Aquele edifício fôra um dos primeiros da Avenida Paulista erguido no
terreno onde estivera antes, a primeira casa ali construída, uma mansão
arquitetada pelo dono da Cervejaria Antártica no final do século XIX.
1959, o ano em que o prédio, um projeto do famoso arquiteto Gasperini,
recebeu seu “habite-se”.
Leonardo sabia que tinha o privilégio de morar numa avenida que era a
mais querida e conhecida de todos os paulistanos, de todos os
brasileiros e de muitos estrangeiros, mundo afora. Além disso, sabia
também que, até o ano de 2009 – quando voara para o céu, com sua amada –
o fantasma de Joaquim Eugênio de Lima vivera naquele pé de hibiscos
vermelhos que havia no jardim. Havia, isso mesmo, no passado. Porque o
Geraldinho, o jardineiro, não pudera impedir que aquela maldita praga,
que também morava no pé de hibisco, acabasse com aquela linda planta,
depois que o Fantasma de Eugênio de Lima saiu de seu tronco, para não
mais voltar.
No lugar do hibisco estava hoje uma roseira híbrida que produzia
maravilhosas flores de duas cores, vermelho e branco. Então Leonardo
estava quadruplamente orgulhoso de seu privilégio:
1. Morava onde vivera o fantasma do criador daquela avenida; a avenida
que era símbolo da cidade de São Paulo;
2. estava no solo onde fôra erguida a primeira mansão da Avenida, em
1886;
3. estava no prédio mais filmado do Brasil (porque em frente a ele
aconteciam sempre inúmeras manifestações, desde comemorações de times
campeões de futebol a festas de políticos vencedores, como o Lula
presidente, em 2002, e também inúmeros e importantes protestos como o
Fora Collor em 1992 e a manifestação de Junho de 2013, sem líderes e
orquestrada pelas redes sociais, contra o Partido dos Trabalhadores e,
além disso -- julgava ele-- os repórteres de TV pareciam ter uma
preferência especial por aquele ponto da Avenida Paulista para realizar
os seus “o povo fala”) e, por fim,
4. o quarto motivo de orgulho para Leonardo era saber que ali, no último
andar, vivia uma escritora que era uma das muitas encarnações (havia
milhões delas naquele ano de 2018) da Nossa Senhora da Boa Morte.
Portanto, ele poderia ir morrer ao lado dela, quando chegasse a sua hora
e isso era também um privilégio que o Universo reservava para alguns
que, como ele, tinham passagem direta para a outra vida.
Leonardo ouvira a própria escritora, sentada num dos bancos do jardim,
contar a uma amiga que joaninhas voavam até o último andar para morrer
em seu escritório, lagartixas corriam para lá e ali davam seu último
suspiro, mas não era só isso: quando ela, a escritora, trabalhava em
velhas máquinas de escrever, nos anos 1970, tomando sol à beira da
represa do Guarapiranga, num Castelo que ali havia, grilos, passarinhos
e até uma gata vinham morrer aos seus pés.
Tinha mais ainda: uma jornalista famosa que morrera num trágico acidente
de avião, estivera no dia anterior no programa de TV que a escritora
tinha então numa emissora.
Antes disso, a escritora entrevistara, em Salvador, Bahia, um poeta
conhecido, naqueles anos de 1980, como “O Rei do Cordel”. Ele também
morrera no dia seguinte à entrevista.
E, por fim, em 2014 uma fã a contatara pelo Facebook e pedira a ela que
transformasse a sua vida, a vida da fã, em um romance. Dois anos depois,
o livro estava pronto e elas duas, que jamais se encontraram
pessoalmente, estavam ansiosas pela noite do lançamento de seu livro
quando se conheceriam. Duas semanas depois do livro pronto para ir ao
prelo, sua parceira literária e virtual sofreu um acidente de carro no
Exterior e morreu.
Impressionante... parecia coisa de romance.
Fôra assim que Leonardo soubera que teria uma base de lançamento segura,
dessa vida para a outra, quando chegasse a sua hora.
