Nós, que vivemos no conforto, com acesso a tudo
o que tecnologicamente a humanidade conquistou; nós, com nossos carros,
TVs, smartphones, mesa farta, bons teatros, bons cinemas, bons
restaurantes, viagens, navios, aviões, piscinas... Nós somos a minoria –
pensava Magdala. A maioria vive na pobreza. A maioria do planeta não
vive como nós. No Brasil mesmo – ela vira o dado recente do IBGE –
os 10% mais ricos ganham 17,6 vezes o que ganham os 40% mais pobres.
África, países do Oriente, castigados pela guerra e pela fome, nordeste
do Brasil... No entanto nós vivemos como se todos vivessem como nós.
Ela lera, algum dia, em algum lugar, que se toda a população do planeta
consumisse o que consomem normalmente os países mais ricos, os recursos
naturais se esgotariam em menos de um ano... E agora, que a Terra estava
claramente pedindo socorro, todo o Ocidente caminhava para um retrocesso
político, cansado de obedecer as máximas cretinas dos governos de
esquerda, cansado de não poder expressar seus pensamentos em liberdade,
amarrados que estavam todos pelas regras medíocres do politicamente
correto.
Ela crescera numa família pobre, interiorana. Mas a pobreza de sua
infância e adolescência seria considerada riqueza por aqueles que viviam
nas precárias condições dos mais pobres do planeta, sem saneamento, sem
Medicina, sem acesso às maravilhas da informática. Seu irmão mais velho
era da esquerda, filiou-se ao PCB, depois ao PT, para desespero de seus
pais, que ainda tinham fresca na memória a tragédia que se abatera sobre
os esquerdistas durante a vigência da ditadura militar no Brasil. Ela
não o compreendia. Não compreendia a revolta do irmão e muito menos o
seu idealismo. Naquele tempo, ela tinha apenas um objetivo: sair de sua
cidade, de sua pobreza, triunfar (como afinal, embora por linhas tortas,
acabara triunfando) na cidade grande, na metrópole.
Depois de 12 anos no poder, a esquerda brasileira via a direita se
eleger e militares ocupando os mais altos cargos da república. Lula, que
um dia fôra a grande esperança dos brasileiros que, por duas vezes, o
elegeram presidente, afinal se revelara igual a todos os outros
políticos que vieram antes dele. Magdalena finalmente sentia-se capaz de
compreender os tantos discursos que ouvira da boca de seu irmão mais
velho, nos jantares e almoçares de sua infância e juventude. Mas
compreendia também que esses sonhos haviam descido pelo ralo, junto com
a vã tentativa dos esquerdistas de mudar a sociedade “por decreto”.
Ninguém –pensava ela – deixa de ser racista apenas por correr
o risco de ser preso por ser racista. Ninguém deixa de ser machista
porque corre o risco de ser preso por ser machista. E assim por diante.
O máximo que se consegue, ditando leis do “politicamente correto” à
sociedade, é fazer com que as pessoas se calem. E que, caladas,
continuem sendo exatamente as mesmas.
-- A única arma que existe para mudar o mundo – disse Messias, seu
marido, quando ela lhe revelou esses seus pensamentos – é a educação. E
educação não é apenas atingir um grau de escolaridade ou ser treinado,
ainda que num curso superior, para uma determinada profissão. A educação
é muito mais que isso. Não é atributo das escolas. É da família e de
toda a sociedade. Um dia todas as pessoas perceberão que são parte de um
grande Todo, que se chama Humanidade. E que a dor de um atinge sim, de
uma forma ou de outra, a todos.
-- Isso é uma utopia – protestou Magdala – num mundo cada vez mais
individualista.
-- Todas as filosofias realmente humanitárias são utopia – disse ele –
Veja o próprio pensamento cristão. Em nome de Cristo, quantas
barbaridades foram cometidas pela igreja católica e por outras? As
igrejas se fazem poderosas e ostentam sua riqueza e seu poder como forma
de se impor aos seus fiéis. Imagine uma igreja pobre, que repartisse
tudo o que tem com os mais necessitados, que – como queria Jesus – desse
aos pobres tudo o que conseguisse angariar... E deu uma gostosa
gargalhada: -- Ninguém, Magda, ninguém mesmo quereria frequentar uma
igreja dessas. Só se respeita o luxo, a ostentação.
