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		O coração é a raiz da 
		vontade. O bom comportamento tido por Mário Alves, Vladimir Herzog, 
		Marcos Arruda, Carlos Eduardo Pires Fleury e outros resultou de um longo 
		processo de autoeducação, de disciplina, de humildade, que não se deixou 
		iludir por esse voluntarismo esquerdizante revestido de autossuficiência 
		em certos militantes que, de tão centrados em si mesmos, quando presos 
		são os primeiros a entregar os outros. 
		“Na quarta-feira, fui 
		acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a 
		equipe do Capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do 
		dia anterior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, 
		nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, 
		quando me serviram a primeira refeição naquelas quarenta e oito horas: 
		arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, 
		ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do 
		Capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a ‘equipe da 
		pesada” .../ 
		.../ “Ao chegar à Oban, 
		fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do Capitão Maurício 
		passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE 
		em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos 
		ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para 
		que eu ‘confessasse’. Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. 
		Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de 
		pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, 
		comandados pelo Capitão Maurício. Davam-me ‘telefones’ [tapas nos 
		ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei 
		quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se 
		reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu 
		negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, 
		prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo 
		marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um 
		soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 
		x 2,5 m, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão 
		e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.”.../ 
		  
		.../Na Oban, os militares 
		procuravam “quebrar” as resistências do preso alternando torturas, 
		perguntas, ameaças. O medo de sofrer novamente as mesmas dores era, por 
		vezes, mais pavoroso que as próprias dores. Naquele inferno, não 
		faltavam os gestos de solidariedade: um copo d’água e um cobertor 
		significam companheirismo, presença amiga, solidariedade. Saber que 
		alguém nos apoia é vencer a solidão que nos torna vulneráveis. Por isso, 
		a percepção, na fé, da presença de Deus em suas vidas tanto encorajava 
		os primeiros mártires cristãos.   
		Frei Betto ou Carlos 
		Alberto Libânio Castro nasceu em Belo Horizonte a 25 de agosto de 1944. 
		Presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) de sua cidade natal, 
		mais tarde foi diretor nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). 
		Era estudante de jornalismo em São Paulo quando foi preso pela primeira 
		vez, em 1964. Nesse ano foi para a Ordem dos Dominicanos. Formado, 
		chegou à chefia de reportagem da "Folha da Tarde", em 1969. Foi 
		assistente de direção de Zé Celso Martinez Correa e colaborador da 
		famosa revista "Realidade". Foi novamente preso e sofreu todas as 
		auguras dos presos políticos de então. Hoje é autor de 54 livros, 
		publicados no Brasil e no Exterior. Seu livro mais recente é "A Obra do 
		Artista, uma visão holística do Universo" publicado pela editora José 
		Olympio. "Batismo de Sangue" teve a sua 14. edição em 2006, pela editora 
		Rocco.   
		4. Trechos selecionados do 
		mais recente livro (ainda inédito)  
		“O Espelho ou a História 
		Quase Invisível” 
		 por Isabel Fomm de Vasconcellos 
		
		 Rene Magritte, 1964, O Filho do 
		Homem 
		
		 1964 
		  
		
		Fabrizio se orgulhava de dizer que jamais se deixara iludir com as 
		promessas do ex presidente, o mineiro Juscelino Kubitscheck, de fazer 
		com que o Brasil crescesse cinquenta anos em cinco. Mesmo Brasília, a 
		grande cartada política de Juscelino, raciocinava Fabrizio, deveria ter 
		custado grande parte dos recursos que eram para ser aplicados no 
		desenvolvimento da nação, que ambicionava crescer tanto... Fabrizio 
		lembrava-se dos primeiros anos de escola de sua filha Cláudia quando a 
		menina voltava das aulas toda entusiasmada porque a professora explicara 
		que o Brasil era o melhor país do mundo: não tinha terremoto, nem 
		vulcão, nem furacão... E iria crescer cinquenta anos em cinco... 
		
