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(Tarsila do Amaral, 1904, Sagrado Coração de Jesus)
"Seu pai estava certo. O Brasil andava para trás, mas esse parecia ser o desejo da maioria do nosso povo e a obrigação de qualquer democrata, como ele e os membros de sua família, era a de curvar-se e aceitar a decisão majoritária." |
Amai-vos Uns aos Outros conto de Natal de Isabel Fomm de Vasconcellos, 2019 |
Fim de tarde. Guilherme faz o que gosta: volta
para seu apartamento, a pé, do trabalho. A Avenida Paulista está lotada
por pedestres mais do que normalmente. Tinha sido um dia agradável de
começo de verão, nada daquele calor tórrido como vinha acontecendo nos
últimos anos, efeito triste do aquecimento global. |
Ainda bem – pensa Guilherme
– que tive a sorte de nascer no Brasil do século XXI. Posso amar a
quem quiser amar, a despeito do pensamento retrógado do nosso atual
presidente e da crença, sem fundamento científico, dos evangélicos
daquelas igrejas feitas apenas para colher dízimos. Em alguns países, do outro lado do mundo, ainda vigoravam condenações e até pena de morte aos homossexuais. Aí é que está o busílis – como diria seu avô. – O mundo, tão tecnologicamente evoluído, continua socialmente primitivo. Agora, por exemplo, é de novo Natal. A Avenida Paulista já fôra palco, quando Guilherme era criança e adolescente, de grandes decorações natalinas, os bancos competindo entre si para oferecer aos transeuntes um espetáculo mais belo do que o outro. Mas, no natal de 2013 ou 2014, ele não sabia bem, aparecera tanta gente, mas tanta gente, para apreciar as decorações de Natal na avenida, que a prefeitura tivera que improvisar, fechando uma faixa de rodagem da avenida aos carros, porque as enormes calçadas não davam conta de abrigar tamanha multidão. Dali para a frente, com a desculpa da crise econômica, os Bancos foram diminuindo a decoração natalina até esquecê-la por completo. A Prefeitura idem. Mesmo assim, hoje, cinco ou seis anos depois, as pessoas ainda andam à toa pela Paulista na época do Natal. É verdade que, nos últimos anos, o comércio – que até então era quase inexistente na avenida – ali tinha se instalado. Shoppings, grandes magazines, vieram para ficar. E o Natal, aqui no Ocidente, tanto na Europa quanto na América, era a mais importante data do comércio. Quase perdia para o Dia das Mães, no Brasil e, aqui também, estava se igualando, em termos de vendas, à Black Friday- esta, no entanto, também relacionada às compras para as festas de final de ano. O Natal era a data em que as lojas, físicas ou virtuais, mais faturavam. Mundo tecnologicamente avançadíssimo e socialmente primitivo – pensa Guilherme, sentindo o celular vibrar dentro do bolso de sua calça jeans. Existia, como tão bem dissera o Papa Francisco, uma enorme distância entre o sentido da festa e a sua comemoração propriamente dita. “Tudo falso – teria dito o Pontífice – Festas, Presépios, Mensagens... O mundo continua em guerra, ainda não entendeu o caminho da Paz”. Havia, sim, um certo sentimento coletivo de confraternização por causa das festas de Natal. Mesmo assim, esse sentimento estava longe de ser maior do que os pequenos ódios cotidianos que, atualmente, as pessoas tanto cultivavam. O Brasil retrocedera política e socialmente – afirmava seu pai, o bem sucedido industrial, que fôra jovem e hippie nos anos 1960. Aquele garoto que “amava os Beatles e os Rolling Stones” acabara transformando em lucrativo negócio a moda que surgira então. A liberdade virara ouro nas mãos de seu pai, e a liberdade fôra “uma calça velha, azul e desbotada”. Seu pai abrira, no começo dos 1970, uma pequena confecção que fabricava jeans, e hoje tinha um império que fornecia produtos diversos de vestuário para o mundo todo, principalmente para os EUA, onde os biquínis brasileiros possuíam alta cotação. Guilherme nascera em 1996 e sua mãe, que já tinha 45 anos e pensava estar na menopausa, deixara de tomar a pílula e a suposta menopausa se revelara, de fato, gravidez. Sua mãe era feminista e achava que as mulheres que tinham