A VOLTA AO MUNDO.
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.
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Chamada.
(Sabiá Laranjeira no muro
do nosso jardim)
Oi, meu amor. Acabei agora de faxinar todo o apartamento (que nem sujo
estava porque a Su me ajudou demais no sábado, com a limpeza), mas
fiquei refletindo. Não sei quem suja mais essa nossa casa, se Philip e
Elizabeth, com suas casquinhas de sementinhas, seus cocozinhos redondos
ou se eu, com a minha cinza de cigarro. Vou acabar parando com esse
vício horrível outra vez. Afinal, passei quase 20 anos sem fumar e
voltei há 4, pouco antes de você morrer.
Hoje de manhã fiz caminhada na Paulista. Antes, a gente trombava, a cada
dois passos, com uma banquinha cheia de incensos. Há semanas estou
procurando uma dessas e não acho. Hoje achei os benditos incensos numa
banca de jornais, quase esquina com Brigadeiro. Quando voltei, acendi
três, de uma só tacada, um: nas salas, dois: nos quartos, três: na
cozinha e serviço. Sal grosso canforado. Pra espantar a energia que
aquele nosso amigo vampiro deixou por aqui.
Dá uma certa tristeza, hoje, andar pela Paulista. Passei quatro anos sem
sair desse prédio, comprando absolutamente TUDO pela Internet. Primeiro,
em 2020, a pandemia. Depois, em 2021 você morreu e eu mergulhei num luto
bravo. Não perdi a alegria, recebia os amigos, não parei de trabalhar um
dia sequer (só nas férias de Natal), mas nunca mais fui caminhar na
Paulista. Caminhava no jardim. Fotografando flores e pássaros. Não
queria andar pela Paulista me lembrando de que você não estaria mais
caminhando ao meu lado. Nesses quase quarenta anos que moramos aqui, as
nossas caminhadas de 5km (ida e volta, toda a extensão da avenida), se
somadas, certamente dariam a volta ao mundo.
Mas essa é uma Paulista bastante mudada. Há mais gente nas calçadas, mas
há também inúmeros moradores de rua, quase todos com seus companheiros
cães, e dependendo da generosidade dos passantes para comer. Eu mesma,
quando atravesso a rua e vou ao mercadinho do Luan, aqui na frente do
nosso condomínio, acabo fornecendo almoço para alguém, ou comprando
caixas de chocolates pros moleques irem vender, um a um, aos carros
parados nos semáforos; dia desses até mantimentos comprei para uma moça
linda, negra, com um bebê tão lindo como ela, que me disse: "Moça, me
ajuda. Não tenho nada em casa."
Todos os meus amigos, ou quase todos, falam em dificuldades financeiras.
No entanto, se comparados a esse povo que está passando fome, que perdeu
a moradia, estamos chorando de barriga cheia. Mais ainda. Se comparados
à Ucrânia e à Palestina e ao Sudão, somos muito, muito privilegiados
nesse planeta.
Tenho falado muito sobre o estado da Terra, sobre ecologia, mudanças
climáticas, esse horror todo, nos meus programas SóLivros para a FmTV.
E escrevi um quarto livro da série Castelo (que já está na editora)
sobre a nossa relação, a relação dos seres humanos, com a Natureza.
Krenac, o indígena da Academia Brasileira de Letras, diz que perdemos
absolutamente o contato com a Terra. E ele está certo.
Criei um personagem, do Império Austro Húngaro, do começo do século XX,
que vem para o Brasil com a família, fugindo das monarquias e acaba, por
causa de um sonho, construindo um Castelo (o mesmo!) na Represa de
Guarabitinga. E é no bosque que ele próprio criou, no entorno do
Castelo, que ele retoma o contato com a Natureza: aprende a linguagem
das árvores, dos pássaros, dos animais e dialoga com todos. Como o deus
desconhecido, de Steinbeck, que conversava com o enorme carvalho que
abrigava a alma do pai dele. Como Zé Orocó -- de José Mauro de
Vasconcelos -- conversava com Rosinha, sua canoa. E como o rei Roberto
Carlos foi a primeira celebridade a declarar que conversava com as
plantas.
Meu personagem se transforma no bosque do Castelo, de homem racional e
urbano, em um homem apaixonado pela vida. E morre picado por uma de suas
amigas, uma cobra com quem ele convive por duas décadas, chamada
Gertrude. Morre sem saber se aquela picada da cobra era uma traição ou
uma benção.
Hoje, nesse mundo de guerra, ambição, intolerância, competição selvagem,
a humanidade se tornou a desumanidade. A Terra virou apenas mercadoria.
Perdemos a compreensão de que nosso Planeta é um organismo vivo e nos
esquecemos da alma das coisas, animadas ou inanimadas; a trocamos pela
internet das coisas.
O mundo, porém, dá voltas.
E a Terra tem nos mostrado que já está de saco cheio de nós.
De nossos desastres "naturais" que de naturais não têm nada, são o
resultado da exploração desenfreada da Terra pelo ser humano.
Talvez essa nossa grande Mãe nos dê um chega pra lá bem mais sério do
que tudo o que já vimos. Talvez só a grande tragédia, a grande
catástrofe, nos faça voltar aos braços da Natureza e , aí, possamos ter
a nossa volta ao verdadeiro mundo.
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