		Cláudia também se entusiasmara agora, na adolescência, com o esplendor 
		da bossa nova, explodindo inclusive fora do país, e com as primeiras 
		manifestações das lutas por um mundo mais justo, por maior igualdade 
		social, pelo fim do preconceito de raça, pensamentos que estavam na 
		infância do ideário que acabaria por caracterizar a década 
		revolucionária em todo o mundo ocidental. 
		
		Fabrizio surpreendia-se, e de fato também se preocupava, com o interesse 
		da filha pelas questões políticas. Mas acabava sempre conversando 
		bastante com ela, principalmente à mesa do jantar, sobre todo esse 
		universo que Antônia agora fazia questão de desconhecer. Isso fazia com 
		que Antônia se sentisse excluída, como se Fabrizio estivesse lhe 
		roubando a filha. 
		Com 
		ele, Cláudia vira desmoronar a imagem positiva que tinha do governo de 
		Juscelino. Ele lhe explicara, que além de endividar o país com a 
		faraônica Brasília, Juscelino levara os louros da implantação da 
		indústria automobilística quando, de fato, todas as leis que tornaram 
		possível essa implantação, tinham sido promulgadas no segundo mandato de 
		Getúlio Vargas e que a maioria das montadoras supostamente trazidas por 
		Juscelino já estavam há tempo atuando no país. Na verdade, o processo de 
		industrialização – explicava Fabrizio, atribuído a JK, começara bem 
		antes dele, com a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional e da Belgo 
		Mineira, nos anos 1940. E Brasília demoraria muito para se tornar uma 
		cidade, fora uma despesa imensa, paga com recursos que endividaram o 
		país, uma realização para inglês ver – afirmava ele -- que nenhum 
		benefício real trouxera ao povo brasileiro e nem mesmo à elite, 
		excetuando alguns asseclas de JK, que enriqueceram do dia para a noite.
		 
		
		Cláudia, embora fosse uma menina rica, estudava num colégio estadual. 
		Naquele tempo era comum que as famílias de posse mandassem seus filhos 
		para colégios do governo, alguns deles, onde se dizia estar o melhor 
		ensino do estado. Criada como uma menina da elite, no colégio estadual 
		aprendera a conviver com outras realidades sociais e econômicas de 
		alguns de seus colegas menos privilegiados e aprendera também o quanto 
		era, até então, muito pobre e limitada a sua visão de mundo. Embora, por 
		influência tanto da avó Júlia como de sua mãe, tivesse crescido com o 
		gosto pela literatura e pelas artes em geral, confrontada com a dura 
		realidade da vida de seus colegas mais pobres, Cláudia adquirira uma 
		nova dimensão de pensamento: A política. 
		