filhos tornavam-se, em primeiro lugar, definidas pela maternidade. Ela era uma mulher de negócios, nunca quisera ser mãe. Mas acabara sendo – ri Guilherme, em pensamento. Orgulha-se dela, ainda à frente de sua agência de assessoria de imprensa, cuja carteira de clientes inclui empresas de peso e muitas celebridades. Ela fôra a quarta esposa de seu pai. Vivia dizendo que não se casara até os 33 anos porque, de fato, ainda não encontrara o amor e que jamais se casaria por outro motivo qualquer, que não fosse o amor. Já estava duvidando da existência desse sentimento quando conheceu aquele quarentão divorciado três vezes e imediatamente se apaixonou. Casaram-se uma semana depois de se terem conhecido. Uma história e tanto! – pensa Guilherme. Agora, aos 23 anos de idade, Guilherme é o braço direito do império comercial de seu pai. Responsável pelo marketing e comunicações, implementara mudanças que tinham resultado em ainda mais sucesso para a empresa. Seus pais se orgulhavam dele, mas o atual presidente da república, se pudesse, mandaria matá-lo... apenas porque ele era casado com outro homem. Grande crime. Aí residia a enorme hipocrisia da nossa sociedade. Na incapacidade para o amor. Em lugar deste, apenas a intolerância, a incompreensão, a ilusão de ser possuidor da verdade universal. Casamentos aconteciam raramente por amor, como era o caso dele com Gustavo. A maioria dos casamentos heteros, hoje em dia, se davam por conveniência, por, no máximo, atração sexual (que logo se dissolvia em nada). Escolhia-se a pessoa com que se passaria o resto da vida, pelo menos em teoria, por critérios de conveniência e não por amor. Historicamente, é claro, ele sabia, isso não era nenhuma novidade. Mas houvera uma época, no Ocidente, entre os anos 1920 e 1970, em que as pessoas realmente se uniam por amor, acima de tudo por amor. Ele próprio era fruto desse amor, seus pais se uniram por amor e mais nada. E eram felizes ate hoje, ambos já quase na casa dos setenta e ainda se podia ver a chama da paixão nos olhos deles e se podia adivinhar que a sua cama era quente e ativa. Amor, porém, era um dos artigos mais raros da atualidade. Nas redes sociais postavam-se centenas de frases, artes, conselhos, poeminhas, tudo falando no tal amor. Só blá-blá-blá, tudo falso, como bem diagnosticara o Papa. Na hora de praticar o amor, de demonstrar o amor pelo próximo, as pessoas vomitavam apenas ódio. Era ódio entre bolsonaristas e lulistas, como se só esses dois tipos de brasileiros existissem no país. Era ódio entre as torcidas de futebol. Era ódio entre homens e mulheres, machistas X feministas. Era ódio entre evangélicos e religiosos afro. Tudo polarizado, como estava em moda dizer hoje. O diálogo desaparecera. Quando existia uma discussão, era como se esta fosse uma competição, um jogo, pra ver quem vencia, quem se impunha, em vez de ser aquela saudável conversa que acabaria resultando numa revisão de posicionamentos de ambas as partes discordantes, uma contribuindo com a outra, com visões diferentes que terminariam por enriquecer as duas posições, ainda que as mesmas continuassem antagônicas. A violência atingia patamares antes inimagináveis. A crueldade dos bandidos que matavam por uma mosca, que violentavam mulheres e crianças nos assaltos a residências. A insensibilidade de traficantes que, para enriquecer, pouco se importavam em escravizar jovens pelo vício nas drogas. A violência política que já mostrara sua cara com o misterioso assassinato de Celso Daniel, por muita gente atribuído ao ex-presidente Lula, e que culminara com as milícias cariocas, supostamente mandando eliminar a vereadora Marielle, preta, homossexual e influente. Como é que pode? Como é que pode uma mulher, preta, homossexual, ser influente? É preciso calar-lhe a boca. Um tiro resolve. O Brasil que ele conhecera, se segurando no politicamente correto por mais de uma década, finalmente revelara sua verdadeira face, elegendo Bolsonaro, o Trump dos pobres, o homem que pregava o retrocesso nas conquistas sociais, fossem essas relativas às minorias