voltar para a pagina de contos da escritora ou voltar para a página incial  ou para a página-site do livro de Natal

 

(foto de Isabel Fomm sobre ilustração Suely Pinotti)

 

 

A Nave

de Belém
 

Conto de Natal de

Isabel Fomm de Vasconcellos
 

 

Então aquela consciência a atingiu como um soco. Como poderia ter vivido mais de cinco décadas sem perceber aquilo? E todos os outros, que estavam a sua volta, que viviam da mesma maneira? Eles também não tinham essa consciência? Se tinham, por que nada faziam a respeito? Por que não tentavam mudar esse estado de coisas? Ou acreditavam-se impotentes para mudar o mundo? Ou simplesmente não se importavam?

 

Nós, que vivemos no conforto, com acesso a tudo o que tecnologicamente a humanidade conquistou; nós, com nossos carros, TVs, smartphones, mesa farta, bons teatros, bons cinemas, bons restaurantes, viagens, navios, aviões, piscinas... Nós somos a minoria – pensava Magdala. A maioria vive na pobreza. A maioria do planeta não vive como nós. No Brasil mesmo – ela vira o dado recente do IBGE – os 10% mais ricos ganham 17,6 vezes o que ganham os 40% mais pobres. África, países do Oriente, castigados pela guerra e pela fome, nordeste do Brasil... No entanto nós vivemos como se todos vivessem como nós.

Ela lera, algum dia, em algum lugar, que se toda a população do planeta consumisse o que consomem normalmente os países mais ricos, os recursos naturais se esgotariam em menos de um ano... E agora, que a Terra estava claramente pedindo socorro, todo o Ocidente caminhava para um retrocesso político, cansado de obedecer as máximas cretinas dos governos de esquerda, cansado de não poder expressar seus pensamentos em liberdade, amarrados que estavam todos pelas regras medíocres do politicamente correto.

Ela crescera numa família pobre, interiorana. Mas a pobreza de sua infância e adolescência seria considerada riqueza por aqueles que viviam nas precárias condições dos mais pobres do planeta, sem saneamento, sem Medicina, sem acesso às maravilhas da informática. Seu irmão mais velho era da esquerda, filiou-se ao PCB, depois ao PT, para desespero de seus pais, que ainda tinham fresca na memória a tragédia que se abatera sobre os esquerdistas durante a vigência da ditadura militar no Brasil. Ela não o compreendia. Não compreendia a revolta do irmão e muito menos o seu idealismo. Naquele tempo, ela tinha apenas um objetivo: sair de sua cidade, de sua pobreza, triunfar (como afinal, embora por linhas tortas, acabara triunfando) na cidade grande, na metrópole.

Depois de 12 anos no poder, a esquerda brasileira via a direita se eleger e militares ocupando os mais altos cargos da república. Lula, que um dia fôra a grande esperança dos brasileiros que, por duas vezes, o elegeram presidente, afinal se revelara igual a todos os outros políticos que vieram antes dele. Magdalena finalmente sentia-se capaz de compreender os tantos discursos que ouvira da boca de seu irmão mais velho, nos jantares e almoçares de sua infância e juventude. Mas compreendia também que esses sonhos haviam descido pelo ralo, junto com a vã tentativa dos esquerdistas de mudar a sociedade “por decreto”.

Ninguém –pensava ela – deixa de ser racista apenas por correr o risco de ser preso por ser racista. Ninguém deixa de ser machista porque corre o risco de ser preso por ser machista. E assim por diante. O máximo que se consegue, ditando leis do “politicamente correto” à sociedade, é fazer com que as pessoas se calem. E que, caladas, continuem sendo exatamente as mesmas.

-- A única arma que existe para mudar o mundo – disse Messias, seu marido, quando ela lhe revelou esses seus pensamentos – é a educação. E educação não é apenas atingir um grau de escolaridade ou ser treinado, ainda que num curso superior, para uma determinada profissão. A educação é muito mais que isso. Não é atributo das escolas. É da família e de toda a sociedade. Um dia todas as pessoas perceberão que são parte de um grande Todo, que se chama Humanidade. E que a dor de um atinge sim, de uma forma ou de outra, a todos.

-- Isso é uma utopia – protestou Magdala – num mundo cada vez mais individualista.

-- Todas as filosofias realmente humanitárias são utopia – disse ele – Veja o próprio pensamento cristão. Em nome de Cristo, quantas barbaridades foram cometidas pela igreja católica e por outras? As igrejas se fazem poderosas e ostentam sua riqueza e seu poder como forma de se impor aos seus fiéis. Imagine uma igreja pobre, que repartisse tudo o que tem com os mais necessitados, que – como queria Jesus – desse aos pobres tudo o que conseguisse angariar... E deu uma gostosa gargalhada: -- Ninguém, Magda, ninguém mesmo quereria frequentar uma igreja dessas. Só se respeita o luxo, a ostentação.