		Inteligente e perspicaz, logo estava militando entre as organizações 
		secundaristas de seu colégio e, não se surpreendeu com o golpe militar 
		de 1964, quando este aconteceu, porque já discutira inúmeras vezes com 
		seus colegas de escola e, mais tarde, de faculdade, e também com seu 
		próprio pai, os rumos que o país estava tomando depois da renúncia de 
		Jânio Quadros, em 1961, e toda a tumultuada posse de Jango Goulart. 
		Apesar de setores mais conservadores terem tentado impedir a posse de 
		Jango e, depois, terem tentado controla-lo através da instalação do 
		regime parlamentarista, nada poderia deter o ex vice de Jânio e agora 
		presidente, que, de namoro sério com os comunistas da URSS e da China, 
		pensava em resolver o problema econômico do Brasil dando um belo calote 
		em seus credores.  
		Em 
		1º de abril de 1964, quando o país amanheceu sob a pesada bota dos 
		militares golpistas, tomando o café da manhã e ouvindo as notícias no 
		moderno rádio portátil, pai e filha se entreolharam e disseram, ao mesmo 
		tempo: “Eu sabia!”   
		1968 
		Cláudia sorri à lembrança 
		de quando ela e seu pai acompanharam, na manhã de 1º de abril de 1964, 
		pelo rádio, o golpe dos militares. Pai e filha tinham dito ao mesmo 
		tempo: “Eu sabia”. Mas aquela fora a última vez que tinham 
		concordado com qualquer coisa na vida. Mesmo assim – reflete 
		Cláudia—concordado apenas na aparência. O “eu sabia” de 
		Fabrizio referia-se a revolução que ele esperava e pela qual ansiara, já 
		que os rumos que Jango Goulart estava dando ao país o desagradavam 
		profundamente. Fabrizio morria de medo dos comunistas, dos chamados 
		“lacaios de Moscou”, que – imaginava— trariam apenas mais miséria ao 
		país, caso instalassem aqui seu governo socialista. Imagine – 
		costumava dizer – se esses fanáticos assumem o poder no Brasil vão 
		querer dividir a pouca riqueza do país entre todos e o resultado será 
		que ficaremos todos miseravelmente pobres. A riqueza do Brasil não dá 
		para todos. E, pobres, jamais conseguiremos crescer, sem os ricos não 
		haverá geração de empregos, não haverá progresso. O Brasil estagnará 
		para sempre na sua condição de subdesenvolvido... 
		Já o “eu sabia” de 
		Cláudia era a certeza que ela tivera de que os donos do poder não 
		permitiriam que os seus sonhos de igualdade e justiça social se 
		realizassem. A elite brasileira – pensava ela – não quer abrir 
		mão de alguns privilégios para que mais pessoas tenham acesso a mais 
		bens de consumo, ignorando que um povo com maior poder de compra gera 
		mais progresso e mais empregos; a elite não quer o povo educado, bem 
		alimentado, feliz, porque acredita que para dominar é preciso humilhar e 
		denegrir, em vez de compreender que o povo bem educado é um povo que 
		trabalha melhor, que produz mais, que cria mais e, portanto, gera mais 
		progresso.  
		Só a educação e uma 
		distribuição de renda mais justa poderão tirar o Brasil de sua condição 
		de subdesenvolvido... 
		– dissera ela tantas vezes. 
		Mas a verdade é que seus 
		sonhos de juventude estavam perdendo a guerra. 
		Durante esses quatro 
		anos, a Ditadura Militar só endurecera. Aquela vã promessa – em que seu 
		pai acreditara – dos militares que, depois do golpe e de colocar ordem 
		na casa, devolveriam o poder aos civis – não passara de mais uma 
		mentira. Através da decretação de atos institucionais, o governo militar 
		fora cerceando as liberdades democráticas e ela já ouvira conversas, em 
		sua casa mesmo, nas recepções que ela preferiria não frequentar, mas 
		frequentava, que até o final daquele ano, os homens endureceriam ainda 
		mais, falava-se mesmo em fechamento do congresso e incremento da censura 
		à imprensa. Muitos dos empresários e políticos que frequentavam as 
		festas de seus pais e que haviam apoiado o golpe, hoje já se sentiam 
		traídos e usados pelos militares. Quase nenhum daqueles homens apoiara o 
		golpe militar para que se instalasse uma ditadura. Ao contrário: 
		apoiaram para que não se instalasse uma ditadura: a da esquerda. E 
		agora... 
		Para Cláudia, jornalista 
		recém formada, cheia de ideais nobres daquela sua geração (que pregava o 
		amor em vez da guerra, que não confiava em ninguém com mais de 30 anos, 
		que sonhava com a igualdade social, o fim dos preconceitos, com um mundo 
		mais justo) a censura era como um pesadelo. Mesmo ela, que trabalhava 
		numa moderna revista feminina, sofria com a censura. Seus artigos, 
		dirigidos a uma nova mulher, viviam sendo riscados de vermelho pelo 
		editor, considerados “avançados demais”, Pensamentos – dizia ele 
		– que chocarão as mulheres mais conservadoras, pensamentos para os 
		quais a mulher brasileira ainda não está preparada.   
		3. A Dor e a Tortura, Uma 
		Visão Médica 
		por Dr. José Luis Zabeu 
		Ortopedista do Hospital e 
		Maternidade Celso Pierro da PUC-Campinas   
		Elifas Andreato, painel 
		exposto na Câmara dos deputados, Brasilia. 
		
