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(A Águia e o Condor, ilustração anônima)

 

Profecia:

 

A partir de 1490 iniciou-se na Terra a Era da Águia. Significa a era do Predador, do domínio da Razão, do Lado Esquerdo do Cérebro, da cabeça masculina, do sol, agressiva.

 

A partir de 1990 iniciou-se na Terra a Era do Condor. Significa a era da Compreensão, do domínio da Intuição, do Lado Direito do Cérebro, da cabeça feminina, da Lua, acolhedora.

 

Será mesmo?

 

 

(Je Kent)

 

 

(Bernard Pras, 2008, A Grande Onda)

 

 

(Teresa Carter, Estrelas que Brotam)

 

 

SEMENTES

Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

 

-- Na verdade – explicava Thomas – começou a acontecer naquele ano em que as geleiras dos pólos desandaram a derreter. Pelos picos. Eram picos tão altos e os imensos blocos de gelo que deles se desprendiam, caíam no mar com tanta violência que criavam verdadeiros tsunamis, viajando pelo oceano com enorme rapidez e chegando até as cidades litorâneas de todo o planeta. O mar literalmente lambeu desde casas humildes até imensos resorts turísticos, passando por muitos edifícios residências de moradia ou veraneio. Foi uma enorme devastação. Tão inimaginável quanto o fôra a pandemia do Novo Coronavírus, no final de 2019 e começo de 2020.

 

-- A Terra ainda nem estava totalmente livre da pandemia, quando as geleiras começaram a derreter e lançar enormes blocos de gelo nos mares ... Mas não era tão inimaginável assim quanto seu pai está dizendo – esclareceu Stela ao filho, Jonas – Havia muitos anos, eu já sonhara com isso. No meu sonho, e nunca pude esquecer esse sonho, eu caminhava pelo calçadão da praia quando vi ondas imensas, que se empilhavam, vindo em nossa direção. Inexplicavelmente, elas paravam antes de tocar a areia e ali ficavam, enormes blocos de água, como se congelados, paredes altíssimas mesmo, de água azul-verde encimadas pelo branco da espuma da rebentação.

 

-- A diferença – continuou Thomas – do sonho da sua mãe para a realidade é que os tsunamis causados pelo derretimento das geleiras chegaram sim às praias e fizeram milhares de mortos, invadiram a terra por quilômetros, carregando montanhas de escombros de tudo o que foram arrastando e destruindo pelo caminho. Quando finalmente recuaram, o que se via era pior que um campo de guerra devastado pelo inimigo. Em meio aos escombros, centenas de milhares de mortos e alguns feridos, gravemente, ainda vivos, desesperados.

 

-- Foi por isso que vocês vieram para cá? – perguntou o menino Jonas.

 

-- Não só por isso – respondeu Thomas—Por muito, muito mais. Já havia mais de três décadas que a crueldade humana, a não-empatia, o individualismo, cresciam exponencialmente; parecia que quanto maior era a evolução da tecnologia e do conhecimento científico, maior era o retrocesso da cultura e do espírito criativo e solidário que, afinal, fôra a base de toda a evolução do ser humano na Terra.

 

-- E aí começou, pra valer, a invasão dos bichos. -- continuou Stela. Na verdade, começara anos antes e ninguém dera a isso a verdadeira importância. O planeta já abrigava quase 9 bilhões de pessoas, um número insuportável. Só cerca de 1/3 de toda a humanidade vivia com o conforto e as condições de saúde, saneamento e habitação que seriam ideais. A maioria dos humanos ou estava em países em guerra, ou passava fome mesmo, ou era muito pobre... embora todos tivessem celulares. Os centros urbanos inchavam cada vez mais e cada vez mais as florestas e as matas foram sendo consumidas. Os animais começaram, diante da perda de seus habitat, a migrar para as cidades. Repteis, cobras, insetos e até animais de grande porte invadiam as ruas. Enxames de abelhas atacavam e até matavam muita gente. Mosquitos traziam os mais variados vírus e a Medicina não dava conta de atender a tantas novas e até então desconhecidas doenças, – dizia Stela, a um Jonas de olhos esbugalhados de terror – Enfim, era o Desequilíbrio Ecológico Absoluto, que o ser humano impusera ao seu próprio lar.