discriminadas como os negros, as mulheres, os indígenas e os homossexuais; fossem essas relativas à democratização da cultura e da arte. A eleição desse presidente parecera despertar um “liberou geral” nas pessoas que se calavam, escondidos seus preconceitos atrás da obrigatoriedade esquerdista do politicamente correto. Aumentara a violência contra os homossexuais, aumentaram os crimes de racismo, aumentara o feminicídio. Seu pai estava certo. O Brasil andava para trás, mas esse parecia ser o desejo da maioria do nosso povo e a obrigação de qualquer democrata, como ele e os membros de sua família, era a de curvar-se e aceitar a decisão majoritária. A maioria do povo brasileiro pusera o ex operário Lula no poder e essa mesma maioria se arrependera ao ver revelados os esquemas de corrupção que, de fato, sempre existiram na política, estivesse no poder a esquerda ou a direita. A ilusão de estar elegendo um presidente político e pobre, portanto supostamente honesto, colocara no poder o retrocesso social. Guilherme chega à porta de seu prédio pensando em que espécie de espírito de confraternização poderia existir nesse Natal de 2019. Pensa na Roma Antiga, na época de Cristo, onde a homossexualidade era vista como muito natural. Pensa nos evangelhos apócrifos que falavam do amor conjugal entre Jesus e Maria Madalena. Pensa num Jesus crucificado entre dois ladrões e no perdão que lhes dera. Ri à ideia de um Cristo pregado na cruz entre Lula e Bolsonaro... Seria mesmo o ex-presidente Lula um ladrão? Ou tudo não passava de invenção do universo onde imperam as Fake-News? Seriam os filhos do presidente Bolsonaro, de fato, milicianos ou tudo era intriga da oposição? Onde estava a verdade dos fatos nesse Natal de 2019, no seu país? Jesus Cristo, o homem que pregara – como seus pais nos anos 1960 – a paz e o amor, fôra morto por aqueles a quem a paz e o amor ameaçavam. A paz, o amor, o esclarecimento, a iluminação espiritual, tudo isso – pensa Guilherme – conduz o povo por um caminho que acaba por desafiar os poderosos e ameaça a concentração de riqueza, até hoje nas mãos de muito poucos. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” – disse Jesus. Ele próprio, Guilherme, era rico. Deveria renunciar a tudo e distribuir sua riqueza entre os pobres? Claro que não. Sua riqueza seria rapidamente consumida e deixaria de gerar empregos e benefícios sociais, como fazia hoje. A questão não estava em ser rico, estava no que fazer da própria riqueza. Amar uns aos outros, como queria Jesus Cristo, seria viver no reino da tolerância, da compreensão, do diálogo. Coisas que praticamente inexistiam nesse momento em seu país e, quiçá, no mundo. Mas, com diria o Morin, as épocas obscuras não duram para sempre. Guilherme amava. Amava seu companheiro, Gustavo. Amava seus pais. Agia sempre, na empresa, no sentido de prover bem estar e justiça aos seus funcionários, embora isso fosse bastante difícil. Uma queda de braço entre lucratividade e direitos trabalhistas. Mas ele a enfrentava. Era Natal. Seu prédio estava enfeitado com luzes no jardim e imagens de Papai Noel e presépios. Ele sorri, entra, cumprimenta o porteiro. Viu que havia luz na janela de seu apartamento: Gustavo, seu amor, já chegara. Hoje vão fazer, juntos, as listas de presentes de Natal que comprarão para amigos e parentes. Mas Guilherme, por inspiração do grande avatar que fôra Jesus Cristo, vai propor que, depois disso, eles façam também uma lista do amor que precisam dar aos amigos e familiares, do amor que estão, de uma forma ou de outra, negando a eles e que listem ainda as atitudes necessárias para que as suas relações, sejam, afinal, de amor. Assim, nesse Natal, na casa de Guilherme e Gustavo, o menino Jesus poderá nascer outra vez. Um dos poucos lugares, aliás, onde isso poderá acontecer. Isabel Natal de 2019 |
Comente |
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[19:36, 30/11/2019] Vera Krausz: Que lindo !! Maravilhoso !! |
[20:25,
30/11/2019] Francisco Assumpção Jr: Muito bom Isabel |
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