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A Barata.

conto de ISABEL FOMM de Vasconcellos Caetano

 

Antonio nascera pobre, na zona sul da cidade de São Paulo, mais precisamente no bairro de Santo Amaro. Bairro, aliás, que fôra, até a metade da década de 1930, e por mais de 100 anos, um município e que, por isso, até hoje conserva uma certa “cara” de cidade do interior, mantendo suas tradições e seu orgulho dessas. Foi largamente povoado, nos anos 1940,50 e 60, por migrantes alemães e nordestinos.

Os pais de Antonio contavam muitas histórias sobre o lugar: dos footings do Largo 13, onde, aliás, se conheceram e começaram a namorar, até as romarias em caminhões à Aparecida e principalmente à Pirapora do Bom Jesus; falavam ainda dos ingênuos carnavais de rua e das primeiras salas de cinema, da importância das padarias – ponto de encontro obrigatório aos domingos, assim como obrigatória era a compra e a leitura do Jornal O Estado de São Paulo.

Mas Antonio não vira nada disso. Nascera bem depois, de uma gravidez de risco de sua mãe, que já estava beirando os 40, numa época em que as mulheres, de maneira geral, tinham o primeiro filho antes dos 20.

Eram pobres, os seus pais, mas nem por isso deixaram de criar aquele filho, tão sempre desejado e tão tardio, com muitos mimos e procurando fazer-lhe todas as vontades.

No entanto, a maior vontade de Antonio, desde muito criança ainda, era simplesmente ser rico. Ia a pé para a escola, admirando as casas mais suntuosas, onde habitavam os próceres santamarenses, tentando adivinhar como seriam por dentro, às vezes até se aventurando a entrar num jardim e ir espiar pelas janelas, na procura de saber como viviam, afinal, os ricos.

Inteligente, sabia que um dos caminhos para realizar seu sonho, estava na educação. Sempre foi um dos primeiros da classe, em todo o seu curso básico. Optou por um segundo ciclo profissionalizante, pois pretendia começar a trabalhar o mais rápido possível. E subir na carreira. Tornou-se contabilista. Seu primeiro emprego foi numa pequena empresa local, que montava e vendia as então famosas “cestas de Natal”. Trabalhavam o ano inteiro adquirindo os itens não perecíveis que fariam parte das tais cestas, sempre pesquisando os melhores preços, as melhores condições.

Numa era pré-computador, Antonio tinha uma trabalheira infernal para manter em ordem as contas da casa. Um dia, o patrão o encarregou de fazer a declaração de Imposto de Renda. Ele caprichou. Fez tudo certinho, como manda a Lei. Mas o patrão, olhando a declaração, caiu na risada e disse:
-- Ô, moleque! Pra fazer essa declaração assim toda certinha, não preciso de você. Preciso de alguém que consiga fazer o trabalho com o máximo de economia para mim. Você sabe, melhor do que eu, como será possível isso. Volte pro escritório e refaça, mas desse jeito que estou pedindo, ok?

Antonio debruçou-se sobre a papelada e refez a declaração, sonegando tudo o que era possível e até o que não era. Quando estava pronta, levou-a ao patrão que sorriu, animado:
-- Ótimo! Agora sim.

Antonio teve, dessa forma, a sua primeira lição de como os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Daí em diante tratou de especializar-se em todo o tipo de fraude, tributária, trabalhista, o que fosse, desde que o resultado sempre beneficiasse o dono da empresa ou a própria empresa.

Estava então no último ano de seu curso de contabilidade. Curso noturno, para poder trabalhar durante o dia. Dormia pouco mais de três ou quatro horas por noite porque, quando chegava da escola, mergulhava nos estudos das matérias que ele sabia que cairiam no exame para a universidade, cabeceando de sono, mas atento, pela madrugada afora. E ele queria entrar na USP. Tinha um amigo, bem menos pobre do que ele, que frequentava o mais famoso cursinho pré-vestibular da cidade e que lhe emprestava todas as apostilas de todas as matérias. Resultado: foi aprovado, em terceiro lugar, para a Faculdade de Economia da USP.

Antonio cursara o colégio estadual mais famoso de Santo Amaro. Lá, aprendera os primeiros rudimentos das línguas inglesa e francesa. Com seu sucesso no vestibular (e também nas sonegações do IR), seu patrão promoveu-o a contador chefe da pequena empresa. Com um salário melhor, matriculou-se numa escola de inglês, de imersão total, com aulas no fim de semana.