		 Métodos 
		de tortura física existem desde o início da história humana, em geral 
		quando se busca confissões ou delações de adversários ou inimigos. Além 
		de todos os questionamentos éticos e morais que envolvem esta prática, 
		há um enfoque científico que a faz algo ainda mais abominável: a dor. 
		  
		A tortura: uma pessoa 
		submetida a métodos físicos que provoquem dor, além de toda a pressão 
		emocional que um momento como este produz, vai, progressivamente, 
		perdendo seu controle de ideias e ações. Seu cérebro não entende o 
		motivo de tantos estímulos desagradáveis repetidos, não consegue impedir 
		que as lesões sejam produzidas, e tudo entra em falência. O cérebro 
		passa a mandar a pessoa falar o que o torturador quer ouvir, equilíbrio 
		e ponderação passam a não mais existir. Só resta uma sensação primitiva 
		de sobrevivência, que faz o torturado ainda ter alguma força para poder 
		interagir. 
		  
		Entre os muitos métodos de 
		inflingir dor, um dos mais ‘populares’ são estímulos aos pés e 
		tornozelos, como compressão, torção, queimaduras e choques. São regiões 
		muito sensíveis e que facilmente geram dor insuportável. Diferente de 
		afogamentos, sufocamentos e outras agressões que podem alterar a 
		consciência da pessoa, a agressão aos pés geralmente mantém o torturado 
		lúcido, em extremo sofrimento. E também facilmente se gera o componente 
		de dor crônica, quando este estímulo de agressão é frequente, intenso, 
		mais ainda quando gera lesões definitivas nos nervos e articulações.
		 
		  
		Em resumo: a dor gerada em 
		sessões de tortura, além de rebaixar o indivíduo ao menor nível de 
		dignidade possível, gera consequências por toda a vida: seu corpo tende 
		a ser mais sensível a estímulos dolorosos, a dor provoca alterações 
		significativas de comportamento e induz quadros de depressão e 
		ansiedade, afetando o convívio social de modo permanente. Isto deve ser 
		lembrado quando se discute punições aos que torturam: seus atos não são 
		meros momentos de maldade, e sim ações que afligem sofrimento físico e 
		mental por toda a vida aos que à tortura foram submetidos. 
		  
		A dor pode ser definida 
		como uma experiência desagradável ao corpo e ao emocional, causada por 
		danos físicos e que, quando persistente, pode estar presente mesmo na 
		ausência de um estímulo nocivo (a chamada ‘dor crônica’). 
		Sabe-se que a dor é 
		fundamental para que se sobreviva; ela nos alerta de problemas e nos 
		motiva a buscar e eliminar causas. Quem ‘percebe’ a dor é um complexo 
		sistema que se assemelha ao alarme de uma casa: uma cerca elétrica, um 
		sensor de movimento, quando estimulados, geram sinais que disparam uma 
		sirene. É o que fazemos quando tocamos a mão em uma chapa quente. 
		Pequenos filamentos de nervos geram um estímulo elétrico, que é 
		conduzido até nossa medula, na coluna vertebral, que encaminha esta 
		informação ao nosso cérebro. 
		  
		No meio do caminho, já 
		existe uma resposta, o reflexo de retirdada da mão, mediada pela medula. 
		No cérebro, ocorre o processamento definitivo da informação e a 
		definição do que fazer ao longo do tempo: procurar um médico, tomar um 
		remédio, repousar, etc. É como se a pessoa que está na central de 
		monitoramento do alarme decida se vai chamar a polícia, avisar o 
		proprietário ou simplesmente desligar a sirene, entendendo que foi um 
		alarme falso. 
		  