A amiga da escritora dissera:
-- Você não deve contar isso pra ninguém. Todo mundo vai morrer de medo
de chegar perto de você e, por isso, morrer.
-- Nada disso! – respondera a escritora – É bem ao contrário: a vida faz
com que aqueles que vão morrer se aproximem de mim e da energia que o
Universo colocou dentro da minha alma. Eu facilito a passagem, é isso.
Não sou só eu. Aqui na Terra há bilhões de pessoas que, como eu, são as
facilitadoras do que chamamos de morte e nada mais é do que uma viagem,
uma passagem para outra vida. Aposto que um dos apóstolos da Última Ceia
de Cristo era um facilitador.
A amiga rira:
-- Jesus Cristo não precisava disso! Afinal ele voltou no terceiro
dia...
Por isso, naquele ano, Leonardo prestara um maior atenção às
comemorações de Natal que aconteciam em muitos dos apartamentos daquele
condomínio, onde morava.
Esteve ouvindo muitas conversas, a começar pelo sermão do padre de uma
igreja católica do bairro. Ele dizia que Cristo morrera crucificado,
perseguido, injustiçado, para que os seres humanos pudessem viver.
Leonardo não entendeu muito bem o porque disso. Mas entendeu a parte em
que o padre recitava alguns dos preceitos da filosofia cristã: o amor ao
próximo, a tolerância, a aceitação das diferenças, a generosidade nas
atitudes.
Bem que esse padre poderia ter dito isso, na eleição do Presidente
Bolsonaro, a essas pessoas cheias de ódio umas das outras, apenas porque
tinham diferentes posições políticas- pensou.
Leonardo compreendia, porém, que os brasileiros estavam profundamente
decepcionados com a sua classe política. Principalmente com o Presidente
Lula, que fôra a esperança de tantos, depois de décadas sem direito de
escolher os seus dirigentes. Lula – julgava Leonardo – era um gênio
político. Talvez fosse mesmo mais um político corrupto e bandido, como
aquele governador do Rio, que estava na cadeia. Aliás, Lula também
estava. Mas a genialidade que Leonardo via em Lula era sua trajetória:
de pau-de-arara a presidente de um país que ele conseguira também tornar
respeitado no Exterior. Está certo que o FHC, antes dele, também
conseguira. Mas FHC, bem ao contrário de Lula, era um intelectual que
até dera aulas na Sorbonne, em Paris.
Mas, voltando a Jesus Cristo, que também nascera humildemente no meio do
povo, Leonardo resolveu ir checar a posição de outras religiões e seitas
com relação ao Mestre que – ele ouvira alguém dizer – renascia no
coração das pessoas a cada dia 25 de dezembro. E ouviu coisas incríveis!
Existiam vários tipos de crenças sobre Jesus, alguns acreditavam que ele
não era filho de Deus coisa nenhuma, seria apenas mais um “Avatar”;
outros diziam que, de fato, ele fôra um Druida e que estudara com os
povos celtas, cuja igualdade social entre gêneros era uma exceção na
história da terra.
Outros ainda diziam o Natal não deveria ser comemorado porque, afinal,
Jesus renascia todos os dias no coração dos cristãos.
Havia ainda os defensores dos evangélicos apócrifos, alguns deles diziam
que Cristo se casara com Maria Madalena e que, depois da Crucificação,
Madalena fugira com os filhos (sim, Ele teria tido filhos!) que deram
origem, na Europa, a uma linhagem familiar que hoje estaria espalhada
por todo o globo.
Leonardo preferira ficar com essa hipótese. A de que Cristo, com sua
infinita bondade, estivesse vivo em muitas e muitas almas sobre a Terra.
A Terra era um lindo planeta e estava correndo sério perigo de vida, ele
sabia, com o aquecimento global e com aquela superpopulação de humanos.
E a superpopulação de humanos ameaçava, sem dúvida, todas as populações
animais e até vegetais.