-- O Papa Francisco – continuou ele -- prega a humildade, a
simplicidade, se recusa a viver nos aposentos palacianos e luxuosos que
são privilégio do mais alto posto da igreja; quando era bispo, na
Argentina, andava de metrô enquanto seus pares desfilavam em mercedes
com choferes. Os cardeais – ou grande parte deles, pelo menos-- que o
elegeram devem estar se roendo de arrependimento. Um papa amigo dos
pobres, das mulheres, dos negros, dos refugiados, dos homossexuais. Um
papa tão parecido com Jesus que ameaça a estabilidade da igreja... Não é
irônico? A mesma igreja que se fez usando a Sua palavra e distorcendo-a
para que se encaixasse na sua doutrina de dominação. A mesma igreja que
queimava vivos os que ousassem discordar dela.
-- A Alda, – disse Magdalena – a minha amiga feminista, diz que a igreja
passou seiscentos anos queimando mulheres e que, com essas mulheres,
viraram cinzas também toda uma cultura e toda uma sabedoria femininas,
herdadas das nossas irmãs celtas, que viviam em igualdade com os homens,
que conheciam os mistérios da natureza, a arte da cura pelos
fitoterápicos, a comunhão dos pensamentos, a internet das árvores e das
estrelas..
Messias riu:
-- Que papo é esse de internet das árvores e internet das estrelas?
-- Dizem – e você mesmo já me falou sobre isso – que grande parte da
filosofia humanista de Jesus Cristo, que está não só nos evangelhos
oficiais mas, principalmente, nos apócrifos, veio dos celtas; Jesus,
naquele período da juventude que ninguém sabe onde ele estava e o que
fazia, teria ido estudar com os Druidas e com as Magas celtas. Com eles,
aprendeu que tudo está interligado – como você mesmo acabou de dizer – e
que o que está em cima é igual ao que está embaixo. Os antigos magos
sabiam que, no subsolo da terra, existe uma grande rede de comunicação
entre as plantas, entre as árvores, por suas raízes e pelos veios
d’água, é o que hoje alguns cientistas mais ousados estão pesquisando e
chamando de “internet das árvores”. Mas esses mesmos magos sabiam também
que todo o conhecimento está escrito no Cosmos, entre as estrelas, que
todos os pensamentos de todos os seres vivos do Universo, se cruzam e se
trombam na corrente energética que circula no vácuo. Os Rosa-cruzes
chamam isso de “registros acásicos” – o registro de tudo o que se pensa
e o que já se pensou.
-- É verdade – disse Messias – que, assim como a moda, o conhecimento
parece estar “no ar”. Veja como diferentes cientistas de diferentes
partes do mundo fazem a mesma descoberta quase que ao mesmo tempo...
-- E aí fica aquela fogueira de vaidades pra saber quem é o dono da
ideia... – riu Magdalena.
-- Exatamente – continuou ele. – E veja como as mulheres sabem,
intuitivamente, o que está se usando, o que está virando moda...
-- Tem aquela história dos gorilas e dos cestos. Conhece?
E, ante a negativa dele, contou:
-- Pesquisadores ensinaram, nos EUA, um bando de gorilas a tecer cestos
de cipó. Quando foram à África, visitar o habitat natural daquela
espécie, encontraram gorilas que sabiam tecer cestos.
-- O conhecimento está “no ar”. – disse Messias.
-- E na Internet das estrelas – riu ela.-- O que me parece estranho e
contraditório – continuou Magdala – é que, em pleno século XXI, com essa
incrível democratização da informação, com quase todos, até mesmo os
mais pobres, carregando o mundo na palma da mão, nas telas dos
celulares, cada vez mais se veja a escuridão avançando. É o preconceito
que corre solto, a intolerância religiosa e política, a falta de
diálogo, a não aceitação de posições diferentes das suas, a violência
contra o que é diferente de você, como se todos devêssemos ser iguais e
unânimes, como se alguém fosse, de fato, o dono das verdades.
-- Acontece – disse ele, pensativo – que não basta ser informado para
deixar de ser ignorante. A não aceitação das diferenças é típica da
arrogância dos ignorantes. Por isso é que eu disse, no começo desse
nosso papo, que a única solução é a educação. E educação é muito, muito
mais, que simples informação.
-- Tenho visto – respondeu Magdala – muita gente bem-educada dizendo
coisas inacreditáveis no Facebook. Gente de esquerda temendo um golpe
militar, um retrocesso, uma espécie de idade média do pensamento
contemporâneo.
