(René Magritte, 1964,
Amigo da Ordem)
Se você encontrar alguém
conversando sobre política pode estar certa que não é ele. Humor e
política não andam mais de braços dados. |
por Ronaldo Alvan
de Vasconcellos |
Perdi
meu humor. Na ocasião trajava uma calça velha já incolor de tão
desbotada, camisa rasgada e botas de cano longo furadas na sola e nos
lados.
Mas que isto não sirva de indicação se você se dispuser a procurá-lo. No
seu desaparecimento levou consigo uma mala cheia de pertences, e é
provável que, em suas andanças, já tenha trocado suas vestes.
Pela aparência não é fácil localizá-lo. Mestre inato da mímica e
expert em maquilagem, pode ter se transformado do velho quarentão
num guapo jovem de 21 anos.
Talvez que se o reconheça por aquela marca no queixo, produto de uma
desavença com um colega quando se pôs a improvisar trocadilhos.
Pelo seu modo do andar, duvido que o reconheça. Sofrendo desde muito
jovem de uma labirintite aguda, facilmente perde a noção do rumo. Ora
caminha para a direita, ora para a esquerda.
Não tente localizá-lo pelos seus hábitos. São muito inconstantes. Nem
tampouco pela sua situação financeira.
Seu status muda com a situação e tanto pode ser visto no grand monde
quanto na escola de samba. Dificilmente, porém, desfilando na avenida.
É introvertido, a menos quando bebe, e apesar da sua inconstância, duvido
que beba, pois só bebe para comemorar, e, como sua única coerência é ser
coerente, não vejo nenhuma razão para que ele comemore alguma coisa.
Se você encontrar alguém conversando sobre política pode estar certa que
não é ele. Humor e política não andam mais de braços dados.
Sobre futebol também já não fala, desde que expulsaram de campo aquele
atacante que só queria desabafar sua alegria junto a massa torcedora.
Sobre mulheres é possível que você ainda o encontre falando. Mas sobre
as mulheres de ontem, que já não as fazem mais como antigamente.
Talvez você o encontre dançando rock, se o rock for aquele que deu
origem ao outro, falsificado, de hoje.
Pode ser até que você consiga encontrá-lo numa igreja, mas nunca
ajoelhado.
É possível que esteja repassando na mente todas aquelas anedotas de
padre que ele desfilou pelos caminhos da vida.
Perdi meu humor, o agradeço a quem encontrá-lo. Sou capaz até de
gratificar. Com um talão inteiro de cupons do depósito restituível do
Governo Brasileiro.
HA HA HA HA HA HA HA.
Abraços
Alvan
Salvador, 03 do maio de 1977.
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