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(Goya, 1779, Conjuro ou as Bruxas)

 

A do Mal

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

Era uma bruxa do Mal. Mas todo mundo julgava que era do Bem.
Assim como a Verdade anda nua e a Mentira, pelo mundo, circula com as roupas da verdade, ela também vestia o manto do Bem, por cima da sua alma do Mal.

Seu segredo era, de fato, dos mais simples. Ela sabia agradar. Principalmente quando agradar, por exemplo, a um, significava desagradar ao outro.

Então, por exemplo, ela ia até o filho e dizia, com voz doce e ar compenetrado:
-- Você estava certo naquela discussão que teve ontem com a sua irmã. O problema, meu querido, é que a sua irmã se julga sempre correta, não admite recuar de suas posições, mesmo quando está quase convencida – como você quase a convenceu ontem – de que está errada. Mas não a queira mal por isso, você deve ser tolerante para com ela, é sangue do seu sangue, e vocês não devem viver assim brigados. Nem que ela tenha me dito, depois da discussão, que você é que era o intolerante, machista e irredutível...

Assim, o filho ficava admirando a compreensão de sua mãe e odiando a irmã que o chamara de intolerante e machista.

Depois, ela ia até a filha e dizia:

 

-- Minha querida, você deveria ter sido menos radical nas posições que tomou na discussão de ontem com seu irmão. Você tem que entender que, apesar de estar certíssima, deve dar um desconto a ele. Ele é o que é, fruto da nossa sociedade, e a nossa sociedade é mesmo machista. Você tem todo o meu apoio. Concordo completamente com tudo o que você disse ontem. Mas, peço, pegue mais leve com ele. Afinal, ele é seu irmão, sangue do seu sangue, ainda que, depois da briga, tenha me dito que você não passa de uma feminista radical e burra.(E aqui ela ri, um risinho sarcástico)... Mas... fazer o que, né? Não o queira mal por isso, ele é seu irmão...

Então era assim que a Bruxa do Mal sempre parecia ser a Bruxa do Bem, quando, em verdade, estava acirrando os conflitos entre os irmãos e sempre posando de boazinha e compreensiva.

Um dia, o marido de uma de suas primas, se suicidou. Ele andava bebendo muito, depois que perdera, num acidente de carro, seu único herdeiro homem. Vestiu-se todo chique, deitou-se no divã que havia na Biblioteca da casa e deu um tiro na cabeça.

A Bruxa Má, depois do enterro, foi consolar a prima:
-- Minha querida, sou totalmente solidária à sua dor. Perder o marido, ainda jovem como você, com três filhas para acabar de criar, não é uma situação cômoda. Conte comigo para tudo o que precisar. Você é uma mulher maravilhosa e vai acabar superando essa tragédia. Mas, querida, principalmente, não se sinta culpada. Eu sei que você fez de tudo para que ele superasse a dor da morte do filho de vocês. Não é sua culpa, se não conseguiu. Por favor, não se sinta culpada.

Uma semana depois a infeliz da prima estava no psiquiatra para se livrar de uma culpa que ela tanto não tinha quanto jamais pensara ter, até a conversa da Bruxa Má no velório...

Ela agia assim com todos. Amigos. Família. Marido. Seus próprios irmãos. Sentia aquele perverso prazer em ver todos se odiando. Ou odiando a si mesmos.

Mas todos pensavam amá-la, sem perceber que ela os jogava uns contra os outros, sempre fingindo compreender e apoiar. “É sábia” – diziam dela. Isso porque tendemos naturalmente a julgar sábio quem nos apoia e concorda com nossas opiniões. Por apoiados, ficamos cegos ao veneno de cobra que vem junto.

E assim foi por toda a sua vida. Todos a julgando sábia e tolerante, respeitando o seu misticismo de almanaque e frases edificantes que ela vivia citando enquanto acendia seus incensos ou sentava-se, para meditar, na postura do Buda.

Todos à sua volta, viviam destilando suas raivas e seus ódios, uns dos outros, porque era ela – sim, a sábia – que jogava, com inequívoca habilidade, uns contra os outros. E sempre saía como se os estivesse ajudando e apoiando.

Enganou quase todos, a vida inteira. Uma vida longa: 99 anos.
 

Ela morreu, ontem, afinal, de velhice. Gente ruim morre mais tarde. Morreu bem no dia em que seus conterrâneos choravam os mortos do Atentado do World Trade Center, há 21 anos passados. Morreu antes de ver a derrota, ou a vitória, do seu candidato do Mal à Presidência do Brasil. Morreu amargando a ausência de sorrisos a vir buscá-la na hora da passagem. Morreu cercada por familiares, subitamente consciente da falta de amor que sempre, afinal, a envolvera.

Sua semente, porém, ainda vive – e pode brotar – nas muitas almas que ela envenenou. Afinal, os que nascem para o desentendimento são quase sempre condenados a esperar por uma segunda chance sobre a Terra.

2022, setembro, 12