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foto Isabel, Natal Pauliceia

O Natal, A Angústia, e o Fantasma da Paulista.
Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.

1. SERENA

Serena sai do Shopping carregando a angústia na bolsa. Tinha metido ela, aquela danada que lhe apertava o peito, a duras penas, num lance de magia, lá trancada junto com as quinquilhões de coisas que carregava na sua falsa Louis Vuitton.

Mas ainda lhe resta um certo medo no coração, embora esse agora esteja bem mais aliviado: Vai que a peste da Dona Angústia consegue escapar e volta a se instalar em sua alma? Afasta o pensamento, com força, tanta força que pode vê-lo, materializado, como uma nuvenzinha negra, no ar, confundida com a poluição da Avenida Paulista.

Mal sai para a movimentada calçada e quase tromba com um homem esquisito. Quase tromba não é a expressão certa. Na verdade, ela não trombou com ele, mas sim, passou através dele. Ops! O que seria isso? Uma projeção holográfica?

Não. Era o Fantasma da Paulista que, nesse Natal de 2024, voltara de suas andanças pelo Céu, saudoso de estar novamente na avenida que concebera, criara e inaugurara, a 8 de dezembro de 1891.

Sabia que conseguiria voltar – pensava o Fantasma de Joaquim Eugênio de Lima – sentindo-se simplesmente triunfal, por tê-lo feito.

-- Oba! – pensou o Fantasma, quando Serena passou através dele – mais uma paulistana que pode me ver!

Você, leitor, que conhece o Fantasma, sabe que ele, quando aqui na Terra, só consegue conversar com mulheres e que não pode, em hipótese alguma, sair da Avenida – a “sua” Avenida – porque, quanto tenta fazer isso, é imediatamente arremessado, pelas forças dos Universos, a um outro momento no Tempo, sempre na Paulista. Por isso visitou quase todas as épocas compreendidas entre 1891 e 2050, ou seja, da inauguração à reconstrução da sua linda avenida. E acompanhou a evolução das almas e do pensamento das mulheres paulistanas por todos esses Tempos.

Eugênio de Lima sabe que, desta vez, veio parar em 2024. Já se acostumou a olhar os jornais nas bancas para ver a data em que está. Se bem que ele, hoje em dia, preferiria ter um desses celulares para poder informar-se e não ter que recorrer a uma coisa tão ultrapassada como um jornal impresso. Mas... Fazer o que, né?

Se a moça pôde passar por ele, poderá também ouvi-lo e ele se volta sobre seus passos e vai caminhar ao lado dela:

-- Boa tarde, linda jovem. Permita que me apresente: sou o Fantasma da Paulista, Joaquim Eugênio de Lima, nascido em Montevideo em 1845, 6 de setembro, e falecido aqui em São Paulo, em 13 de junho de 1902.

-- Arre! – exclama Serena – que diabo de pegadinha é essa? Uma projeção holográfica ...

-- Ai, moça! Não aguento mais ser confundido com essa coisa de “projeção holográfica”. Dos anos 2000 e pouco pra cá, encontrei muitas que me confundiram com isso. Eu sou um fantasma legítimo, moça, e se é um privilégio, para mim, poder conversar com você, saiba que também o é, para você, poder conversar comigo! Afinal, fui eu quem criou essa avenida, que é hoje o símbolo da cidade de São Paulo. Não vai se apresentar a mim?

-- Sou Serena Gonçalves de Almeida – diz ela, quase sem querer. Mas ainda acho que você é uma pegadinha holográfica de algum site ou, pior, emissora de TV.

Eugênio de Lima ri:
-- Não, Serena. Eu sou mesmo o legítimo fantasma do criador da Av. Paulista.

Serena olha bem nos olhos – transparentes – dele. E, de súbito, a invade a certeza de que ele é, de fato, um fantasma. Pergunta:

-- O senhor por acaso está condenado a, depois de morto, viver aqui na avenida? E pensa, imediatamente “depois de morto, viver” é uma incoerência.

-- Não. Eu vim aqui hoje porque estava com saudades. Já estive aqui em tempos muito diversos, acompanhei a evolução da mulher paulistana ao longo dos séculos XX e XXI... e senti saudades. Por isso, depois de um longo período lá no Céu, resolvi voltar. E voltei usando a mesma espécie de magia que você usou, Serena, para trancar a sua angústia na sua bolsa.

