

 Armando Alves, 1964, sem título

Do dia 1 de abril de 1964 o que mais me lembro é do rádio tocando músicas fúnebres. Meu pai, tenso, saindo para o Congresso e o deixando ligado, na esperança de que escutássemos alguma rara notícia, ainda que censurada, e minha mãe preocupada atendendo o telefone que tocava sem parar.

“Os militares tomaram o poder”, “Jango está foragido”.

O ambiente era pesado, e tão fúnebre quanto a música das rádios.

Dias assim parecem perturbar o próprio ar de onde estamos. Posso estar exagerando, mas acho que não: sirenes ao longe, tanques passando nas ruas desertas são coisas que mudam a cara da cidade. Notícias de prisão, do voo de Jango, de quarteladas em tal ou qual cidade, de explosões aqui e ali, e o ambiente de insegurança se instalando dentro das casas.

Algo de muito grave estava acontecendo, mas nem de longe eu podia imaginar quão grave. Nem de longe imaginava como aquele dia mudaria a vida do país e, em consequência, também a minha.

Brasília era ainda uma cidade vermelha, cheia de pó, muito sol, poucas árvores, poucos bares e lojas, muita lama, em vários lugares o jeitão de acampamento, amigas minhas ainda moravam nas casas de madeira construídas para os engenheiros nos anos da construção,

Não sei o que se passava por minha jovem cabeça, olhando da grande janela do meu quarto de onde se via o eixo. Não saímos de casa, ninguém sabia ao certo o que aqueles homens duros, empertigados em suas fardas estariam fazendo, e o dia permanece nebuloso na minha cabeça. Jovens como eu naquele momento não tinham como entender o que se passava. Jovens tenros em geral são alienados, desinformados do coletivo, desinteressados do coletivo; o coletivo do jovem é seu grupo de amigos, o mundo ainda pequeno o bastante para caber tão só o grupo de amigos, os namorados, as paixonites, a escola, a família.

Eu fazia aquela idiotice que se chamava curso Normal, em um pequeno colégio de freiras. Entre minhas colegas, havia uma amiga especial, Siboneide. Nós duas havíamos começado a ler um livro de capa dura azul, “Fundamentos da Dialética”, de Pulitizer, fascinadas com o que descobríamos. Não me lembro como veio parar em nossas mãos, e nenhuma de nós tinha a menor condição de prever que aquele logo seria um livro proibido.

Como iríamos saber o que nos aguardava?

Congresso fechado, deputados cassados e presos, instituições democráticas fechadas, mentes brilhantes perseguidas, universidades aterrorizadas, inúmeras prisões feitas, inúmeras mortes, tanques nas ruas, censura nos jornais e rádios, sindicatos fechados, trabalhadores sem direitos, artistas censurados, cidadãos exilados: uma ditadura é isso. Um país sem direitos, oprimido, e com medo.

O resultado foram os 21 anos que deixaram o país com mais miséria, mais problemas, mais ignorância. E o rescaldo que, depois de 50 anos, ainda nos acompanha, porque é muito difícil, e leva muito tempo, superar as perdas de tantos anos e conseguir tomar um rumo livre e justo.

 

1. Começo da noite com Giocondo Dias

 

por Juvenal Azevedo

 

Operários, Tarsila do Amaral

Nos meus tempos de militância partidária, estabeleci alguns contatos com companheiros do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), do PS (Partido Socialista) e da 4ª Internacional (organização comunista internacional), entre os quais um grupo de estudantes que frequentavam as aulas da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro, como o Wilson Barbosa e sua mulher, uma loira extremamente interessante e pela qual cheguei a ter uma quedinha. Mas essa é outra história.

Apesar de morar em São Paulo, fui levado, junto com outros militantes de esquerda, a visitar o legendário dirigente comunista Giocondo Dias, que morava, se a memória não me falha, numa casa na Tijuca.

Sou ignorante a respeito de muitas coisas e quase sempre me socorro de algum humor, quando digo “minha ignorância é profunda”. Assim, claro que eu sabia o básico sobre o veterano dirigente do PCB, mas levei muitos anos para descobrir que Giocondo Dias não apenas era o número dois do Partidão, logo após Luiz Carlos Prestes, o secretário-geral do Birô Político do PCB, como também era um militante revolucionário que participara da Coluna Prestes, da Intentona Comunista de 1935, passara muitos anos em diversos cárceres e boa parte de sua vida na clandestinidade.

Na véspera do golpe militar de 1964, quando Prestes chegara a declarar na televisão que o PCB já estava no governo, os mais conhecidos militantes comunistas gozavam de bastante liberdade política, o que explicava palestras e atos públicos com Prestes, Jacob Gorender, Mario Schenberg e outros, como era o caso da nossa visita a Giocondo Dias.