-- O Papa Francisco – continuou ele -- prega a humildade, a simplicidade, se recusa a viver nos aposentos palacianos e luxuosos que são privilégio do mais alto posto da igreja; quando era bispo, na Argentina, andava de metrô enquanto seus pares desfilavam em mercedes com choferes. Os cardeais – ou grande parte deles, pelo menos-- que o elegeram devem estar se roendo de arrependimento. Um papa amigo dos pobres, das mulheres, dos negros, dos refugiados, dos homossexuais. Um papa tão parecido com Jesus que ameaça a estabilidade da igreja... Não é irônico? A mesma igreja que se fez usando a Sua palavra e distorcendo-a para que se encaixasse na sua doutrina de dominação. A mesma igreja que queimava vivos os que ousassem discordar dela.

-- A Alda, – disse Magdalena – a minha amiga feminista, diz que a igreja passou seiscentos anos queimando mulheres e que, com essas mulheres, viraram cinzas também toda uma cultura e toda uma sabedoria femininas, herdadas das nossas irmãs celtas, que viviam em igualdade com os homens, que conheciam os mistérios da natureza, a arte da cura pelos fitoterápicos, a comunhão dos pensamentos, a internet das árvores e das estrelas..

Messias riu:
-- Que papo é esse de internet das árvores e internet das estrelas?

-- Dizem – e você mesmo já me falou sobre isso – que grande parte da filosofia humanista de Jesus Cristo, que está não só nos evangelhos oficiais mas, principalmente, nos apócrifos, veio dos celtas; Jesus, naquele período da juventude que ninguém sabe onde ele estava e o que fazia, teria ido estudar com os Druidas e com as Magas celtas. Com eles, aprendeu que tudo está interligado – como você mesmo acabou de dizer – e que o que está em cima é igual ao que está embaixo. Os antigos magos sabiam que, no subsolo da terra, existe uma grande rede de comunicação entre as plantas, entre as árvores, por suas raízes e pelos veios d’água, é o que hoje alguns cientistas mais ousados estão pesquisando e chamando de “internet das árvores”. Mas esses mesmos magos sabiam também que todo o conhecimento está escrito no Cosmos, entre as estrelas, que todos os pensamentos de todos os seres vivos do Universo, se cruzam e se trombam na corrente energética que circula no vácuo. Os Rosa-cruzes chamam isso de “registros acásicos” – o registro de tudo o que se pensa e o que já se pensou.

-- É verdade – disse Messias – que, assim como a moda, o conhecimento parece estar “no ar”. Veja como diferentes cientistas de diferentes partes do mundo fazem a mesma descoberta quase que ao mesmo tempo...

-- E aí fica aquela fogueira de vaidades pra saber quem é o dono da ideia... – riu Magdalena.

-- Exatamente – continuou ele. – E veja como as mulheres sabem, intuitivamente, o que está se usando, o que está virando moda...

-- Tem aquela história dos gorilas e dos cestos. Conhece?

E, ante a negativa dele, contou:
-- Pesquisadores ensinaram, nos EUA, um bando de gorilas a tecer cestos de cipó. Quando foram à África, visitar o habitat natural daquela espécie, encontraram gorilas que sabiam tecer cestos.

-- O conhecimento está “no ar”. – disse Messias.

-- E na Internet das estrelas – riu ela.-- O que me parece estranho e contraditório – continuou Magdala – é que, em pleno século XXI, com essa incrível democratização da informação, com quase todos, até mesmo os mais pobres, carregando o mundo na palma da mão, nas telas dos celulares, cada vez mais se veja a escuridão avançando. É o preconceito que corre solto, a intolerância religiosa e política, a falta de diálogo, a não aceitação de posições diferentes das suas, a violência contra o que é diferente de você, como se todos devêssemos ser iguais e unânimes, como se alguém fosse, de fato, o dono das verdades.

-- Acontece – disse ele, pensativo – que não basta ser informado para deixar de ser ignorante. A não aceitação das diferenças é típica da arrogância dos ignorantes. Por isso é que eu disse, no começo desse nosso papo, que a única solução é a educação. E educação é muito, muito mais, que simples informação.

-- Tenho visto – respondeu Magdala – muita gente bem-educada dizendo coisas inacreditáveis no Facebook. Gente de esquerda temendo um golpe militar, um retrocesso, uma espécie de idade média do pensamento contemporâneo.

