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Enchentes Paulistanas

As Mesmas, Há Quatro Décadas

Crônicas de Isabel Fomm, em 1978, 1980 e 2020

 


1978 Fevereiro 26

 

Presença de Macunaíma
no verão paulistano


(em cinco "takes" rápidos)

1.
Pitoresca, a cadeira do fiscal de ônibus desliza pela correnteza do subitamente renascido Rio Anhangabaú. Um transeunte sugere que talvez seja possível aproveitar a enchente para fazer um surfezinho na tábua do metrô. Uni gigantesco tapume que ataca os nadadores do Vale. Os moleques- - nem tão abandonados quanto se pensa - estão cobrando 100 cruzeiros para empurrar os carros- que param dentro d’água. Motoristas em pânico. O céu, repentinamente negro. Macunaíma salta do Viaduto do Chá. E arrebenta a capota de um carro que não estava no seguro

2.
Amélia, a maquiagem escorrendo em borrões tecnicolor, sentir-se-ia mais à vontade no maiô do Ataulfo. Ergue o vestido florido, última moda de verão, descalça os tamancos (a moda exige saltos de 10 cm de altura) e, água pelos joelhos, chega a tempo de esmurrar a porta do ônibus. Algo, cinco dedos submersos beliscam lhe a perna.

3.
Os bilhetes da Federal talvez carreguem a sorte grande para dentro dos bueiros, inventando uma nova versão das lendas de Cobras Grandes, dos monstros e das entidades subaquáticos. Macunaíma lamenta a cidade no planalto. Fosse urna dessas capitais de litoral e teria ele alguns desabamentos em morros. Para distrair-se, sabem como é.

4.
A chuva e a escuridão parecem durar pouco mais de três quartos de hora. Pessoas presas nos elevadores. Telefones enguiçados. Galerias estourando. Negócios desfeitos. Amantes desencontrados Desastres automobilísticos. Tudo bem rápido. Em ritmo de cidade grande.

5.
Macunaíma salta tentando alcançar a cadeira do fiscal. Mas ela já desaba, rumo ao Buraco do Adhemar. Uma onda mais forte e Macunaíma, leve como uma pluma, sobe. Do, terraço do Itália, repentinamente incorporando certos poderes biônicos, Macunaíma dá "uma geral" pela São Paulo enegrecida. Quinze minutos de água e a lembrança de Atlântida já seria café pequeno. Desesperado ante a falta de perspectivas para armar maiores estrepolias, o anti-herói caminha de volta à sua prateleira da Biblioteca. Não sem antes, é claro, entrar num cinema para ver a última pornochanchada.

Isabel Fomm de Vasconcellos

1978 02 26

Publicado no Jornal O Diário Popular
 

 
 

 

 

2020 Fevereiro 10

God Save the Tree

 

Enchentes na cidade de São Paulo não são nada de novo, acontecem hoje, aconteciam no começo do século passado e, muito provavelmente, continuarão a acontecer.

Em 1978 e em 1980, escrevi, numa coluna semanal que eu tinha no jornal O Diário Popular (então um dos três maiores jornais da nossa metrópole), crônicas sobre enchentes assustadoras, de proporções que me pareciam inaceitáveis para uma capital tão produtiva como a nossa e que não deveria ter seu ritmo perturbado por acontecimentos passíveis de prevenção e/ou controle.

Foi apenas quase duas décadas depois que o então prefeito da cidade, Paulo Maluf, começou as obras do primeiro “piscinão” – hoje existem 32, insuficientes como se viu nesse 10 de fevereiro, que são considerados pelo Prof. Engenheiro Júlio Cerqueira Cesar Neto, como “mitos” – caros, complicados, exigindo desapropriações e ocupação de um subsolo já bastante lotado na cidade – é a opinião dele.

São Paulo precisa de mais árvores e mais cuidado com elas, para que não caíam, às centenas, na primeira tempestade de verão. Por que será que elas não caem com as chuvas nas matas? As árvores de São Paulo caem porque são maltratadas. Muitas têm pragas e consequente corrosão nos troncos e galhos. Outras são mutiladas por funcionários de dezenas de companhias que precisam passar seus milhares de cabos antiestéticos pelos postes das ruas e, consequentemente, entre os galhos das árvores. Podadas sem qualquer técnica, elas se desequilibram, um vento mais forte as derruba.

Sonho com a ocupação do subsolo, não pelos piscinões, mas sim pelos cabos, como é aqui na Paulista. Nada de milhares de cabos se amontoando e enfeiando as ruas, pelos postes. Há dez anos fui parada por um repórter de TV que perguntava aos transeuntes se deveríamos enterrar os cabos.
-- É claro – respondi.
E ele:
-- Mas levaria 10 anos.
E eu: --
E daí? Se começarmos agora, daqui a 10 anos estará pronto.
Ninguém começou, porque nenhum prefeito colherá os louros de uma batalha que só será vencida dali a uma década.

Sonho com a ocupação de todas as calçadas da cidade por árvores e mais árvores. Sonho com grandes condomínios que, além de grandes casas e/ou grandes prédios tenham também grandes árvores.
Isaac Asimov, um dos mestres da literatura de ficção científica, certa vez esteve numa feira de inventores nos EUA e viu um sujeito que criara uma máquina de despoluir o ar. O escritor disse a ele:
-- Ué! Pra que isso? Já temos as árvores.
Árvores são máquinas de despoluir o ar. Árvores são refrescantes e combatem o calor excessivo, assim como seguram parte da chuva em seus galhos e folhas.

Nosso prefeito, Bruno Covas, disse ontem em coletiva de imprensa: as medidas preventivas que a administração municipal vem adotando, como o maior cuidado com as árvores e a limpeza dos piscinões, evitaram que a tragédia fosse ainda maior.