-- Ué... como pode saber disso?

-- Li o seu pensamento, esse que saiu como uma nuvenzinha negra, de dentro de você. Prerrogativa dos fantasmas, você compreende, não é?

-- Aff... – fez ela – se eu não estiver enlouquecendo...

-- Bom – respondeu o fantasma – já que estou aqui, talvez possa ajuda-la a livrar-se de sua angústia. Acho que posso mesmo. Assim, quando chegar ao seu destino e abrir a bolsa, ficará surpresa ao ver que sua angústia não está mais lá dentro.

-- Ah... Sr. Fantasma... Já que estou vivendo essa coisa tão inusitada... Seria bom mesmo, para mim, poder desabafar com alguém...

Nesse momento o Fantasma e Serena chegavam a uma transversal da avenida e pararam para esperar a eternidade que dura um sinal vermelho para pedestres, se bem que maioria dos transeuntes, arriscando a própria vida, atravessava, quando dava uma brecha.

Ele propôs:
-- Está vendo ali na esquina? Tem um café. Vamos nos sentar numa mesa lá e você poderá me falar dessa Dona Angústia que a está perturbando...

-- Vão pensar que sou louca, se me sentar à uma mesa de café e começar a falar para ninguém... Creio que só eu posso vê-lo, não é assim?

-- É, de fato. Mas você, por sorte, está com o seu celular no bolso da calça e poderá coloca-lo sobre a mesa, sem correr o risco de deixar escapar a angústia ao abrir a bolsa, e fingir que está falando com alguém que está do outro lado da linha do seu aparelho.

-- Hum... Pra um fantasma, o senhor até que é bem esperto.

-- Sempre fui e sempre serei – respondeu Eugênio de Lima.

-- E bem convencido, também – riu ela, como há tempos não ria, desde que a Dona Angústia abarcara sua alma e seu coração.

No café, depois de pedir um curto e uma porção de pão de queijo, Serena desabafou.

Contou a ele que nascera numa família pobre, na periferia de São Paulo, filha caçula de um casal que muito batalhara para poder criar seus rebentos. E que, por periférica, nascida no meio da década de 1970, em plena ditadura militar, crescera acreditando que a ascensão social era alguma coisa impossível. No entanto, queria estudar. Adorava a escola. Queria ir para a faculdade, muito embora seus pais acreditassem que esse seu querer não passasse de sonho adolescente. Mas ela foi. Conseguiu entrar na USP e não cursou porque não tinha dinheiro suficiente para pagar a condução (as conduções) que a levariam da zona leste à oeste, onde ficava o campus. Era longe. E caro. Muito menina, começara a trabalhar numa lojinha do seu bairro e, quando terminou o segundo ciclo, formada professora, uma de suas mestras falara a ela sobre as creches que a Secretária de Estado do Menor, estava criando na cidade. Prestou concurso, foi aprovada, mas teve que esperar alguns meses para assumir porque estava com 17 anos e só se admitiam funcionários públicos, aos 18.

-- Foi uma experiência maravilhosa! – disse Serena ao Fantasma.
Era o começo da Abertura Democrática no país e, ali na creche onde eu fui lotada, só havia intelectuais altamente preparados para a Educação, quase todos discípulos do grande Paulo Freire e eu, uma menina inexperiente, aprendi tudo com eles! E, além disso, ganhava, por mês, de salário, mais do que o meu pai! Foi por isso que eu pude cursar, lá na periferia mesmo, uma faculdade e me tornei psicopedagoga. Mas não parei por aí. Fiz pós graduação. Fui me especializando, me aprimorando... Um dia, conhecei um cientista louco, biólogo, respeitado em todo o mundo por sua seriedade e viajei com ele por todo o planeta, indo a congressos onde ele era recebido com tapete vermelho... Viemos morar aqui, nos Jardins, e eu, ainda carregando meu complexo de vira-lata da periferia, não tinha coragem de entrar nos estabelecimentos, comerciais ou culturais, acreditando que “não era para mim” ... Demorou, mas consegui superar isso também! No entanto, fiquei mais de duas décadas trabalhando com professora de educação infantil. Eu adorava a convivência com as criancinhas e estava satisfeita. Mas, um dia, alguém, na Prefeitura, observou o trabalho que eu fazia com as crianças, nas hortas e na produção de alimentos sustentáveis, e fui convidada para ser uma executiva no órgão municipal que se responsabiliza pela alimentação das crianças das escolas da cidade. Servimos mais de 2 milhões e 400 mil refeições por dia a esses alunos e essas têm que ser absolutamente corretas, sustentáveis e nutritivas... Aceitei. Já faz mais de um ano. Mas, agora, não tenho mais tempo para mim, para o meu marido, para os meus amigos, para a minha família, para o teatro, o cinema... pra nada, Fantasma! É só trabalho, trabalho e trabalho, inclusive nos fins de semana, quando há eventos, visitas a centros de nutrição, culturas agrícolas na periferia, isso quando não há reuniões políticas e cursos de atualização... Essa falta de tempo para a minha vida particular é que está me matando, me angustiando e não sei se devo voltar a simplesmente dar aulas para as criancinhas... era tão bom... trabalhava só seis horas por dia. Tinha tempo para todo o resto... Agora...