-- Bem – respondeu ele – muitos deles são o que os militares modernos estão chamando de “viúvas da ditadura”, gente que viveu sob a censura e sob o terror da tortura e isso era algo parecido mesmo com a repressão da idade média ou qualquer outra “caça às bruxas”. Mas a evolução da sociedade não é algo linear. Tenho um amigo médico, o Dr. José, que diz que a sociedade vai mudando “por ilhas”, ou seja, grupos de pessoas mais progressistas, mais humanistas, à frente do seu tempo. Mas esses grupos sempre existiram, em todas as culturas, em todas as sociedades humanas.

-- As bruxas dizem que as diferenças estão na quantidade de vidas que uma alma já teve. Quem está vivendo pela primeira vez é mais primitivo e mais violento do que quem já viveu várias outras vidas, encarnações, aqui ou em outros planetas.

-- Você anda bem esotérica! – riu ele.

-- Algumas das minhas clientes pensam dessa forma. A Alda é feminista. A Isabel, escritora, diz que todas as mulheres são bruxas e que desaprendemos, nós mulheres, com a repressão machista, a olhar para dentro de nós, a reconhecer a herança cultural feminina, a usar a nossa proverbial intuição.

Aquela era mais uma noite de véspera de Natal que Messias e Magdala passavam sozinhos, mas nem por isso sem celebrar todos os rituais natalinos a que tinham direito. A casa decorada, a árvore enfeitada, a ceia, a troca de presentes.

Deixaram a mesa, onde estavam tendo essa conversa, e foram ao terraço do apartamento saborear um licor. A noite estava muito estrelada, talvez porque a cidade estivesse atipicamente menos iluminada, talvez porque, a despeito do verão e do aquecimento global, um forte vento frio estivesse soprando e levando para longe a poluição da metrópole. Ou talvez simplesmente porque fosse Natal.

- Já reparou – perguntou ele – como o Natal acaba mudando muito as pessoas, ainda que temporariamente?

-- Sim, é verdade – respondeu ela – e isso tem tudo a ver com o que estávamos conversando há pouco. Parece que existe mesmo, no ar, um “espírito de natal”. São tantas mensagens edificantes, ainda que nem sempre sinceras, são tantas reuniões de confraternização, nas escolas, nas empresas, nos clubes, nas agremiações... E com tantos encontros, tantos pensamentos bons, as pessoas parecem mesmo mais abertas à tolerância e à compreensão... Afinal, Jesus pregava basicamente o amor ao próximo.

Nesse momento, em meio ao céu coalhado de estrelas, viram uma luz mais brilhante, lá longe, quase no horizonte.

-- O que será aquilo? – riu Magdala – Um disco voador?

-- Ah, pode ser muita coisa – respondeu Messias – desde um balão meteorológico, ou um satélite refletindo a luz do sol, ou um helicóptero...

-- Parece mais uma nave espacial – disse ela – Nunca vi um OVNI que ficasse totalmente parado e, de repente, saltasse como um sapo e parasse de novo.

-- É... – disse ele, intrigado – É mesmo estranho. Devem ser eles, os aliens, os anjos, que sempre vem à Terra na época do Natal.

-- A estrela de Belém era uma nave? – perguntou ela.

-- Ah... deveria ser – respondeu ele – Afinal Jesus Cristo era mesmo um camarada de outro planeta.

Naquela noite, Magdala sonhou que estava lá, dentro daquela luz estranha que tinham visto no céu. Estava como na cabine de um avião e via as estrelas por uma larga janela, mas só podia ver as estrelas, não percebia mais ninguém nem sequer via o ambiente, tudo à sua volta parecia mergulhado numa escura nuvem. Percebeu que Messias estava lá também, embora não pudesse vê-lo. Era maravilhoso, estar no Cosmos! Indescritível! Pensou, por analogia, no deslumbramento que deviam sentir os astronautas terrestres nas estações espaciais. Estava no meio do céu! Muito diferente de voar à noite, de avião. Muito diferente de fitar as estrelas, de uma montanha distante das luzes das cidades. Era muito mais lindo... A profundidade, as estrelas mais próximas, até alguns planetas ela conseguia ver...

“Nossa! – pensou então – Eles vieram nos buscar para nos mostrar em que maravilha estamos inseridos...” Abriu os olhos na escuridão do quarto e sabia que não fôra um sonho, sabia que sua alma – ou sua consciência – estivera realmente lá, naquela nave que tinham avistado, no meio do céu. Bem, afinal, era Natal e aquela breve e encantadora viagem, o seu presente.



Outros contos de Natal com os personagens Magdala e Messias:  1)
Pedidos de Natal   2) Linhas Tortas