		Quando o estímulo de dor é 
		frequente e repetido, as coisas vão se complicando. A sirene toca a todo 
		momento, a central de controle das informações vai ficando confusa e 
		todo este delicado sistema de percepção, condução e interpretação de 
		estímulos fica comprometido. A dor passa a acontecer mesmo com estímulos 
		fracos ou até sem qualquer provocação. Chama-se isto de dor crônica.   
							  
			
							
							2. 
							Um Dia de Abril 
							
							por Maria José Silveira 
			 Armando Alves, 
			1964, sem título 
			
			 Do 
			dia 1 de abril de 1964 o que mais me lembro é do rádio tocando 
			músicas fúnebres. Meu pai, tenso, saindo para o Congresso e o 
			deixando ligado, na esperança de que escutássemos alguma rara 
			notícia, ainda que censurada, e minha mãe preocupada atendendo o 
			telefone que tocava sem parar. 
			“Os militares tomaram 
			o poder”, “Jango está foragido”. 
			O ambiente era pesado, 
			e tão fúnebre quanto a música das rádios.  
			Dias assim parecem 
			perturbar o próprio ar de onde estamos. Posso estar exagerando, mas 
			acho que não: sirenes ao longe, tanques passando nas ruas desertas 
			são coisas que mudam a cara da cidade. Notícias de prisão, do voo de 
			Jango, de quarteladas em tal ou qual cidade, de explosões aqui e 
			ali, e o ambiente de insegurança se instalando dentro das casas. 
			Algo de muito grave 
			estava acontecendo, mas nem de longe eu podia imaginar quão grave. 
			Nem de longe imaginava como aquele dia mudaria a vida do país e, em 
			consequência, também a minha. 
			Brasília era ainda uma 
			cidade vermelha, cheia de pó, muito sol, poucas árvores, poucos 
			bares e lojas, muita lama, em vários lugares o jeitão de 
			acampamento, amigas minhas ainda moravam nas casas de madeira 
			construídas para os engenheiros nos anos da construção,  
			Não sei o que se 
			passava por minha jovem cabeça, olhando da grande janela do meu 
			quarto de onde se via o eixo. Não saímos de casa, ninguém sabia ao 
			certo o que aqueles homens duros, empertigados em suas fardas 
			estariam fazendo, e o dia permanece nebuloso na minha cabeça. Jovens 
			como eu naquele momento não tinham como entender o que se passava. 
			Jovens tenros em geral são alienados, desinformados do coletivo, 
			desinteressados do coletivo; o coletivo do jovem é seu grupo de 
			amigos, o mundo ainda pequeno o bastante para caber tão só o grupo 
			de amigos, os namorados, as paixonites, a escola, a família. 
			 
			Eu fazia aquela 
			idiotice que se chamava curso Normal, em um pequeno colégio de 
			freiras. Entre minhas colegas, havia uma amiga especial, Siboneide. 
			Nós duas havíamos começado a ler um livro de capa dura azul, 
			“Fundamentos da Dialética”, de Pulitizer, fascinadas com o que 
			descobríamos. Não me lembro como veio parar em nossas mãos, e 
			nenhuma de nós tinha a menor condição de prever que aquele logo 
			seria um livro proibido.  
			Como iríamos saber o 
			que nos aguardava? 
			Congresso fechado, 
			deputados cassados e presos, instituições democráticas fechadas, 
			mentes brilhantes perseguidas, universidades aterrorizadas, inúmeras 
			prisões feitas, inúmeras mortes, tanques nas ruas, censura nos 
			jornais e rádios, sindicatos fechados, trabalhadores sem direitos, 
			artistas censurados, cidadãos exilados: uma ditadura é isso. Um país 
			sem direitos, oprimido, e com medo. 
			O resultado foram os 
			21 anos que deixaram o país com mais miséria, mais problemas, mais 
			ignorância. E o rescaldo que, depois de 50 anos, ainda nos 
			acompanha, porque é muito difícil, e leva muito tempo, superar as 
			perdas de tantos anos e conseguir tomar um rumo livre e justo. 
							  