-- Serena – disse o Fantasma – quando assumimos uma posição de poder há sempre um preço a pagar por isso. Compreendo que a angustie a falta de tempo para atividades culturais e de lazer, a falta de tempo para a convivência com seus amigos e familiares. Mas, por outro lado, você realmente acredita que seria feliz voltando a ser uma simples professorinha? Sem a importância do seu cargo atual? Sem a convivência com os poderosos, os secretários de estado, políticos, até com o próprio prefeito? Eu duvido, minha querida. O tempo não volta. Essa é a sua realidade profissional agora. E você deve estar aprendendo muito com ela.

-- Ah... Estou mesmo! – suspirou Serena.

-- Então, minha linda menina! Viva-a intensamente! E no pouco tempo que restar para os amigos, para a cultura, para a família, viva intensamente também esse tempo. E jogue fora pra sempre essa angústia. Todos nós, quando aqui na Terra, temos uma missão a cumprir. E, pelo jeito, a sua, é linda! Agora é Natal. No Natal, aqui na Terra, Primeiro Chegam os Anjos! Peça a eles que a inspirem, que a façam aceitar a sua nova realidade como uma coisa positiva e vibrante, pois é isso que ela é! Pense no quanto você ascendeu e no quanto você está fazendo por aqueles que são menos privilegiados que você. A merenda das crianças, nas escolas públicas, é uma benção para elas e para suas famílias e é você, você, quem contribui para a excelência dessas refeições.

Serena, de repente, sentiu que a bolsa, que ainda trazia pendurada no ombro, se tornara mais leve.

-- Christo – disse o Fantasma – sabia que a sua mensagem de amor ao próximo, que o seu “amai aos outros como a ti mesmo” acabariam por leva-lo à crucificação. Cada um de nós tem a sua cruz no mundo. A sua é essa: menos tempo para o que lhe dá prazer e alegria. No entanto, quanto Bem você está fazendo ao seu próximo, com seu trabalho, ainda que esse seja estafante!

Serena sentiu-se subitamente em paz. Sabia que a Dona Angústia já não lhe pesava na bolsa. Sabia, com a certeza dos que assumem o seu fardo, que estaria cumprindo a sua missão. Estendeu as mãos, emocionada, para tocar as mãos de Joaquim Eugênio de Lima e para agradecer a ele por livrá-la da Angústia. Mas ele já não estava mais ali.

2. VITÓRIA

Quando deixou Serena no café – pois já cumprira a sua missão para com ela – o fantasma de Joaquim Eugênio de Lima voltou a caminhar pelas calçadas da Paulista. Estava chegando ao seu edifício predileto – aquele mesmo onde, um dia, se erguera a primeira casa da sua Avenida – quando viu saindo pelo portão do prédio uma sessentona bonita, morena, bem vestida, extravagante. Era a Vitória. “Nossa – pensou ele – deve ser uma personalidade e tanto...” Ela, por sua vez, bateu os olhos nele e espantou-se: “O homem é translúcido... Quase transparente... E vestido com os trajes do final do século XIX... Será uma holografia? Mas ele é lindo!”