Seus pais, que sempre se preocuparam com o excesso de atividades do filho e, por conseguinte, com a sua saúde física, se esmeravam na qualidade de alimentação, mas o achavam magro demais. Também pudera! Ele só tinha olhos para o trabalho e para os estudos. Não ia às festinhas, jamais um cinema, mas, nos ônibus que tomava para se deslocar de um canto a outro da cidade, ia lendo. Ainda que não encontrasse lugar para se sentar. Lia os clássicos, que pegava na Biblioteca Pública do centro da cidade. Sabia que, além de bom profissional, precisava esmerar-se na cultura, nos conhecimentos gerais, se queria realmente alcançar a sua meta: ser rico.

Nos fins de semana, enquanto outros jovens iam se divertir, nas festas, no autódromo de Interlagos, nas boates e nos bares, Antonio, ao terminar suas aulas de matinais de inglês, ia aos Museus. Fez todos os cursos gratuitos que essas instituições, vez ou outra, ofereciam.

Teve algumas namoradas, mas todas desistiram dele: afinal, ele não tinha tempo para elas! Não as levava aos cinemas, aos bailes, nada! O sexo ele resolvia com as prostitutas locais, mas fazia sexo por alívio e não por prazer. Muitas de apiedavam do rapaz magro, de óculos de fundo de garrafa, que vivia para estudar e nem cobravam nada por aquele amor tão rápido.

Um dia, convidado a jantar na casa do patrão, conheceu Helen, uma inglesa filha de um diretor de uma empresa multinacional farmacêutica, que recentemente se instalara no Brasil. Para Helen, ele arrumou algum tempo. Afinal, casar-se com uma estrangeira (e filha de multinacional) combinava bem com os seus planos de ascensão social. Tratou de conquista-la, cortejou-a, e ela acabou interessada naquele jovem nativo, tão culto, charmoso, com um inglês fluente e uma grande cultura literária. Foi ela quem colocou a cereja no bolo dele: ensinou-o a se vestir com elegância, a se portar adequadamente à mesa, deu-lhe, enfim, o verniz social que lhe faltava.

Namoraram – não sem enfrentar uma certa rejeição a ele, pela família dela – por três anos. Tempo suficiente para que o charme e o carisma do brasileiro, além de seu inglês perfeito, derrubassem quaisquer restrições que a família britânica ainda tivesse a ele.

Quando da formatura de Antonio, na USP, Mr. Bridges, o pai de Helen, deu seu consentimento: os “the lovebirds” poder-se-iam unir-se em casamento.

Antonio então se deparou com algo em que nunca pensara. Como apresentar o seus pais, já bem velhinhos, à família da noiva, sem denunciar a sua origem humilde? Pensou em fazer-se passar por órfão, mas não, não teria coragem suficiente para tal embuste, além de ser arriscado (eles poderiam descobrir a verdade), no fundo de seu coração, Antonio sabia que também seria injusto... Afinal, ele devia muito aos pais. Recentemente reformara a modesta casinha que eles tinham em Santo Amaro, trocara a mobília, equipara a cozinha com o de que mais moderno havia... Mas os dois eram pessoas muito simples. Resolveu ser franco. Disse que seu casamento era uma jogada de ascensão social, que queria que os velhos estivessem bem apresentados e pediu-lhes, rogou-lhes, que, diante da família da noiva, não o chamassem de Toninho e sim de Tom. Levou-os, numa tarde de sábado, a um shopping caro e fino, os fez passar por um salão de beleza de onde saíram com os cabelos bem cortados e pintados, a pele bem tratada e onde a mãe aprendeu a se maquiar como as mulheres ricas. Depois comprou-lhes roupas modernas e finas, maquiagem para a mãe, ricos sapatos, e, no domingo, no almoço de sempre, ensinou-os a usar corretamente os talheres à mesa. Um verdadeiro e literal “banho de loja”. Foi um sucesso. Os velhos, bem vestidos e apresentados, com sua proverbial simpatia, conquistaram a aprovação da família de Helen.

Formado e casado, Antonio, não parou de estudar. Fez-se mestre e, depois, doutor, pela mesma USP. Helen reclamava, como as antigas namoradas dele, da falta de tempo para ela. Mas ele a cobria de presentes, flores, mimos, na tentativa de compensá-la.