-- Bem – respondeu ele – muitos deles são o que os militares modernos
estão chamando de “viúvas da ditadura”, gente que viveu sob a censura e
sob o terror da tortura e isso era algo parecido mesmo com a repressão
da idade média ou qualquer outra “caça às bruxas”. Mas a evolução da
sociedade não é algo linear. Tenho um amigo médico, o Dr. José, que diz
que a sociedade vai mudando “por ilhas”, ou seja, grupos de pessoas mais
progressistas, mais humanistas, à frente do seu tempo. Mas esses grupos
sempre existiram, em todas as culturas, em todas as sociedades humanas.
-- As bruxas dizem que as diferenças estão na quantidade de vidas que
uma alma já teve. Quem está vivendo pela primeira vez é mais primitivo e
mais violento do que quem já viveu várias outras vidas, encarnações,
aqui ou em outros planetas.
-- Você anda bem esotérica! – riu ele.
-- Algumas das minhas clientes pensam dessa forma. A Alda é feminista. A
Isabel, escritora, diz que todas as mulheres são bruxas e que
desaprendemos, nós mulheres, com a repressão machista, a olhar para
dentro de nós, a reconhecer a herança cultural feminina, a usar a nossa
proverbial intuição.
Aquela era mais uma noite de véspera de Natal que Messias e Magdala
passavam sozinhos, mas nem por isso sem celebrar todos os rituais
natalinos a que tinham direito. A casa decorada, a árvore enfeitada, a
ceia, a troca de presentes.
Deixaram a mesa, onde estavam tendo essa conversa, e foram ao terraço do
apartamento saborear um licor. A noite estava muito estrelada, talvez
porque a cidade estivesse atipicamente menos iluminada, talvez porque, a
despeito do verão e do aquecimento global, um forte vento frio estivesse
soprando e levando para longe a poluição da metrópole. Ou talvez
simplesmente porque fosse Natal.
- Já reparou – perguntou ele – como o Natal acaba mudando muito as
pessoas, ainda que temporariamente?
-- Sim, é verdade – respondeu ela – e isso tem tudo a ver com o que
estávamos conversando há pouco. Parece que existe mesmo, no ar, um
“espírito de natal”. São tantas mensagens edificantes, ainda que nem
sempre sinceras, são tantas reuniões de confraternização, nas escolas,
nas empresas, nos clubes, nas agremiações... E com tantos encontros,
tantos pensamentos bons, as pessoas parecem mesmo mais abertas à
tolerância e à compreensão... Afinal, Jesus pregava basicamente o amor
ao próximo.
Nesse momento, em meio ao céu coalhado de estrelas, viram uma luz mais
brilhante, lá longe, quase no horizonte.
-- O que será aquilo? – riu Magdala – Um disco voador?
-- Ah, pode ser muita coisa – respondeu Messias – desde um balão
meteorológico, ou um satélite refletindo a luz do sol, ou um
helicóptero...
-- Parece mais uma nave espacial – disse ela – Nunca vi um OVNI que
ficasse totalmente parado e, de repente, saltasse como um sapo e parasse
de novo.
-- É... – disse ele, intrigado – É mesmo estranho. Devem ser eles, os
aliens, os anjos, que sempre vem à Terra na época do Natal.
-- A estrela de Belém era uma nave? – perguntou ela.
-- Ah... deveria ser – respondeu ele – Afinal Jesus Cristo era mesmo um
camarada de outro planeta.
Naquela noite, Magdala sonhou que estava lá, dentro daquela luz estranha
que tinham visto no céu. Estava como na cabine de um avião e via as
estrelas por uma larga janela, mas só podia ver as estrelas, não
percebia mais ninguém nem sequer via o ambiente, tudo à sua volta
parecia mergulhado numa escura nuvem. Percebeu que Messias estava lá
também, embora não pudesse vê-lo. Era maravilhoso, estar no Cosmos!
Indescritível! Pensou, por analogia, no deslumbramento que deviam sentir
os astronautas terrestres nas estações espaciais. Estava no meio do céu!
Muito diferente de voar à noite, de avião. Muito diferente de fitar as
estrelas, de uma montanha distante das luzes das cidades. Era muito mais
lindo... A profundidade, as estrelas mais próximas, até alguns planetas
ela conseguia ver...
“Nossa! – pensou então – Eles vieram nos buscar para nos mostrar em que
maravilha estamos inseridos...” Abriu os olhos na escuridão do quarto e
sabia que não fôra um sonho, sabia que sua alma – ou sua consciência –
estivera realmente lá, naquela nave que tinham avistado, no meio do céu.
Bem, afinal, era Natal e aquela breve e encantadora viagem, o seu
presente.
Outros contos de Natal com os personagens Magdala e
Messias: 1)
Pedidos de Natal 2)
Linhas Tortas |