1978 Fevereiro
26
Presença de
Macunaíma
no verão paulistano
(em cinco "takes" rápidos)
1.
Pitoresca, a cadeira do fiscal de ônibus desliza pela correnteza do
subitamente renascido Rio Anhangabaú. Um transeunte sugere que talvez
seja possível aproveitar a enchente para fazer um surfezinho na tábua do
metrô. Uni gigantesco tapume que ataca os nadadores do Vale. Os
moleques- - nem tão abandonados quanto se pensa - estão cobrando 100
cruzeiros para empurrar os carros- que param dentro d’água. Motoristas
em pânico. O céu, repentinamente negro. Macunaíma salta do Viaduto do
Chá. E arrebenta a capota de um carro que não estava no seguro
2.
Amélia, a maquiagem escorrendo em borrões tecnicolor, sentir-se-ia mais
à vontade no maiô do Ataulfo. Ergue o vestido florido, última moda de
verão, descalça os tamancos (a moda exige saltos de 10 cm de altura) e,
água pelos joelhos, chega a tempo de esmurrar a porta do ônibus. Algo,
cinco dedos submersos beliscam lhe a perna.
3.
Os bilhetes da Federal talvez carreguem a sorte grande para dentro dos
bueiros, inventando uma nova versão das lendas de Cobras Grandes, dos
monstros e das entidades subaquáticos. Macunaíma lamenta a cidade no
planalto. Fosse urna dessas capitais de litoral e teria ele alguns
desabamentos em morros. Para distrair-se, sabem como é.
4.
A chuva e a escuridão parecem durar pouco mais de três quartos de hora.
Pessoas presas nos elevadores. Telefones enguiçados. Galerias
estourando. Negócios desfeitos. Amantes desencontrados Desastres
automobilísticos. Tudo bem rápido. Em ritmo de cidade grande.
5.
Macunaíma salta tentando alcançar a cadeira do fiscal. Mas ela já
desaba, rumo ao Buraco do Adhemar. Uma onda mais forte e Macunaíma, leve
como uma pluma, sobe. Do, terraço do Itália, repentinamente incorporando
certos poderes biônicos, Macunaíma dá "uma geral" pela São Paulo
enegrecida. Quinze minutos de água e a lembrança de Atlântida já seria
café pequeno. Desesperado ante a falta de perspectivas para armar
maiores estrepolias, o anti-herói caminha de volta à sua prateleira da
Biblioteca. Não sem antes, é claro, entrar num cinema para ver a última
pornochanchada.
Isabel Fomm de Vasconcellos
1978 02 26
Publicado no
Jornal O Diário Popular
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2020 Fevereiro 10
God Save the Tree
Enchentes na cidade de São Paulo
não são nada de novo, acontecem hoje, aconteciam no começo do século
passado e, muito provavelmente, continuarão a acontecer.
Em 1978 e em 1980, escrevi, numa coluna semanal que eu tinha no jornal O
Diário Popular (então um dos três maiores jornais da nossa metrópole),
crônicas sobre enchentes assustadoras, de proporções que me pareciam
inaceitáveis para uma capital tão produtiva como a nossa e que não
deveria ter seu ritmo perturbado por acontecimentos passíveis de
prevenção e/ou controle.
Foi apenas quase duas décadas depois que o então prefeito da cidade,
Paulo Maluf, começou as obras do primeiro “piscinão” – hoje existem 32,
insuficientes como se viu nesse 10 de fevereiro, que são considerados
pelo Prof. Engenheiro Júlio Cerqueira Cesar Neto, como “mitos” – caros,
complicados, exigindo desapropriações e ocupação de um subsolo já
bastante lotado na cidade – é a opinião dele.
São Paulo precisa de mais árvores e mais cuidado com elas, para que não
caíam, às centenas, na primeira tempestade de verão. Por que será que
elas não caem com as chuvas nas matas? As árvores de São Paulo caem
porque são maltratadas. Muitas têm pragas e consequente corrosão nos
troncos e galhos. Outras são mutiladas por funcionários de dezenas de
companhias que precisam passar seus milhares de cabos antiestéticos
pelos postes das ruas e, consequentemente, entre os galhos das árvores.
Podadas sem qualquer técnica, elas se desequilibram, um vento mais forte
as derruba.
Sonho com a ocupação do subsolo, não pelos piscinões, mas sim pelos
cabos, como é aqui na Paulista. Nada de milhares de cabos se amontoando
e enfeiando as ruas, pelos postes. Há dez anos fui parada por um
repórter de TV que perguntava aos transeuntes se deveríamos enterrar os
cabos.
-- É claro – respondi.
E ele:
-- Mas levaria 10 anos.
E eu: --
E daí? Se começarmos agora, daqui a 10 anos estará pronto.
Ninguém começou, porque nenhum prefeito colherá os louros de uma batalha
que só será vencida dali a uma década.
Sonho com a ocupação de todas as calçadas da cidade por árvores e mais
árvores. Sonho com grandes condomínios que, além de grandes casas e/ou
grandes prédios tenham também grandes árvores.
Isaac Asimov, um dos mestres da literatura de ficção científica, certa
vez esteve numa feira de inventores nos EUA e viu um sujeito que criara
uma máquina de despoluir o ar. O escritor disse a ele:
-- Ué! Pra que isso? Já temos as árvores.
Árvores são máquinas de despoluir o ar. Árvores são refrescantes e
combatem o calor excessivo, assim como seguram parte da chuva em seus
galhos e folhas.
Nosso prefeito, Bruno Covas, disse ontem em coletiva de imprensa: as
medidas preventivas que a administração municipal vem adotando, como o
maior cuidado com as árvores e a limpeza dos piscinões, evitaram que a
tragédia fosse ainda maior.