Três meses após o casamento, foi admitido para o cargo de controller numa multinacional americana. Treinamento em New York. Visitas às filiais da empresa em Londres, Amsterdam, Bruxelas, África do Sul... Antonio vivia montado em aviões, cruzando o planeta. Ganhava bem, mas também gastava bem. Percebeu que esse não seria o caminho para o seu sonho: ser rico!

Enquanto isso, Helen, “abandonada” no Brasil e grávida do filho deles, apaixonou-se por um artista plástico. Enquanto Antonio desfrutava de seu sucesso profissional, Helen vivia um tórrido caso de amor com seu pintor. Montou um atelier para ele, no Bixiga, e, lá, viviam grandes noites de sexo.

Quando Antonio, finalmente, retornou, ela lhe disse:
-- Quero me separar de você! Quero ter a oportunidade de viver um grande amor!

-- Mas você está grávida de nosso filho! – respondeu ele.

-- Vou abortar. Ainda dá tempo.

Antonio caiu em depressão. Ela abortou. E ele comprou uma enorme casa nos jardins, onde, para disfarçar a solidão, vivia com a TV ligada. Morava sozinho, com uma empregada residente que às vezes lhe servia sexualmente também.

Seu cargo ainda o fazia viajar muito pelo mundo, mas ele sonhava em ser rico. Vivia como os ricos, é verdade, graças à sua posição profissional. Mas sabia que, se perdesse o emprego, imediatamente voltaria a ser pobre. Preciso de um grande empreendimento – pensava então. Mas, dentro de sua alma, alguma coisa se quebrara. Ele trabalhava com afinco mas não tinha mais aquele ímpeto que o levara a estudar e estudar. Agora precisaria empreender e empreender, caso quisesse alcançar o velho sonho de ser rico. Já sabia viver como rico, mas a perda da mulher e do filho, que nem sequer chegara a nascer, colocaram nele uma certa depressão que minou-lhe o ímpeto. A vida se tornou arrastada, monótona, apesar das constantes viagens internacionais, eventos importantes e reuniões interessantes. Foi por essa época que morreu-lhe o pai. A mãe, inconsolável, pois amava de verdade o marido agora morto, começou a definhar e, seis meses depois da morte dele, um enfarte fulminante a matou. “Estão juntos de novo” – pensou Antonio ao ver o caixão de sua mãe baixando à sepultura.

Cerca de um ano depois ele já percebera que a grande empresa empenhava-se em fazer com que seus executivos se acostumassem a viver frequentando estabelecimentos de alto padrão e, portanto, caríssimos, pois assim o fariam também na vida particular. Traduzindo: gastariam seus altos salários. Assim, decidiu que não entraria nesse jogo. Nada de bancar, com seu próprio salário, os hotéis cinco estrelas e os restaurantes de luxo que frequentava em ocasiões profissionais. O resultado foi que, levando uma vida bem mais modesta que seus outros colegas diretores, Antonio começou a investir o que podia ter gasto levando uma vida particular de alto luxo. Em cinco anos, graças também à sua posição privilegiada que lhe permitia investir no Brasil e no Exterior, amealhara uma pequena fortuna. Vendeu a casa, comprou uma outra, bem menor, num condomínio de classe média, e investiu o troco.

Foi então que conheceu, numa festa profissional, Leopoldo, um industrial que estava em plena luta para manter o seu negócio, uma pequena metalúrgica. “É a minha chance!” – intuiu. Tratou de ficar amigo do tal sujeito e um dia, quando esse queixava-se de sua pouca sorte nos negócios, tendo inclusive contado todo o drama de ter vendido uma mal sucedida tecelagem a um primo e tivera a surpresa de ver que, nas mãos do novo dono, a pequena fábrica crescia a um ritmo vertiginoso, Antonio disse:
-- Leo, você precisa de um sócio. Alguém com, perdoe-me a fraqueza, com mais tino que você, para fazer crescer a sua metalúrgica.

-- Talvez. Talvez. Acho que não levo jeito mesmo para isso. Mas quem?

-- Eu. – respondeu Antonio.

-- Mas você tem uma carreira bem sucedida, é um executivo respeitado internacionalmente...

-- E nunca passarei disso – afirmou Antônio – apenas um empregado, ainda que de luxo – e riu. Invisto na sua fábrica e a farei crescer. Mas quero 51% do negócio.

-- Você quer o poder. E eu? Afinal, é a minha fábrica.

