voltar para a pagina de contos da escritora ou voltar para a página incial  ou para a página-site do livro de Natal

 

A primeira casa da Av.Paulista - dec 1890

 

O prédio, onde foi a primeira casa, dec 2000

 

Mestre Ataíde, Painel da Igreja de S.Francisco, Ouro Preto, Nossa Senhora da Boa Morte.

 

 

 

Naquele natal, 2018, Leonardo pensou que, afinal, já vivera bem mais tempo do que deveria, se pensasse na média de vida da sua espécie. Talvez fosse hora de procurar a escritora do último andar. Já cumprira o seu dever nessa vida. Já deixara descendentes, que carregariam em seus corpos a memória genética dele também. Já cumprira suas funções na vida, fizera o que viera fazer. Talvez a sua hora estivesse chegando.

 

 

A Boa Morte

e O Sudário de Papel.
Conto de Natal

de Isabel Fomm de Vasconcellos
 


Aquele edifício fôra um dos primeiros da Avenida Paulista erguido no terreno onde estivera antes, a primeira casa ali construída, uma mansão arquitetada pelo dono da Cervejaria Antártica no final do século XIX.
1959, o ano em que o prédio, um projeto do famoso arquiteto Gasperini, recebeu seu “habite-se”.

Leonardo sabia que tinha o privilégio de morar numa avenida que era a mais querida e conhecida de todos os paulistanos, de todos os brasileiros e de muitos estrangeiros, mundo afora. Além disso, sabia também que, até o ano de 2009 – quando voara para o céu, com sua amada – o fantasma de Joaquim Eugênio de Lima vivera naquele pé de hibiscos vermelhos que havia no jardim. Havia, isso mesmo, no passado. Porque o Geraldinho, o jardineiro, não pudera impedir que aquela maldita praga, que também morava no pé de hibisco, acabasse com aquela linda planta, depois que o Fantasma de Eugênio de Lima saiu de seu tronco, para não mais voltar.

No lugar do hibisco estava hoje uma roseira híbrida que produzia maravilhosas flores de duas cores, vermelho e branco. Então Leonardo estava quadruplamente orgulhoso de seu privilégio:

1. Morava onde vivera o fantasma do criador daquela avenida; a avenida que era símbolo da cidade de São Paulo;

2. estava no solo onde fôra erguida a primeira mansão da Avenida, em 1886;

3. estava no prédio mais filmado do Brasil (porque em frente a ele aconteciam sempre inúmeras manifestações, desde comemorações de times campeões de futebol a festas de políticos vencedores, como o Lula presidente, em 2002, e também inúmeros e importantes protestos como o Fora Collor em 1992 e a manifestação de Junho de 2013, sem líderes e orquestrada pelas redes sociais, contra o Partido dos Trabalhadores e, além disso -- julgava ele-- os repórteres de TV pareciam ter uma preferência especial por aquele ponto da Avenida Paulista para realizar os seus “o povo fala”) e, por fim,

4. o quarto motivo de orgulho para Leonardo era saber que ali, no último andar, vivia uma escritora que era uma das muitas encarnações (havia milhões delas naquele ano de 2018) da Nossa Senhora da Boa Morte.

Portanto, ele poderia ir morrer ao lado dela, quando chegasse a sua hora e isso era também um privilégio que o Universo reservava para alguns que, como ele, tinham passagem direta para a outra vida.

Leonardo ouvira a própria escritora, sentada num dos bancos do jardim, contar a uma amiga que joaninhas voavam até o último andar para morrer em seu escritório, lagartixas corriam para lá e ali davam seu último suspiro, mas não era só isso: quando ela, a escritora, trabalhava em velhas máquinas de escrever, nos anos 1970, tomando sol à beira da represa do Guarapiranga, num Castelo que ali havia, grilos, passarinhos e até uma gata vinham morrer aos seus pés.

Tinha mais ainda: uma jornalista famosa que morrera num trágico acidente de avião, estivera no dia anterior no programa de TV que a escritora tinha então numa emissora.

Antes disso, a escritora entrevistara, em Salvador, Bahia, um poeta conhecido, naqueles anos de 1980, como “O Rei do Cordel”. Ele também morrera no dia seguinte à entrevista.