 

-- Foi nesse tempo, no começo da total degradação da Terra, que a nossa Ordem começou a comprar naves espaciais. Levaram 10 anos para construir a frota com a qual daríamos o fora. Armazenaram uma impensável quantidade de dados nos computadores de bordo, abasteceram os veículos espaciais com todas as espécies de tralhas tecnológicas que usaríamos. Por sorte, as naves já decolavam como se fossem simples aviões e, assim, um belo dia, embarcamos, 625 seres humanos, 700 espécies de casais de animais, 500 espécies de pássaros e outros bichos. Toneladas de sementes. Mais de 5 mil aparelhos celulares, geradores elétricos, inúmeros computadores de mão, toneladas de cabos (para o caso de a energia por aqui não circular pelo ar com facilidade), laboratórios científicos equipados aos montes. Eram mais de duzentas naves e, ao cruzar a órbita da Terra, algumas delas “roubaram” satélites artificiais e os trouxeram para cá a reboque e estes estão nos orbitando agora e nos são de grande utilidade. Esse é o resumo da história, meu filho – concluiu Thomas. Uma história da qual não nos orgulhamos, mas agora estamos aqui, nesse planeta escondido, sem nenhuma comunicação com a Terra. Você vai fazer 7 anos de idade, nasceu logo depois que desembarcamos e começamos a construir esse mundo como você o conhece.

 

Jonas pensava nas muitíssimas imagens que vira da Terra, em seus muitos aparelhos, em filmes e fotografias. Os colonos haviam construído muita coisa nesses 7 anos terrestres. Viviam com conforto. Plantavam seus próprios alimentos, sem sacrifício de animais. Aquele, porém, era um planeta muito diferente da Terra. Tudo o que plantavam só vingava nas grandes baias de diversos tipos de terra que eles tinham trazido para cá. Em vão tentavam os cientistas e técnicos desenvolver algum tipo de mistura de solo original do planeta. Não poderiam sobreviver, nem eles nem os animais, apenas com a pouca terra que haviam trazido e que já estava, em seis anos, se esgotando, cansada, embora sempre adubada e revolvida.

 

-- Mas, pai – retrucou Jonas – esse planeta está morto. Aqui não tem nada do que tinha na terra. Não há vida nativa aqui. Tudo o que existe foram vocês que trouxeram. Não há árvores, florestas, mares, rios exuberantes como há na Terra. Como vamos sobreviver aqui? Eu sei que tem muita gente pensando em voltar. Ou em procurar outro planeta capaz de abrigar e de gerar vida.

 

Na verdade, até o ar que respiravam era insalubre e seco. Fontes elétricas e poços tentavam melhorar a umidade do ar, dentro da grande redoma que haviam conseguido erguer em volta da cidade. “Cidade? – pensava Stela – Isso aqui está mais pra acampamento do que pra cidade”.

 

Naquela noite (o planeta tinha noite, sim – rodava sobre si mesmo em 27 horas terrestres e sua órbita, em torno da Terceira Estrela da Constelação de Capela, levava o equivalente a 362 dias), quando Stela colocou Jonas na cama e se retirou, o menino chorava. Só pensava que queria ter nascido na Terra, aquele paraíso que ele via nas telas. E fazia planos para, quando pudesse, matar seus pais antes de roubar a nave que os traria (a ele e a outros amiguinhos com o mesmo desejo) de volta ao planeta de Origem.

 

Thomas, Stela e os outros Migrantes, com toda a imensa parafernália que trouxeram da Terra, não sabiam que tinham trazido também aquela semente.