-- Eu a farei crescer, já disse. Vou torna-lo rico, Leopoldo! 1% a mais que você será apenas a maneira de impedi-lo de continuar a fazer as escolhas mal sucedidas. Confie em mim.

Leo confiou. Afinal, acabaria mesmo por perder a fábrica. Resolveu arriscar.

Antonio pediu demissão e mergulhou na pequena metalúrgica. Um ano depois, a fábrica – que já prosperava – venceu a concorrência para o fornecimento de limpadores de para-brisas para um enorme fabricante de automóveis e caminhões. E então Leopoldo e Antonio começaram finalmente a ficar muito, muito ricos.

Incluídos entre os seletos membros da FIESP, prosperaram, mudaram a sede da empresa para um enorme quarteirão à beira de uma das mais importantes rodovias paulistas, tudo era sucesso! A família de Leo exaltava. Só Antonio continuava solitário, aliviando-se com as garotas de programa.

Um dia, três anos depois de consolidada a sociedade, conheceu Anita. Uma moça simples, secretária na agência de publicidade que atendia a metalúrgica deles. Mas Antonio encantou-se com a moça, que ainda não chegara aos 30, e ele já estava com mais de 50. Convidou-a para jantar. Em seguida, motel. E Antonio finalmente descobriu que o sexo poderia ser muito mais que simples alívio, poderia ser verdadeiro prazer! Uma descoberta tardia, é bem verdade. Mas uma descoberta que virou a sua cabeça ao avesso. Agora, ele passava o dia apressado e desatento, ansiando apenas pela hora de ir buscar a moça em casa e trancar-se com ela num motel. Todos os dias levava presentes a ela: de roupas de marca a joias de real valor. Desta vez, foi Leo quem aconselhou o amigo:

-- Tom – disse Leopoldo, num final de expediente, enquanto tomavam seu scotch de todas as tardes – Essa mocinha com quem você se engraçou, está perturbando o seu raciocínio. Você já não é mais o executivo eficiente que nos fez crescer e a quem sou eternamente grato. Se você desviar sua atenção do nosso negócio... bom... você sabe que eu não levo jeito pra coisa mesmo! Hoje o Moreira, lá da nossa agência, me disse que ela pediu demissão. Você arrumou um emprego melhor pra ela ou está pretendendo sustenta-la?

-- Vou me casar com ela – respondeu Antonio.

Leo deu um soco na mesa:
-- Nem pense nisso! Será sua ruína!

E, então, pacientemente, Leopoldo explicou ao amigo que a moça não preenchia os requisitos básicos para ser a esposa de um industrial bem sucedido. Que não tinha a educação social necessária, que sua aparência era simplesmente vulgar e foi falando, dando exemplos, descrevendo como seria a reação de seus pares ante a uma união – “desastrosa” , classificava ele – como essa.

Antonio, pela primeira vez na vida, sucumbira aos encantos e desvairos de uma paixão meramente sexual. Mas, diante do discurso do sócio foi percebendo que esse estava com a razão. Anita nunca se encaixaria na imagem de esposa de um industrial importante como ele se tornara.

-- Olha – finalizou Leo – se a questão é sexo, levo você à casa da Marlenona, uma das maiores e mais importantes cafetinas de São Paulo. Faremos um orgia daquelas e você verá que a sua namoradinha não é a única capaz de lhe dar o prazer que você tardiamente descobriu na vida.

Foi como se, de repente, a nuvem que até então vinha turvando a visão e a energia de Antonio se dissipasse e ele viu com clareza o quanto estivera negligenciando o seu principal objetivo nos últimos meses. E o seu objetivo sempre fôra ser rico! Ele vinha conseguindo isso, ainda mais com a expansão da fábrica para outros fornecimentos importantes, além dos tais limpadores de para-brisa! Sim, Leo estava certo! Aquela paixão retardada poderia pôr tudo a perder.

Nas últimas semanas, depois de trocar a tal empregada que também lhe servia na cama e gratifica-la regiamente, Antonio passara a levar Anita para dormir com ele em sua própria casa. Assim, naquela noite, depois do amor, com carinho e cuidado, ele disse a ela que iria conseguir lhe um emprego melhor do que aquele que ela tivera até então, na agência; que a colocaria numa posição mais vantajosa em uma das empresas de seus atuais amigos industriais e que já a matriculara num curso de inglês, sem nenhum custo para ela, para que pudesse ascender profissionalmente e, enfim, conquistar a independência.

