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Atrás

dos Óculos

(Ernest Dascals, O Bar)

 

Noite Paulistana, 1977

por

Isabel Fomm de Vasconcelos

 
 

 

As vinte e duas horas de uma chuvosa noite de sábado – sábado, o dia do presente* – tenho vontade de deixar de lado, as muitas histórias a trabalhar e que, verdade, me encantam.

 

Mas tenho vontade de escrever uma outra nova – antiga -- e incógnita história de um grande bigode. Uma história que presenciei, uma história cheia de doses de whisky e versos de Carlos Drummond de Andrade.


O homem, atrás dos óculos e do bigode, e sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos. O homem atrás dos óculos e do bigode.”**
 

 

Pensando bem, minha amiga, talvez não chegue a ser uma história. Talvez continue, apesar da minha esforçada escrita, apenas a ser uma Incógnita. Embora o personagem tenha afirmado, meio desbotatamente, que a Incógnita fosse você... (Eu?!!? – você exclamou então -- Eu sou um livro aberto...).
 

Um homem atrás dos óculos, do bigode e do balcão. No velho bar. Uma Incógnita.
 

O bar do homem, para além dos óculos, do bigode e do balcão, recebia toda a fina flor da juventude pensante pela liberdade (e, por isso mesmo, naquele tempo, maldita), todos os jovens intelectuais perdidos numa vida censurada e de tão poucas perspectivas para seus sonhos de um mundo mais justo, sonhos descritos em versos de poetas da MPB, sonhos que atravessavam o oceano, o continente, num planeta que não confiava em ninguém com mais de 30 anos e pregava a paz e o amor. O bar dos artistas cênicos e plásticos, o bar dos cartunistas, dos letristas, dos músicos, dos filósofos e talvez até dos poetas. Um oásis cultural no deserto dos que queriam “subir na vida” e “levar vantagem em tudo.” ***


Vejamos: você, minha jovem, passou anos frequentando o mesmo bar. Dez anos, vendo sem ver aquela mesma imagem, muito mal percebida, atrás do balcão. O dono do bar. O que interessa quem seja? Está atrás do óculos, do bigode, do balcão, da caixa registradora, dos muitos cheques – boêmios e/ou atletas – telefone, garrafas, a tomar suas xícaras e xícaras de café amargo, talvez para se conservar bem esperto e não deixar que bêbados intelectuais o passassem para trás. Foi um tempo triste aquele, hein, menina? Foi ano da sua chegada. Deixando no passado a casa à beira mar, a fala macia do seu povo amado, a vida macia, o sol...
 

Para vir à grande Metrópole, atrás de outro sonho: o do sucesso, o do reconhecimento profissional... Balela! Dez anos e você ainda estava lá: no mesmo bar!
 

Trabalhar quinze horas por dia, trabalhar para manter de pé um cotidiano que você odiava, assinar lista de presença numa faculdade vagabunda, apenas pelo status do diploma... Travestir-se em executiva, loura, magra, esgotada, de saco cheio, covardona, frustrada.

 

Tudo isso? Pois é, desgraça, se pouca, é bobagem.

 

E, para completar o quadro dantesco nessa cidade fria, apaixonar-se por mais um intelectual profundamente neurotizado, elitista, milionário, com crises periódicas de impotência sexual, talvez por uma bissexualidade ou uma homossexualidade não assumida, e que – você não sabia ainda, com poderia saber? – trinta anos depois seria figura importante no cenário político nacional, Ministro, Secretário e quase-quase muito mais.
 

Foi bem por essa época, aquele noite em que houve uma briga no bar.

 

O fleugmático intelectual acima citado continuou jantando, indiferente às garrafas de cerveja que cruzavam ferozmente o ar, atiradas pelos combatentes, quase a arrancar-lhe o nariz. E você. hein? Você lá, durona, fingindo a mesma indiferença (mas louca de vontade de esconder-se embaixo da mesa) e a mesma fleugma, atenta para desviar o corpo, caso um daqueles etílicos bólidos ameaçassem atingi-la...

 

Aí então o homem atrás do óculos, do bigode e do balcão, saltou bravamente para dentro ao Bar, pulando, como se atleta fosse, o artefato de madeira e mármore que o separava de seus clientes, como um terrível Superman do western americano, e subjugando - gloriosamente, aliás,- os baderneiros sob o cano de uma possante espingarda.


O Saloon voltou à paz dos bêbados comuns.
 

Interessante. Ficou sendo o homem atrás dos óculos, do bigode e da coragem.
 