Leonardo não gostava da arrogância dos seres humanos que se julgavam a
criação superior a todas as outras. Mas Leonardo sabia também que aquilo
era uma pura ilusão. Conhecia a interdependência de tudo o que está vivo
sobre a Terra. Afinal, já vivera tantas vidas! E tivera acesso até aos
registros acásicos, uma espécie de “internet do cosmos” onde tudo se vê
e tudo se sabe. Aprendera o caminho para esse grande registro do saber
com a Ordem Rosacruz.
Havia ainda -- e os seres humanos estavam começando a descobrir isso --
uma “internet das árvores” que se ligavam umas às outras por suas raízes
e as raízes de todas a plantas. Quando os humanos destruíam
completamente a vida no subsolo de alguma área, causavam um grande dano
à comunicação vegetal.
Naquele natal, 2018, Leonardo pensou que, afinal, já vivera bem mais
tempo do que deveria, se pensasse na média de vida da sua espécie.
Talvez fosse hora de procurar a escritora do último andar. Já cumprira o
seu dever nessa vida. Já deixara descendentes, que carregariam em seus
corpos a memória genética dele também. Já cumprira suas funções na vida,
fizera o que viera fazer. Talvez a sua hora estivesse chegando.
A escritora do último andar estava pensando que precisava escrever um
conto de natal, tradição que mantinha em todos os dezembros, havia quase
trinta anos. Era domingo, dia 23, e ela passara grande parte da tarde
cuidando de suas plantas, trocando de vaso as que já tinham crescido
demais para a casa que ocupavam, lavando cachepôs, podando os galhinhos
amarelados, essas coisas. Tudo isso fazia bem à sua alma. Quando
terminava, as plantas pareciam ter ganho novo fôlego: mais verdes, mais
eretas, mais vivas...Vivas... Grande mistério, esse da vida. Todos os
anos ela escrevia contos de Natal porque acreditava que o mundo seria
muito melhor e muito mais feliz se adotasse o que de mais básico havia
na filosofia daquele que renascia a cada 25 de dezembro: o amor ao
próximo.
E isso, acreditava ela, não era uma abstração. O amor era uma grande
conquista, que enchia de júbilo a nossa alma, a cada passo, a cada
degrau dessa conquista. O amor não é um estalar de dedos. Não é paixão,
não é emoção. Amor é um sentimento construído racionalmente, pela
vontade de alcança-lo. Se constrói todos os dias, quando se revê cada
atitude que se tem, cada pensamento e, se um deles não estiver na
direção correta, se faz preciso colocá-lo nos trilhos. Tolerância,
compreensão, carinho, ser amigo de tudo o que está vivo, até das
baratas... ria ela, em pensamento.
Já estava velha e muitas vezes se pegava numa atitude preconceituosa,
num pensamento ruim... e tratava de mudar. Mudar sempre. Mudar e
melhorar, aperfeiçoar, para poder amar. Essa era a sua interpretação
pessoal da filosofia de Cristo. Por isso, gostava do Natal.
Estava pensando que cuidar das suas plantinhas era também um ato de
amor, quando Leonardo invadiu-lhe o apartamento, entrando esbaforido na
sala. Mas ela não o viu. Acabara de sair para buscar, na área de
serviço, o último vaso que arrumara. Quando voltou, topou com Leonardo
caído no chão, já sem vida.
Como ela não era boba nem nada, não se atreveria a tocá-lo antes de
saber se ele estava morto mesmo. Seres como aquele costumavam ser
naturalmente perigosos.
Assim, pegou uma folha de papel toalha e cutucou de leve o corpo de
Leonardo: nada. Estava morto mesmo. Já estava bem velhinho. Ela não
sabia, mas ele já vivera 3 semanas e cinco dias.
Envolveu-o carinhosamente no papel toalha e pensou:
No saco de lixo, entre restos de plantas, um pouco de terra e folhas
secas, envolto na branca mortalha de papel, uma sepultura digna, para um
marimbondo.
A imagem de Cristo, envolto no branco sudário, passou-lhe pela
imaginação.
O que está em cima é igual ao que está embaixo – pensou – Assim na Terra
como no Céu.
|