-- Você se cansou de mim! Está me dispensando? – esbravejou Anita com uma fúria que até então Antonio desconhecia em sua amante. – Então é assim? Você me usou e agora, cansou-se e simplesmente me joga fora!

Antonio foi honesto. Explicou a ela que o caso deles o estava afastando de suas obrigações profissionais e que, por isso, queria terminar. Ela chorou. Berrou. Prometeu mundos e fundos, mas ele disse:

-- Está decidido!

-- Bom – fez ela, fingindo capitular – mas eu posso dormir aqui hoje? Amanhã eu vou embora e nunca mais volto.

Quando Antonio saiu para a fábrica no dia seguinte, ela fingia estar dormindo o sono dos justos. Com pena de acorda-la, escreveu um bilhete:

-- Peça a Ernestina (a empregada nova) para lhe servir o café da manhã e use o cartão que lhe dei para pagar um táxi até a sua casa.

Anita tomou o café, produziu-se, depois chamou a empregada:
-- O sr. Antonio e eu não precisaremos mais de seus serviços. Vamos nos casar amanhã e seguiremos direto para a Europa, onde ficaremos um bom tempo. A casa será posta à venda. Ele me autorizou a dar baixa na sua carteira e providenciar os trâmites necessários para a sua demissão. E mostrou-lhe um documento, que imprimira no computador da pequena biblioteca de Antonio, supostamente assinado por ele, que fazia dela a responsável pela casa.

Ernestina estranhou:
--Foi ele quem me contratou, ele é que tem que me demitir.

Anita disse, em tom severo:
-- O que é isso, moça? Quer que eu conte a ele que me desautorizou? Ele não vai gostar nem um pouco disso e você pode acabar na rua da amargura, se ele não lhe der referências para a obtenção de seu próximo emprego.

A empregada, diante da ameaça, acabou aceitando e foi arrumar suas coisas. Anita então deu alguns telefonemas e saiu, levando a chave da casa.

Ao voltar naquela noite, Antonio, depois de colocar seu carro na garagem, percebeu que todas as luzes da casa estavam apagadas e a porta da frente, escancarada. Entrou, desconfiado. Acendeu a luz do hall e quase caiu pra trás: estava vazio! Saiu a andar pela casa, acendendo todas as luzes, apenas para constatar que nada restara: seus caros e chiques móveis, seus tapetes orientais, suas louças inglesas, toda a prataria, os quadros caríssimos que antes repousavam sobre as paredes... tudo... tudo desaparecera. Até as estantes de mogno de sua biblioteca. Mas no chão desta, jaziam jogados todos os seus queridos livros. E, sobre a pilha deles, uma folha de sulfite com letras recortadas de jornais: “Não sou Barata”.

Fechou a casa e pegou seu carro disposto a ir dormir num hotel. Parou na esquina do bairro, onde estavam os seguranças particulares contratados pelo condomínio. Foi falar com eles e ficou sabendo que um enorme caminhão de mudança estacionara diante da casa e que a Srta. Anita – que se disse então secretária dele – explicara que a mudança estava sob responsabilidade dela, mostrando um documento impresso onde Antonio dizia, a quem interessar possa, que ela era a encarregada de organizar tudo.

À noite, uma notificação de um dos bancos com os quais operava, mostrou a ele, pelo celular, que seu cartão de crédito adicional chegara ao limite de saldo. E que limite!

Perdera todo o investimento que fizera na casa, com objetos e móveis de luxo, obras de arte, tapetes... Estava jantando em seu quarto de hotel quando viu a notificação do banco. E caiu na gargalhada: realmente, Anita não era uma mulher barata.

É claro que ele poderia ter ido atrás dela, descoberto a companhia de mudança que a servira, rastreado suas compras, poderia mesmo tê-la denunciado em ocorrência policial... mas não fez nada disso. Fôra apenas mais um grande prejuízo, e ele tinha certeza de que Anita transformaria tudo aquilo, que lhe roubara, em dinheiro vivo. Que fizesse bom proveito! Afinal, ele também fizera bom proveito do corpo dela!

Gostou do serviço do hotel e nunca mais, até sua morte, teve uma casa. Passou a viver nos hotéis, continuou fazendo crescer os negócios da fábrica, muitos investimentos e foi ficando cada dia mais rico.

Morreu 15 anos depois desse caso com Anita. Rico. Muito rico, como ele sempre sonhara. E solteiro.