 

Revolucionário histórico

Enfim, número dois ou não do PCB, pra mim Giocondo Dias era uma figura histórica e esse detalhe não teria afetado em nada a minha admiração pelo revolucionário e pelo homem.

Entre as perguntas que fizemos a Giocondo Dias, saltou de imediato aquela que se referia à possibilidade de uma revolução, já que estávamos em pleno mês de março de 1964, a poucos dias do que imaginávamos seria a tomada do poder pelas forças progressistas.

Giocondo Dias era, já naquela época, um cinquentão, de aparência franzina, voz suavemente modulada, transmitindo cultura e mostrando um gestual educado. Anos depois, quando visitei meu irmão no Presídio Tiradentes, em São Paulo, para onde levavam presos políticos, fiquei conhecendo o também legendário dirigente do Partidão Jacob Gorender, durante as visitas semanais que eu realizava nos anos 1971 e 1972. E Gorender também era fisicamente semelhante a Giocondo Dias: o mesmo corpo franzino, a voz modulada, exalando cultura e um gestual educado. Eram figuras típicas dos velhos comunistas revolucionários.

Bem, voltando à explanação de Giocondo Dias naqueles idos de março de 1964, o número dois do Partidão engatou um raciocínio que, na época, eu e outros militantes não levamos muito em conta. Ele disse: "O Brasil caminha para uma ruptura institucional”.

A noite cai

Essa frase-síntese foi esmiuçada por ele em uma brilhante "palestra" informal, enquanto tomávamos suco de caju e cafezinhos. No final da tarde, da janela da sala víamos o sol se pôr e a noite começar a impor o seu domínio, observando o lusco-fusco no jardim da casa típica de classe média. A noite estendia seu raio de ação ― para muito além do que imaginávamos naqueles tempos.

Hoje, passados quase cinquenta anos, suas palavras, nos alertando para um possível outro lado da moeda, voltam a ressoar em minha memória, com acuidade e assombro: uma quartelada ou golpe militar, neste ano de 1964?!

Entre os assistentes de sua conversa conosco, creio que não havia nenhum que acreditasse nisso: dizíamos que os principais chefes militares estavam divididos, alinhando nomes como o do general Machado Lopes, do III Exército, em Porto Alegre; do general Amaury Kruel, comandante do II Exército, em São Paulo; e do próprio general Mourão Filho, comandante da 4a Região Militar, em Minas Gerais.

Em relação aos governadores, exceção feita a Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, e Adhemar de Barros, em São Paulo, havia a perspectiva de normalidade democrática a governantes como Magalhães Pinto, em Minas, sem falarmos de esquerdistas notórios, como o governador de Pernambuco, Miguel Arraes.

Os sindicatos, apesar de deterem um pequeno percentual de filiados (o Sindicato dos Metalúrgicos, de São Paulo, tido como o de mais alto número de integrantes no país, 18%), engrossavam a CGT e outras centrais sindicais, nos dando uma falsa ilusão de poderio. Apesar disso, estávamos cegos de ilusão. Os partidos de esquerda estavam longe de representar algo parecido com os PCs da Itália e da França, por exemplo, ou mesmo do peronismo na Argentina.

 

Esperanças

Havia dois fatos novos. Um deles, no Nordeste, com as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião. Outro, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, onde os Grupos dos 11 formavam o embrião de um poder soviético, sob a liderança de Leonel Brizola. Em São Paulo e no Rio, as “marchas da família com Deus e pela liberdade”, financiadas e organizadas pelo Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), entidades acintosamente pró-norte-americanos, com o apoio da CIA (órgão da inteligência dos Estados Unidos), revelaram alguns milhares de mulheres marchadeiras (as chamadas “senhoras de Santana”), mas estas eram debochadas pelos partidos de esquerda, que as rotulavam de minorias ínfimas.

As dissensões e dissidências entre os partidos de esquerda adquiriam às vezes o contorno de uma guerra interna, deixando em geral de organizar uma autêntica frente de esquerda para encarar os partidos de direita e as próprias forças armadas. Até mesmo Leonel Brizola, organizador dos Grupos dos 11, uma provável organização de poder, era visto com desconfiança por alguns setores progressistas da sociedade e da política. Acredito que, se tivéssemos tido tempo para forjar uma estrutura partidária revolucionária, no prazo de mais um ano ou pouco mais, disseminada pelo país, poderíamos contrapor ao exército brasileiro um exército revolucionário como o exército vermelho organizado por Leon Trotsky, em 1917, na Rússia.

Enfim, os argumentos que brandíamos a Giocondo Dias, acima relatados, não serviram para muito, já que nossas viseiras não nos permitiam olhar para os lados. Talvez só hoje possamos entender o que ele queria nos alertar naqueles idos de março. E isso incluía muitos atalhos para o futuro.

 

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