E, por fim, em 2014 uma fã a contatara pelo Facebook e pedira a ela que transformasse a sua vida, a vida da fã, em um romance. Dois anos depois, o livro estava pronto e elas duas, que jamais se encontraram pessoalmente, estavam ansiosas pela noite do lançamento de seu livro quando se conheceriam. Duas semanas depois do livro pronto para ir ao prelo, sua parceira literária e virtual sofreu um acidente de carro no Exterior e morreu.

Impressionante... parecia coisa de romance.

Fôra assim que Leonardo soubera que teria uma base de lançamento segura, dessa vida para a outra, quando chegasse a sua hora.

A amiga da escritora dissera:
-- Você não deve contar isso pra ninguém. Todo mundo vai morrer de medo de chegar perto de você e, por isso, morrer.

-- Nada disso! – respondera a escritora – É bem ao contrário: a vida faz com que aqueles que vão morrer se aproximem de mim e da energia que o Universo colocou dentro da minha alma. Eu facilito a passagem, é isso. Não sou só eu. Aqui na Terra há bilhões de pessoas que, como eu, são as facilitadoras do que chamamos de morte e nada mais é do que uma viagem, uma passagem para outra vida. Aposto que um dos apóstolos da Última Ceia de Cristo era um facilitador.

A amiga rira:
-- Jesus Cristo não precisava disso! Afinal ele voltou no terceiro dia...

Por isso, naquele ano, Leonardo prestara um maior atenção às comemorações de Natal que aconteciam em muitos dos apartamentos daquele condomínio, onde morava.

Esteve ouvindo muitas conversas, a começar pelo sermão do padre de uma igreja católica do bairro. Ele dizia que Cristo morrera crucificado, perseguido, injustiçado, para que os seres humanos pudessem viver. Leonardo não entendeu muito bem o porque disso. Mas entendeu a parte em que o padre recitava alguns dos preceitos da filosofia cristã: o amor ao próximo, a tolerância, a aceitação das diferenças, a generosidade nas atitudes.
Bem que esse padre poderia ter dito isso, na eleição do Presidente Bolsonaro, a essas pessoas cheias de ódio umas das outras, apenas porque tinham diferentes posições políticas- pensou.

Leonardo compreendia, porém, que os brasileiros estavam profundamente decepcionados com a sua classe política. Principalmente com o Presidente Lula, que fôra a esperança de tantos, depois de décadas sem direito de escolher os seus dirigentes. Lula – julgava Leonardo – era um gênio político. Talvez fosse mesmo mais um político corrupto e bandido, como aquele governador do Rio, que estava na cadeia. Aliás, Lula também estava. Mas a genialidade que Leonardo via em Lula era sua trajetória: de pau-de-arara a presidente de um país que ele conseguira também tornar respeitado no Exterior. Está certo que o FHC, antes dele, também conseguira. Mas FHC, bem ao contrário de Lula, era um intelectual que até dera aulas na Sorbonne, em Paris.

Mas, voltando a Jesus Cristo, que também nascera humildemente no meio do povo, Leonardo resolveu ir checar a posição de outras religiões e seitas com relação ao Mestre que – ele ouvira alguém dizer – renascia no coração das pessoas a cada dia 25 de dezembro. E ouviu coisas incríveis!

Existiam vários tipos de crenças sobre Jesus, alguns acreditavam que ele não era filho de Deus coisa nenhuma, seria apenas mais um “Avatar”; outros diziam que, de fato, ele fôra um Druida e que estudara com os povos celtas, cuja igualdade social entre gêneros era uma exceção na história da terra.

Outros ainda diziam o Natal não deveria ser comemorado porque, afinal, Jesus renascia todos os dias no coração dos cristãos.

Havia ainda os defensores dos evangélicos apócrifos, alguns deles diziam que Cristo se casara com Maria Madalena e que, depois da Crucificação, Madalena fugira com os filhos (sim, Ele teria tido filhos!) que deram origem, na Europa, a uma linhagem familiar que hoje estaria espalhada por todo o globo.

Leonardo preferira ficar com essa hipótese. A de que Cristo, com sua infinita bondade, estivesse vivo em muitas e muitas almas sobre a Terra. A Terra era um lindo planeta e estava correndo sério perigo de vida, ele sabia, com o aquecimento global e com aquela superpopulação de humanos. E a superpopulação de humanos ameaçava, sem dúvida, todas as populações animais e até vegetais.