							
							1.
							
							
							
							Começo da noite com Giocondo Dias 
							  
							
							por Juvenal Azevedo 
							  
							
							
							Operários, Tarsila do Amaral 
							
							
							 Nos 
							meus tempos de militância partidária, estabeleci 
							alguns contatos com companheiros do Partidão, o 
							Partido Comunista Brasileiro (PCB), do PS (Partido 
							Socialista) e da 4ª Internacional (organização 
							comunista internacional), entre os quais um grupo de 
							estudantes que frequentavam as aulas da Faculdade de 
							Filosofia, no Rio de Janeiro, como o Wilson Barbosa 
							e sua mulher, uma loira extremamente interessante e 
							pela qual cheguei a ter uma quedinha. Mas essa é 
							outra história. 
		Apesar de morar em São 
		Paulo, fui levado, junto com outros militantes de esquerda, a visitar o 
		legendário dirigente comunista Giocondo Dias, que morava, se a memória 
		não me falha, numa casa na Tijuca. 
		Sou ignorante a respeito 
		de muitas coisas e quase sempre me socorro de algum humor, quando digo 
		“minha ignorância é profunda”. Assim, claro que eu sabia o básico sobre 
		o veterano dirigente do PCB, mas levei muitos anos para descobrir que 
		Giocondo Dias não apenas era o número dois do Partidão, logo após Luiz 
		Carlos Prestes, o secretário-geral do Birô Político do PCB, como também 
		era um militante revolucionário que participara da Coluna Prestes, da 
		Intentona Comunista de 1935, passara muitos anos em diversos cárceres e 
		boa parte de sua vida na clandestinidade. 
		Na véspera do golpe 
		militar de 1964, quando Prestes chegara a declarar na televisão que o 
		PCB já estava no governo, os mais conhecidos militantes comunistas 
		gozavam de bastante liberdade política, o que explicava palestras e atos 
		públicos com Prestes, Jacob Gorender, Mario Schenberg e outros, como era 
		o caso da nossa visita a Giocondo Dias.   
		Revolucionário histórico 
		Enfim, número dois ou não 
		do PCB, pra mim Giocondo Dias era uma figura histórica e esse detalhe 
		não teria afetado em nada a minha admiração pelo revolucionário e pelo 
		homem. 
		Entre as perguntas que 
		fizemos a Giocondo Dias, saltou de imediato aquela que se referia à 
		possibilidade de uma revolução, já que estávamos em pleno mês de março 
		de 1964, a poucos dias do que imaginávamos seria a tomada do poder pelas 
		forças progressistas. 
		Giocondo Dias era, já 
		naquela época, um cinquentão, de aparência franzina, voz suavemente 
		modulada, transmitindo cultura e mostrando um gestual educado. Anos 
		depois, quando visitei meu irmão no Presídio Tiradentes, em São Paulo, 
		para onde levavam presos políticos, fiquei conhecendo o também 
		legendário dirigente do Partidão Jacob Gorender, durante as visitas 
		semanais que eu realizava nos anos 1971 e 1972. E Gorender também era 
		fisicamente semelhante a Giocondo Dias: o mesmo corpo franzino, a voz 
		modulada, exalando cultura e um gestual educado. Eram figuras típicas 
		dos velhos comunistas revolucionários. 
		Bem, voltando à explanação 
		de Giocondo Dias naqueles idos de março de 1964, o número dois do 
		Partidão engatou um raciocínio que, na época, eu e outros militantes não 
		levamos muito em conta. Ele disse: "O Brasil caminha para uma ruptura 
		institucional”.  
		A noite cai 
		Essa frase-síntese foi 
		esmiuçada por ele em uma brilhante "palestra" informal, enquanto 
		tomávamos suco de caju e cafezinhos. No final da tarde, da janela da 
		sala víamos o sol se pôr e a noite começar a impor o seu domínio, 
		observando o lusco-fusco no jardim da casa típica de classe média. A 
		noite estendia seu raio de ação ― para muito além do que imaginávamos 
		naqueles tempos. 
		Hoje, passados quase 
		cinquenta anos, suas palavras, nos alertando para um possível outro lado 
		da moeda, voltam a ressoar em minha memória, com acuidade e assombro: 
		uma quartelada ou golpe militar, neste ano de 1964?! 
		Entre os assistentes de 
		sua conversa conosco, creio que não havia nenhum que acreditasse nisso: 
		dizíamos que os principais chefes militares estavam divididos, alinhando 
		nomes como o do general Machado Lopes, do III Exército, em Porto Alegre; 
		do general Amaury Kruel, comandante do II Exército, em São Paulo; e do 
		próprio general Mourão Filho, comandante da 4a Região 
		Militar, em Minas Gerais. 
		Em relação aos 
		governadores, exceção feita a Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, e 
		Adhemar de Barros, em São Paulo, havia a perspectiva de normalidade 
		democrática a governantes como Magalhães Pinto, em Minas, sem falarmos 
		de esquerdistas notórios, como o governador de Pernambuco, Miguel 
		Arraes. 
		Os sindicatos, apesar de 
		deterem um pequeno percentual de filiados (o Sindicato dos Metalúrgicos, 
		de São Paulo, tido como o de mais alto número de integrantes no país, 
		18%), engrossavam a CGT e outras centrais sindicais, nos dando uma falsa 
		ilusão de poderio. Apesar disso, estávamos cegos de ilusão. Os partidos 
		de esquerda estavam longe de representar algo parecido com os PCs da 
		Itália e da França, por exemplo, ou mesmo do peronismo na Argentina. 
		  