-- Oh! – Exclamou o Fantasma acercando-se dela – Ainda bem que desta vez alguém acrescentou o adjetivo “lindo” a essa horrorosa ideia de que eu, um legítimo Fantasma, seja apenas uma projeção holográfica!

Vitória olhou em torno. Ninguém parecia notar a presença dele. Alguns passavam mesmo através dele.

-- Fantasma de quem? – perguntou ela.

- Do fundador dessa Avenida – com muita honra – respondeu ele numa mesura elegante.

-- Oh! O Fantasma de Joaquim Eugênio de Lima! Para mim, uma honra conhece-lo pessoalmente! – disse Vitória.

-- Puxa! Em mais de um século de andanças por aqui – afirmou ele – poucas vezes encontrei alguém que sabia que eu era mais do que o nome de uma alameda transversal à Paulista!

-- Ah... – respondeu ela – Mas eu já conhecia a sua história e a história da construção da Paulista, inclusive do aterro, sob o MASP e o Parque Trianon, quando li o livro que a minha vizinha, a escritora Isabel, publicou sobre o senhor. Mas não podia acreditar que o seu Fantasma fosse mesmo real! Nossa, que coisa! Sempre pensei que fosse apenas a imaginação da escritora. O senhor apareceu para ela, então?

-- Sim – respondeu Eugênio de Lima com uma certa tristeza no olhar. Apareci em 1989, dentro da Árvore da Felicidade que ela tinha no quarto em que dormia com seu hoje falecido marido, Mauro Caetano, e ela julgou ter sonhado. Mas, quando conheceu a minha história de vida, em 1991, quando do Centenário da minha avenida, me reconheceu numa foto e resolveu fazer um vídeo sobre o meu Fantasma e, nos anos 2000, começou a escrever um livro sobre mim. * Mais tarde, foi no domingo em que a avenida completava 128 anos, 8 de dezembro de 2019, eu estava ali quando a Isabel autografava a nova edição do livro dela sobre mim, aqui mesmo, em plena calçada! Infelizmente, porém, ela não me via... Não me viu... E não pude falar com ela. Você sabe, esse milagre da minha comunicação com os vivos é totalmente aleatório. Mas onde você está indo? Posso acompanha-la?

-- Claro – respondeu ela – será um prazer e uma honra! Na verdade, saí apenas para descansar um pouco do trabalho que estava fazendo no computador de casa, que estava me matando, sr. Eugênio, me matando... Tenho alma de artista, gosto de exercer a minha criatividade e, nesse momento, estou envolvida até os gorgomilos com as insuportáveis questões burocráticas, administrativas e trabalhistas do meu negócio... e isso acaba comigo! Tenho pensado em jogar tudo pro alto e ir morar numa cidadezinha do Interior...

O Fantasma riu:
-- Nem pense nisso, minha cara! Em uma semana você já estaria doente de tanto tédio! Uma alma como a sua – e, como Fantasma, tenho o privilégio de compreender claramente a alma dos vivos – nasceu para criar, empreender, brilhar! Não suportaria o isolamento e, muito menos, o anonimato. Quero quer que a sra. Vitória seja, enfim, uma figura pública. Estou correto?

Agora foi ela quem riu:
-- Meio pública! De vez em quando apareço na mídia e nas redes sociais porque afinal sou a criadora de uma das maiores franquias de restaurantes 5 estrelas dessa cidade. O meu primeiro restaurante foi aberto há 40 anos. Era um modesto bistrô, numa porta de garagem de uma grande casa nos Jardins. Fiz dele, porém, mais do que um simples restaurante. Fazia – e ainda fazemos – shows de jazz, música pop, música brasileira, além de exposições de arte, leilões de parede, lançamentos de obras literárias... E acredito que foi por isso que crescemos, além da excelente qualidade da nossa cozinha, é claro. Nessas quatro décadas, seu Fantasma, lançamos vários artistas que depois se revelaram grandes estrelas nacionais e internacionais na música, nas letras, nas artes. E fomos crescendo. Abrimos franquias e agora, com essa atual dificuldade de se contratar mão-de-obra especializada, estou sem gerente administrativo, e tive mais de cinco deles nesse último ano, nenhum funcionou... Quando eu acabo de treinar um deles e penso que vou me livrar do trabalho burocrático, ele, ou ela, se demite e cai tudo outra vez no meu colo! Isso sem contar o resto do pessoal: garçons, porteiros, caixa... Todos numa enorme rotatividade e exigindo sempre a minha atenção no treinamento...E muitos deles saem do restaurante direto para Justiça do Trabalho, que nem sempre é imparcial, quase sempre, mesmo sem provas, dá ganho de causa ao empregado... Ah... Me perdoe se canso seus honoráveis ouvidos com essa minha cantilena maçante e burlesca...