Vivemos, esse 10 de fevereiro, sob a mais forte chuva registrada, nesse mês, em 37 anos. Foi exatamente nos anos 1980 que escrevi a minhas indignadas crônicas sobre a cidade espetacular, progressista, trabalhadora, que parava por causa da água que o céu nos mandava.
Não pensei que, quatro décadas depois, ainda estaria escrevendo a mesma coisa, com a mesma indignação.

Colégios sem aula, rodízio suspenso, mercadorias e alimentos perdidos em feiras, casas, centrais de abastecimento. Um homem de 33 anos, morto, arrastado pela enxurrada. Horas e horas estancadas no trânsito. Transporte coletivo caótico, trens imobilizados. Famílias perdendo bens móveis, roupas, eletrodomésticos e o grande saldo da sujeira, sujeira nas ruas, nas casas, nas lojas, nas praças, em todo o lugar.
Assim como precisamos de árvores, precisamos de educação, cidadania, espírito de coletividade. Somos todos interdependentes, não apenas uns dos outros, mas de toda a Mãe Natureza. Somos irmãos de tudo o que está vivo sobre o planeta.

Infelizmente, a maioria não se dá conta disso. Uns poucos é que têm que lutar com afinco para impedir que esse Aquecimento Global prossiga matando flora, fauna e humanos também.

A elevação do nível dos oceanos mostra sua cara no enorme iceberg – do tamanho da cidade de São Paulo, 1500 km2 – que se desprendeu e vem flutuando à solta pelo mar e mostra sua cara nas casas à beira mar, que desabam, porque a praia sumiu, coberta pela água que subiu seu nível, no nordeste brasileiro. Em Berlim, 2019 não teve neve e a temperatura ficou apenas 2 graus abaixo de zero. Em Paris e Roma, nos últimos verões, os europeus – que outrora viajavam aos países tropicais para saber o que é calor – derretem sob condições meteorológicas antes impensáveis para essas cidades, beirando os 40 graus à sombra em verões escaldantes.

Tempestades, terremotos, tsunamis, ciclones, furacões, tornados, cada vez mais fortes e frequentes são anunciados pela maior parte da mídia mundial como “desastres naturais” coisa que já foram um dia. Hoje não são mais. Hoje são desastres artificialmente incrementados pela ação humana sobre o planeta, pela destruição do verde, pela poluição do ar, pelo desmatamento constante e mercenário.

Sou apenas uma jardineira de apartamento, em constante comunhão com a Natureza, através das minhas humildes plantinhas.

Mas a menina Greta fala por mim, fala por muitos.

Quando nossos descendentes perceberem que o tal do progresso transformou a terra em um lugar inabitável, talvez ainda haja uma chance de retroceder e de reconquistar o respeito que devemos à toda a vida que aqui, conosco, habita.

Deus salve as árvores.
Isabel Fomm 2020 02 11

 

 

(Leonid Afremov, Hard Rain)

 

 

(Reprodução Diário Popular)

 

 

(Reprodução Diário Popular)

 

 

 

(Leonid Afremov,

Rainy Day in the City)

 

1980 Fevereiro 10

 

Nós, Encharcados

 

Como sempre, eis Macunaíma na fazendo das suas no verão. Desta vez São Paulo tem 192 pontos sujeitos à enchente, o que significa 19 pontos a mais que o verão passado.

“É Macunaíma” - reforçam as autoridades, quando perguntadas. Culpa do povo, que até sucatas de automóveis joga nos bueiros e galerias. Pensa se numa campanha educativa, mobiliza-se gente, recursos, sempre em número astronômico, para tentar impedir as enchentes ou socorrer suas vítimas.

A todas essas, o anti-herói se diverte. A represa do Guarapiranga vai, em ritmo acelerado, atingindo seu nível, para a glória dos esquiadores. E pra se falar em Brasil, outras represas ameaçam seriamente a vida das populações ribeirinhas do São Francisco, onde – entre Petrolina e Juazeiro – a água atinge a espantosa cifra de seis mil e oitocentos metros cúbicos por segundo. Será mesmo Macunaíma? Certo é que nosso anti-herói se diverte.

Desde 9 de dezembro não se vê céu azul limpo em São Paulo. E Macunaíma, vai requintando suas estrepolias. Nos verões passados contentava-se em cobrar fortunas para empurrar carros afogados nas enchentes do centro da cidade; em assaltar mocinhas, esquecidas da bolsa na preocupação de segurar as saias e, até mesmo, em perseguir objetos que a enxurrada carregava.

Mas, neste começo de década, pretende aprimorar suas diversões. Mais algumas semanas de chuva e Macunaíma fará brotar pequenas ervas por entre os úmidos cabelos dos paulistanos, ervinhas verdes que combinarão perfeitamente, num ritmo dégradé, com o esverdeado constante das peles enfurnadas e morrerá de rir dos músculos atrofiados, subitamente transformados em esponjas. Vai fazer brotar algas de açafrão nas roupas estendidas nos varais. Colocará ainda mais água nas nossas gasolinas e em nosso leite. E fará grandes pescarias na umidade relativa do ar.

Enquanto isso, as autoridades continuarão culpando o povo e sua falta de educação por todas as calamidades causadas por enchentes. Mais um ano passará, investirão o dinheiro do povo em providências preventivas insuficientes e, quando outro verão vier, a história se repetirá. Macunaíma leva a culpa. Mas nós, encharcados de desesperanças, já estamos acostumados.

Isabel Fomm de Vasconcellos

1980 02 10

Publicado no Jornal O Diário Popular