Detrás de tudo ele saiu alguns meses mais tarde. Sua fossa, minha filha, era então terrível, você se lembra? Já desiludida com o tal intelectual ricaço, com o trabalho, com a Universidade, com o País e com você mesma... Você queria achar o telefone daquele menino louro com cara de Petit Prince, talvez uma melhor perspectiva de relações menos neuróticas, pelo menos tinha sido o que ele parecia prometer, na noite anterior, no bar de sempre. Mas achar como? Estava tão bêbada... A lista telefônica, três mil quinhentas e sessenta e sete páginas de letras mínimas... Onde estaria escondido o menino?

 

Pois o homem atrás do bigode, fraternalmente, com uma ternura que você pensou adivinhar para além das lentes dos óculos, achou o número para você. E então, minha jovem, você imaginou aquela cara, simpática – o sorriso atrás do bigode - dançando pela noite, triste noite, linda noite, dos paulistanos. Imaginou a mesma atitude de simples compreensão (ou você teria pensado em tolerância?) para com as misérias alheias.
 

Assim, embora ninguém pareça ter notado, passou a haver um homem, mesmo que escondido atrás dos óculos, do bigode, do balcão.
 

Homem sério, simples e forte.”**
 

Depois, dali pra frente, você nem tomou plena consciência disso, minha atormentada jovem, mas bem que reparou no homem, uma noite qualquer, braço passado em torno dos ombros de alguma mulher que, evidentemente, não era você. Notou bem isso, não? Um frio - "Que fria essa noite, né?" - e o relógio eletrônico, imenso, pousado sobre o prédio do outro lado da avenida, implacável: 26ºC. Você notou, minha cara jovem, toda a vez que o homem não estava atrás do balcão, mas por detrás de tantas e tantas diferenças.


No entanto, quem foi que guardou seu carro naquela noite em que o porre foi tanto, tanto, a ponto de lhe causar amnésia? Noite seguinte, quem foi que sentou-se, pela primeira vez em dez anos, à sua mesa? E quando você tentou desculpar-se pelo porre da noite anterior -- que classe, hein? -- ouviu de volta um “Não estive aqui ontem à noite"...
 

Tem mais. Tem mais... Quem foi que respondeu ao comentário ocasional que você fez ao seu amigo, noite meio fossenta, porta de bar? "Menina, e o amor?" – perguntou o amigo. E você : "Uma chatice. Hoje beija, amanhã não beija"** E o homem, de repente, saindo detrás do bigode: “Melhor viver o hoje!
 

"O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho, Carlos. Amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija. Depois de amanhã é domingo e, segunda feira ninguém sabe o que será.”**
 

Ah, minha triste e esperançosa menina, você nem notava. Mas ele estava ali todo o tempo, havia dez anos, escondido atrás dos óculos, do bigode, do balcão. Noites adentro ele ouviu, de orelhada, as suas histórias.
Um dia deu seu ombro para você descansar sua cabeça e ninguém cantou aquela velha música popular: “Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora. E conta toda a tua mágoa, toda para mim...” Deu seu corpo, para você esquecer-se das tantas e tantas carências; sua cama, para você curar seus ridículos porres; seus ouvidos, para você despejar suas angústias... E ninguém contou aquele final do caçador desmascarando uma falsa vovó, o lobo querendo devorar a Chapeuzinho.
 

Não houve final. “E segunda-feira ninguém sabe o que será”.**
 

Sério, simples e forte. Um homem atrás dos óculos e do bigode.”**
 

Você, minha linda jovem, distraída, por tantos anos, mergulhada nos seus próprios pequenos dramas da noite na grande cidade, no trabalho frustrante e mecânico, no país arrolhado pela ditadura... E o homem sempre soube, sempre soube o caminho até sua porta.

 

"The long and winding road that leads to your door will never desappear, I've seen that road before. It always leads me here, lead me to you door..."****
 

 

* Vinicius de Moraes
** Carlos Drummond de Andrade
*** Lei de Gerson – jogador de futebol, frase dita num comercial de TV.

**** The Beatles, Lennon & McCartney

1977 junho 11
2021 janeiro 23

 

 

Os Poemas de Drummond, neste texto:

 

 

(Mervin Jules, 1977, Rosy's Bar)

 

(Van Gogh, 1888, Cena de Taverna)

 

(Alberto Sughi, Bar)

 

(Betina Paola, no Bar)

 

(Manet, 1788, no Bar)

 

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Não se mate.