Leonardo não gostava da arrogância dos seres humanos que se julgavam a criação superior a todas as outras. Mas Leonardo sabia também que aquilo era uma pura ilusão. Conhecia a interdependência de tudo o que está vivo sobre a Terra. Afinal, já vivera tantas vidas! E tivera acesso até aos registros acásicos, uma espécie de “internet do cosmos” onde tudo se vê e tudo se sabe. Aprendera o caminho para esse grande registro do saber com a Ordem Rosacruz.

Havia ainda -- e os seres humanos estavam começando a descobrir isso -- uma “internet das árvores” que se ligavam umas às outras por suas raízes e as raízes de todas a plantas. Quando os humanos destruíam completamente a vida no subsolo de alguma área, causavam um grande dano à comunicação vegetal.

Naquele natal, 2018, Leonardo pensou que, afinal, já vivera bem mais tempo do que deveria, se pensasse na média de vida da sua espécie. Talvez fosse hora de procurar a escritora do último andar. Já cumprira o seu dever nessa vida. Já deixara descendentes, que carregariam em seus corpos a memória genética dele também. Já cumprira suas funções na vida, fizera o que viera fazer. Talvez a sua hora estivesse chegando.

A escritora do último andar estava pensando que precisava escrever um conto de natal, tradição que mantinha em todos os dezembros, havia quase trinta anos. Era domingo, dia 23, e ela passara grande parte da tarde cuidando de suas plantas, trocando de vaso as que já tinham crescido demais para a casa que ocupavam, lavando cachepôs, podando os galhinhos amarelados, essas coisas. Tudo isso fazia bem à sua alma. Quando terminava, as plantas pareciam ter ganho novo fôlego: mais verdes, mais eretas, mais vivas...Vivas... Grande mistério, esse da vida. Todos os anos ela escrevia contos de Natal porque acreditava que o mundo seria muito melhor e muito mais feliz se adotasse o que de mais básico havia na filosofia daquele que renascia a cada 25 de dezembro: o amor ao próximo.

E isso, acreditava ela, não era uma abstração. O amor era uma grande conquista, que enchia de júbilo a nossa alma, a cada passo, a cada degrau dessa conquista. O amor não é um estalar de dedos. Não é paixão, não é emoção. Amor é um sentimento construído racionalmente, pela vontade de alcança-lo. Se constrói todos os dias, quando se revê cada atitude que se tem, cada pensamento e, se um deles não estiver na direção correta, se faz preciso colocá-lo nos trilhos. Tolerância, compreensão, carinho, ser amigo de tudo o que está vivo, até das baratas... ria ela, em pensamento.

Já estava velha e muitas vezes se pegava numa atitude preconceituosa, num pensamento ruim... e tratava de mudar. Mudar sempre. Mudar e melhorar, aperfeiçoar, para poder amar. Essa era a sua interpretação pessoal da filosofia de Cristo. Por isso, gostava do Natal.

Estava pensando que cuidar das suas plantinhas era também um ato de amor, quando Leonardo invadiu-lhe o apartamento, entrando esbaforido na sala. Mas ela não o viu. Acabara de sair para buscar, na área de serviço, o último vaso que arrumara. Quando voltou, topou com Leonardo caído no chão, já sem vida.

Como ela não era boba nem nada, não se atreveria a tocá-lo antes de saber se ele estava morto mesmo. Seres como aquele costumavam ser naturalmente perigosos.

Assim, pegou uma folha de papel toalha e cutucou de leve o corpo de Leonardo: nada. Estava morto mesmo. Já estava bem velhinho. Ela não sabia, mas ele já vivera 3 semanas e cinco dias.
Envolveu-o carinhosamente no papel toalha e pensou:

No saco de lixo, entre restos de plantas, um pouco de terra e folhas secas, envolto na branca mortalha de papel, uma sepultura digna, para um marimbondo.

A imagem de Cristo, envolto no branco sudário, passou-lhe pela imaginação.
O que está em cima é igual ao que está embaixo – pensou – Assim na Terra como no Céu.