		Esperanças 
		Havia dois fatos novos. Um 
		deles, no Nordeste, com as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco 
		Julião. Outro, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, onde os Grupos 
		dos 11 formavam o embrião de um poder soviético, sob a liderança de 
		Leonel Brizola. Em São Paulo e no Rio, as “marchas da família com Deus e 
		pela liberdade”, financiadas e organizadas pelo Ipes (Instituto de 
		Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo Ibad (Instituto Brasileiro de Ação 
		Democrática), entidades acintosamente pró-norte-americanos, com o apoio 
		da CIA (órgão da inteligência dos Estados Unidos), revelaram alguns 
		milhares de mulheres marchadeiras (as chamadas “senhoras de Santana”), 
		mas estas eram debochadas pelos partidos de esquerda, que as rotulavam 
		de minorias ínfimas. 
		As dissensões e 
		dissidências entre os partidos de esquerda adquiriam às vezes o contorno 
		de uma guerra interna, deixando em geral de organizar uma autêntica 
		frente de esquerda para encarar os partidos de direita e as próprias 
		forças armadas. Até mesmo Leonel Brizola, organizador dos Grupos dos 11, 
		uma provável organização de poder, era visto com desconfiança por alguns 
		setores progressistas da sociedade e da política. Acredito que, se 
		tivéssemos tido tempo para forjar uma estrutura partidária 
		revolucionária, no prazo de mais um ano ou pouco mais, disseminada pelo 
		país, poderíamos contrapor ao exército brasileiro um exército 
		revolucionário como o exército vermelho organizado por Leon Trotsky, em 
		1917, na Rússia. 
		Enfim, os argumentos que 
		brandíamos a Giocondo Dias, acima relatados, não serviram para muito, já 
		que nossas viseiras não nos permitiam olhar para os lados. Talvez só 
		hoje possamos entender o que ele queria nos alertar naqueles idos de 
		março. E isso incluía muitos atalhos para o futuro.   
		
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