Vivemos, esse 10 de fevereiro, sob a mais forte chuva registrada, nesse
mês, em 37 anos. Foi exatamente nos anos 1980 que escrevi a minhas
indignadas crônicas sobre a cidade espetacular, progressista,
trabalhadora, que parava por causa da água que o céu nos mandava.
Não pensei que, quatro décadas depois, ainda estaria escrevendo a mesma
coisa, com a mesma indignação.
Colégios sem aula, rodízio suspenso, mercadorias e alimentos perdidos em
feiras, casas, centrais de abastecimento. Um homem de 33 anos, morto,
arrastado pela enxurrada. Horas e horas estancadas no trânsito.
Transporte coletivo caótico, trens imobilizados. Famílias perdendo bens
móveis, roupas, eletrodomésticos e o grande saldo da sujeira, sujeira
nas ruas, nas casas, nas lojas, nas praças, em todo o lugar.
Assim como precisamos de árvores, precisamos de educação, cidadania,
espírito de coletividade. Somos todos interdependentes, não apenas uns
dos outros, mas de toda a Mãe Natureza. Somos irmãos de tudo o que está
vivo sobre o planeta.
Infelizmente, a maioria não se dá conta disso. Uns poucos é que têm que
lutar com afinco para impedir que esse Aquecimento Global prossiga
matando flora, fauna e humanos também.
A elevação do nível dos oceanos mostra sua cara no enorme iceberg – do
tamanho da cidade de São Paulo, 1500 km2 – que se desprendeu e vem
flutuando à solta pelo mar e mostra sua cara nas casas à beira mar, que
desabam, porque a praia sumiu, coberta pela água que subiu seu nível, no
nordeste brasileiro. Em Berlim, 2019 não teve neve e a temperatura ficou
apenas 2 graus abaixo de zero. Em Paris e Roma, nos últimos verões, os
europeus – que outrora viajavam aos países tropicais para saber o que é
calor – derretem sob condições meteorológicas antes impensáveis para
essas cidades, beirando os 40 graus à sombra em verões escaldantes.
Tempestades, terremotos, tsunamis, ciclones, furacões, tornados, cada
vez mais fortes e frequentes são anunciados pela maior parte da mídia
mundial como “desastres naturais” coisa que já foram um dia. Hoje não
são mais. Hoje são desastres artificialmente incrementados pela ação
humana sobre o planeta, pela destruição do verde, pela poluição do ar,
pelo desmatamento constante e mercenário.
Sou apenas uma jardineira de apartamento, em constante comunhão com a
Natureza, através das minhas humildes plantinhas.
Mas a menina Greta fala por mim, fala por muitos.
Quando nossos descendentes perceberem que o tal do progresso transformou
a terra em um lugar inabitável, talvez ainda haja uma chance de
retroceder e de reconquistar o respeito que devemos à toda a vida que
aqui, conosco, habita.
Deus salve as árvores.
Isabel Fomm 2020 02 11 |
(Leonid Afremov, Hard Rain)
(Reprodução Diário
Popular)
(Reprodução Diário
Popular)
(Leonid Afremov,
Rainy Day in the City)
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1980 Fevereiro 10
Nós, Encharcados
Como sempre, eis Macunaíma na
fazendo das suas no verão. Desta vez São Paulo tem 192 pontos
sujeitos à enchente, o que significa 19 pontos a mais que o verão
passado.
“É Macunaíma” - reforçam as autoridades, quando perguntadas. Culpa
do povo, que até sucatas de automóveis joga nos bueiros e galerias.
Pensa se numa campanha educativa, mobiliza-se gente, recursos,
sempre em número astronômico, para tentar impedir as enchentes ou
socorrer suas vítimas.
A todas essas, o anti-herói se diverte. A represa do Guarapiranga
vai, em ritmo acelerado, atingindo seu nível, para a glória dos
esquiadores. E pra se falar em Brasil, outras represas ameaçam
seriamente a vida das populações ribeirinhas do São Francisco, onde
– entre Petrolina e Juazeiro – a água atinge a espantosa cifra de
seis mil e oitocentos metros cúbicos por segundo. Será mesmo
Macunaíma? Certo é que nosso anti-herói se diverte.
Desde 9 de dezembro não se vê céu azul limpo em São Paulo. E
Macunaíma, vai requintando suas estrepolias. Nos verões passados
contentava-se em cobrar fortunas para empurrar carros afogados nas
enchentes do centro da cidade; em assaltar mocinhas, esquecidas da
bolsa na preocupação de segurar as saias e, até mesmo, em perseguir
objetos que a enxurrada carregava.
Mas, neste começo de década, pretende aprimorar suas diversões. Mais
algumas semanas de chuva e Macunaíma fará brotar pequenas ervas por
entre os úmidos cabelos dos paulistanos, ervinhas verdes que
combinarão perfeitamente, num ritmo dégradé, com o esverdeado
constante das peles enfurnadas e morrerá de rir dos músculos
atrofiados, subitamente transformados em esponjas. Vai fazer brotar
algas de açafrão nas roupas estendidas nos varais. Colocará ainda
mais água nas nossas gasolinas e em nosso leite. E fará grandes
pescarias na umidade relativa do ar.
Enquanto isso, as autoridades continuarão culpando o povo e sua
falta de educação por todas as calamidades causadas por enchentes.
Mais um ano passará, investirão o dinheiro do povo em providências
preventivas insuficientes e, quando outro verão vier, a história se
repetirá. Macunaíma leva a culpa. Mas nós, encharcados de
desesperanças, já estamos acostumados.
Isabel Fomm de Vasconcellos
1980 02 10
Publicado no
Jornal O Diário Popular
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