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(Gustav Klimt, 1915, A Vida e a Morte)

 

 

Ficou olhando a filha, pequena e tão linda, tão curiosa e interessada, que corria a atender o telefone. De repente, a carinha alegre da menina começou a se transformar numa máscara de susto. Do susto ao horror e então José já derrubara a xícara no carpete, saía depressa em direção à menina e ao telefone. Com o braço esquerdo, puxou a garota para si, com o direito tomou dela o fone, ainda a tempo de ouvir a voz que dizia: -- ficar órfã...

 

O Inferno

Está Cheio
Capítulo 7 do livro

"Um Hospital na Contramão"

de Isabel Fomm de Vasconcellos e José Carlos Riechelmann

 


Belo seria o mundo se a realidade fosse toda feita das palavras edificantes que dizemos aos outros e a nós mesmos. Belo seria o mundo se nossos melhores propósitos não encontrassem, como obstáculos, os interesses escusos de outros não tão bem-intencionados. Belo seria o mundo se ele correspondesse a apenas uma ínfima parte dos sonhos dos justos.
 

Jorge começara a compreender isso, mas compreender mesmo, com todo o seu ser, quando viu o diretor, Dr. José, de tão edificantes propósitos, sair, num curto trajeto de menos de cem metros, da porta do hospital à porta ao seu carro, cercado por seguranças. Parece – pensou Jorge – que, de fato, não bastam as boas intenções, os projetos sensatos, os caminhos lógicos e humanísticos. É preciso também lutar contra a bandidagem que sempre se interpõe no caminho dos bons.

Durante algum tempo, após assumir a diretoria da Cachoeirinha, Dr. José teve prejudicada a sua privacidade, o seu simples direito de ir e vir, pela presença da segurança, que o acompanhava de perto e de longe.

 

Tudo começara naquela noite em que o telefone tocou na sala de sua casa e sua filha caçula, Marina, de apenas 6 anos de idade, correu para atender. José estava saboreando seu café, depois do jantar e depois de um dia exaustivo no hospital. Ficou olhando a filha, pequena e tão linda, tão curiosa e interessada, que corria a atender o telefone. De repente, a carinha alegre da menina começou a se transformar numa máscara de susto. Do susto ao horror e então José já derrubara a xícara no carpete, saía depressa em direção à menina e ao telefone. Com o braço esquerdo, puxou a garota para si, com o direito tomou dela o fone, ainda a tempo de ouvir a voz que dizia: -- ficar órfã...
 
 A menina chorava convulsivamente. José a acalentou. E ela começou a dizer:
 -- Papai, quem é que vai matar você? Quem são essas pessoas que dizem que você vai morrer, amanhã, no hospital? Eu não quero que você morra!
 -- Não é nada, minha filha. É um trote. Uma brincadeira de mau gosto que fizeram com a gente. O papai não vai morrer, não.
 
 Foi aí que José percebeu que sua gestão estava contrariando muito mais interesses do que julgara até então.
 
No dia em que assumira a direção do hospital, recebera da diretora que estava passando o cargo a ele, apenas uma folha de papel, uma planilha impressa, onde constavam todos os serviços terceirizados do hospital e as datas dos vencimentos dos pagamentos que deveriam ser feitos a essas empresas. Eram, por exemplo, os serviços de lavanderia, de alimentação, de limpeza, de segurança, etc. Mais nada. Nenhuma palavra sobre problemas a serem enfrentados, obstáculos a serem transpostos, posturas e reivindicações do pessoal... Nada! Ele estava entrando numa câmara escura. A diretora que saía, Dra. Helena, e que ele conhecia de velhos plantões trabalhados juntos, deu-lhe um abraço cortês, desejou-lhe boa sorte e pronto.
 
 José então reuniu todos os seus 6 diretores. Disse apenas:
 -- Não pretendo, só porque assumi a diretoria desse hospital numa corrente política de oposição a quem estava aqui no poder até ontem, trocar toda a minha diretoria. Esperarei noventa dias, sem exonerar ninguém, até que possa compreender e avaliar o desempenho de cada um de vocês. Findo esse prazo, voltaremos a conversar. Mas a minha porta está aberta para ouvir as queixas e as necessidades, se houver, de cada um de vocês. É só. Tenham um bom dia!
 
José, porém, estava no hospital havia tempo demais e, ao contrário de alguns diretores que caíram lá de paraquedas, tinha criado seus laços com servidores e colaboradores, tanto no corpo médico quanto nas demais categorias profissionais. Muitos deles o admiravam, o conheciam, sabiam como ele pensava e agia. E ele pensava na Medicina em termos humanísticos e não mercantilistas. Pensava na Saúde, como um todo, um todo que englobava os aspectos biológicos sofrendo a influência do meio, do ambiente sócio cultural e das emoções de cada paciente em particular.
Pacientes, para ele, eram pessoas e não, como para muitos, uma massa. Era um grande defensor e divulgador da visão biopsicossocial da saúde e da Medicina.
 
Então, começaram, os amigos, a contar-lhe coisas que jamais ousariam contar a quem quer que fosse, ainda mais ao diretor do hospital.
 
Quando da última administração municipal, a cidade, por incompetência política do prefeito, eleito apenas pela força política de seu antecessor, fôra dividida em “feudos” e, cada um desses “feudos” entregue ao poder e à influência de um vereador. Ali, na Vila Cachoeirinha, havia um médico, chefe do arquivo médico, que era sobrinho do vereador que mandava na região. O curioso, porém, é que esse médico nomeara 40 servidores para o seu setor. 10 efetivamente trabalhavam. Os outros 30 apareciam por lá uma vez ao mês, assinavam os trinta dias de ponto e iam embora.
 
Também havia um dos encarregados pelo Laboratório de Análises Clínicas do hospital que, vira e mexe, era visto descarregando caixas e caixas do porta-malas de seu carro, pela manhã e, à tarde, carregando novamente o porta-malas de seu carro com outras caixas e caixas. Ah, e detalhe: esse médico era o dono de um laboratório de análises clínicas, particular, claro, no bairro.
 

E, para coroar, também lhe disseram que havia um ponto de venda de drogas dentro do almoxarifado do hospital.
 

Não era mesmo de se admirar que, na transição, a ex-diretora houvesse passado a ele apenas uma planilha.
Por enquanto, eram três grandes problemas, sem contar os pequenos, que pipocavam no dia a dia. José não sabia ainda como, os resolveria, só sabia que.

 

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Evaldice Maria Ruck Cassiano Estou curiosa , quero saber se o mundo continuará belo...bjoss.