-- Absolutamente! Não cansa! – respondeu Eugênio de Lima – Pelo contrário. Sua narrativa é muito estimulante e me faz dar tratos à bola. Também fui empreendedor, em vida. Tive jornais, fui banqueiro e urbanista. Também passei por esse tipo de crise que a senhora está vivendo agora...

-- Por favor, me chame de você – interrompeu ela.

-- Só se você também o fizer com relação a mim.

-- Fechado, Joaquim! – sorriu ela.

-- Pois bem – continuou o Fantasma – esses momentos, essas crises que nos cansam e consomem, simplesmente passam. Mas, perdoe-me a franqueza – os homens as enfrentam com mais facilidade que as mulheres.

E, ante o espanto que viu brotar na expressão do rosto dela, disse:

-- Calma! Não vá me tachando de machista ou misógino. Não sou nada disso. Mesmo em vida já torcia pelo sexo feminino. Minha esposa foi sufragista e, lutando pelo direito das mulheres ao voto, acabou me fazendo compreender a essência da discriminação contra elas. E, naquele tempo, era bem pior!

-- É verdade – suspirou Vitória.

-- No entanto – continuou o Fantasma – nas minhas andanças aqui pela avenida, como Fantasma, conheci mulheres extraordinárias! Artistas. Cientistas. Intelectuais. Mulheres à frente do tempo delas e dotadas de uma coragem e de uma determinação das quais muitos machos carecem... Porém, como vocês dizem hoje, o buraco é mais embaixo. A questão não é a simples desigualdade de gênero. É principalmente cultural. Veja bem, durante milênios, as mulheres foram criadas não apenas para dependerem dos homens, financeira, econômica e até afetivamente, como também para se julgarem menos capazes do que eles. Raras foram aquelas que não acreditaram nessas inverdades sociais. Mas quase todas acreditaram na grande mentira, o mito do amor materno, como queria a Badinter **(conhece essa filósofa francesa, sua contemporânea?)

Vitória acenou com a cabeça uma afirmativa e Joaquim Eugênio prosseguiu:

-- Por toda a sua condição social, o sexo feminino não tem, culturalmente, a mesma resiliência masculina às adversidades e às exigências da vida corporativa e até mesmo política...

-- Ei! Calma lá, seu Fantasma! – interrompeu Vitória – O mundo está hoje cheio de mulheres em cargos de alto comando, seja em suas próprias empresas ou nas grandes corporações. Está repleto de figuras decisivas no rumo das atividades humanas, como a Ursula Von der Leyen, que é Presidente da Comissão Europeia, como a Ângela Merkel, que comandou por anos a mais rica nação da Europa e, só pra citar exemplos tupiniquins, temos as nossas ex-prefeitas da São Paulo, Luiza Erundina, que aos 90 ainda briga no Congresso e Marta Suplicy, sem falar em Alda Marco Antonio, presidente para as mulheres de um dos maiores partidos brasileiros e que foi vice do então prefeito Kassab...

-- Sim, claro – interrompeu o Fantasma -- E muitas mais! Várias CEO de grandes corporações, inúmeras políticas atuantes e até pequenas ou grandes empresárias bem sucedidas..., mas, olhe aqui bem dentro dos meus olhos e me responda com sinceridade: -- Você acha que, em nenhum momento da sua trajetória profissional, essas mulheres não fraquejaram? Não passou por suas mentes e por seus corações esse desejo de largar tudo, chutar o pau da barraca e voltar para o seu posto de Rainhas do Lar?

Vitória teve que rir.

