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Descolor

por Ronaldo Alvan de Vasconcellos

 

(William Bradford (1823-1889) Por do sol no ártico com arco iris)

 

Salvador, 17 de setembro de 1976.

Que diferença faz a data num escrito? Se a vida parou, o mundo parou. Já não se fazem mais dias como antigamente. Os dias de sol já não trazem mais alegrias. Os dias de chuva já não tem mais o cheiro da terra molhada. As, folhas já não caem mais no outono e a primavera é igual ao verão. Já não faz mais frio.

A água do mar está parada, e os surfistas que tentam deslizar, nas marolas, são todos mudos. Não consigo ouvir nenhum alarido.

Onde está aquele perfume que passava ondulante e deixava uma saudade da um momento ainda não vivido?

 

Onde está o estribo do bonde carregando ilusões e esperanças?

 

Onde está a menina que nos últimos dias da minha existência ouvia Celly Campello?

Cadê o verde que simbolizava esperança e hoje e apenas lembrança de mais uma árvore tombada?

E o amarelo— já que cores existem para todos os gostos— o ouro, para onde foi senão para uns poucos, a quem ainda é dado existir, enquanto pensam que estão vivendo?

E o azul, que, depois de Gagarin*, ficou provado ser apenas uma ilusão?

Talvez que só reste o branco, mas um branco diferente, cada dia mais branco, mais vazio. Já não se fazem mais brancos como antigamente.

Vermelho! Quanto sangue derramado em vão! Quantos heróis esquecidos. Quanto amor, quanto sonho, quanta música, quantos gênios, quantas aventuras e epopeias.

Quantas palavras e quantas mentiras. Bibliotecas inteiras. Crenças. Feitos. Estatuas. Fórmulas mágicas, poções...Alquimistas e bêbados. Professares, lentes, bedéis.

Máquinas que andam sozinhas, máquinas que pensam. Máquinas que visitam o Universo, que falam, transmitam, ensinam. Máquinas que destroem. Homens? Mulheres? Crianças?

Tudo somado, igual a nada. Onde estão vocês todos? Onde eu estava antes de morrer? Para onde foi Deus? E o sol, a lua e tudo o mais?

Mas lá longe, bem longe algo se mexe. Por um instante, parece que ressuscito. Um som. agora uma imagem. É ela. Está ali. Bem na minha frente. Meus olhos conseguem ver. É pequena e chora. E se movimenta. Se alegra com o Sol, se enxerga na Lua, se molha na chuva e sente a terra que sobe. Corre atrás das folhas que caem no outono, fura as ondas do mar. Corre, dança, desdobra as cores do Universo. Luta, derrama seu sangue. Brada aos céus e à terra. Mas também sonha, crê. Sonha com o Universo todo para si.

Por um instante eu renasço e volto a morrer. Mas na morte encontro Deus, o Sol, a Lua. Na morte encontro a vida.

A vida que continuou naquela Criança.


*Yuri Gagárin, primeiro homem no espaço, exclamou: “A Terra é Azul”