O Fantasma continuou:
-- As mulheres, participando da vida política e da vida produtiva, precisam, mas é transformar o estilo de fazer política e da produtividade. Elas entraram no mundo dos homens e acabaram virando homens de tailleur, muitas se esqueceram de suas naturais e biológicas atribuições, como, por exemplo, a sua capacidade intuitiva – um atributo gerado pela condição física de estarem preparadas para a maternidade – a sua cultural e proverbial capacidade conciliatória (como a das grandes matriarcas a mediar grandes conflitos familiares). Até o próprio Livro Sagrado dos Christãos, a Bíblia, tratou de omitir, no Novo Testamento, o papel preponderante de mulheres como Maria, a mãe, e Madalena, a esposa, de Jesus. E, a cada Natal, como agora, Deus manda seus Anjos soprarem aos ouvidos das almas sinceras, a busca pela verdadeira história das muitas mulheres que conviveram na Terra com o seu Filho e o auxiliaram em sua nobre missão de pregar o amor.

-- Sim – respondeu Vitória – Cada vez mais se fala nos Evangelhos Apócrifos, numa possível linhagem de descendentes diretos de Jesus com Madalena, até Hollywood já falou sobre isso! Por acaso, você seria um desses anjos, que chegam primeiro no Natal? – perguntou Vitória, meio zombeteira.

-- Perceba – continuou o Fantasma, sem considerar a pergunta dela – agora mesmo, há pouco, antes de encontrar você, estive conversando com uma ex-professora que foi galgada à posição de alta executiva num departamento da Secretaria Municipal de Educação. Isso foi há mais de um ano e, agora, ela estava extremamente angustiada – assim como você também está – porque essa sua nova função não lhe permitia mais dedicar o tempo que gostaria ao marido, à família, aos amigos, às atividades culturais que ela sempre apreciou. Por isso pensava em largar tudo e voltar a lecionar, para ter mais disponibilidade para suas “coisas de mulher” ... No entanto, ao mesmo tempo, ela admite que, além de estar aprendendo muito, em sua nova função, tem agora um poder que ela nunca experimentara antes na vida. Acha que ela seria feliz se voltasse a lecionar para suas criancinhas? Depois de ter provado uma posição elevada na hierarquia de poder do município?

-- Não – respondeu Vitória, sinceramente.

-- E você? Seria feliz escondendo-se numa casinha numa cidade do Interior? E, além disso, eu sei que você é uma das diretoras nacionais da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Essa posição lhe proporciona muitas oportunidades de congraçamento e de crescimento profissional. Renunciaria de bom grado a isso?

-- Como você sabe disso, Joaquim? – perguntou Vitória.

-- Vi você, na TV de uma loja aqui da Paulista, essa manhã, dando entrevista a uma emissora importante. Renunciaria?

Vitória teve um risinho amargo e, compreendendo a lógica do Fantasma, respondeu:

-- Não.

-- Pois é – disse o Fantasma – Para os vivos o tempo não volta. Qualquer um, num momento de grande exigência profissional, se sentindo pressionado e sob estresse, pensa em jogar tudo pro alto e voltar-se para uma vida menos complexa. Mas não se anda para trás, Vitória. É aqui que entra a questão cultural de gênero. Nenhum homem, galgado a uma posição de poder, seja ela qual for, pensaria em voltar para trás apenas por estar no meio de um difícil batalha. Batalhas existem para serem vencidas, mesmo que, às vezes, saiamos delas como perdedores. As mulheres, ao contrário, se dão ao direito de sonhar, diante da adversidade profissional, numa “volta para a casa” porque, socialmente, isso não seria visto, numa mulher, como uma derrota. Às mulheres, a sociedade dá essa opção, sem crítica. Mas você não é, e nunca foi, uma pessoa fraca. Você já enfrentou, nesses quarenta anos de empreendedorismo, coisas piores, tenho certeza. Assim como tenho certeza que vencerá mais essa na vida!

Disse isso e foi se esvaecendo, desaparecendo no ar, mas ela ainda pode ouvi-lo dizer:

-- Afinal, seu nome é Vitória!
 

Bel. 2024, dezembro, 13 e 14.
 

* O Fantasma da Paulista

** O Mito do Amor Materno, Elizabeth Badinter

 

ROSELI: Ai Bel! Só você mesmo né... pega a essência e torna poesia... que lindo! Realmente veio num momento da angústia da decisão... obrigada querida psicóloga!!!