Meu amor querido,
São
realmente incríveis as formas pelas quais se manifesta a vida. Esta
manhã encontrei no parapeito da nossa janela, aqui no 20º andar, um
inseto diferente: couraça de besouro, mas muito menor que um deles,
várias perninhas finas, duas anteninhas, uma belezinha rústica, enfim.
Estava morrendo. Sempre fico me perguntando como as joaninhas e esses
pequenos bichos conseguem chegar aqui em cima para virem morrer perto de
mim. Lagartixas podem subir pelos poços do elevador ou da lixeira.
Borboletas e mariposas têm asas, mas mesmo assim... é uma longa jornada
do jardim até aqui em cima!
Já faz anos que sei que represento um pedaço da Nossa Senhora da Boa Morte.
Não apenas os bichinhos vêm morrer perto de mim, mas, às vezes, até as
pessoas. Como o Rei do Cordel, lá em Salvador, você se lembra? Ou a
minha entrevistada que, no dia seguinte ao programa, embarcou naquele
vôo da TAM cuja aeronave se espatifou numa rua do Jabaquara ou até mesmo
a Luciene que me convenceu a escrever a vida dela e morreu, com apenas
36 anos, alguns dias depois de terminarmos o livro.
Claro que não conto isso para
ninguém. As pessoas ficariam com medo de chegar perto de mim e morrer.
De fato, o que acontece é o contrário: quem vai morrer, às vezes, se
aproxima de mim pouco antes. Algo em mim facilita a passagem, deve ser.
Coloquei essa atribuição em um dos meus personagens de romance: Maria
Júlia, a matriarca de O Espelho – ou a História Quase Invisível – também
é assim.
Geralmente eu embrulho os bichinhos que vêm morrer ao meu lado. Uma
mortalha de guardanapo de papel, quando acontecia na Grama Um do meu
clube Castelo. Um papel bonito e decorado qualquer, quando estou aqui.
Hoje coloquei o bichinho moribundo junto com uma florzinha das flores em
bouquet da sua Flor de Cera, os dois num guardanapinho de papel. A flor
combinava com ele. Deixei a flor e o bicho na bancada da nossa cozinha,
esperando que cessassem os movimentos dele. Reconheço um agonizante. Fui
fazer a cama, lavar o rosto, afinal eu acabara de acordar e queria
preparar o meu café para, depois, ir caminhar – sempre acompanhada pela
minha sensacional câmera Canon Rebel SL3 – no jardim e, mais tarde,
subir pra tomar meu banho e começar o dia.
Eu acordara triste. De luto, sentindo como sempre a sua ausência. Tenho
acordado triste desde que, uma semana antes do Natal, os médicos, o Dr.
Nabil Ghorayeb e a ciência resolveram contrariar o meu machucado coração que
simplesmente, sem você, decidira parar de bater. O marcapasso impediu a
morte que o meu coração desejava e a obrigação de continuar vivendo foi
endossada pelo imenso apoio de tantos amigos.
Levei uns 40 minutos para arrumar tudo na casa, me vestir para o jardim,
fazer o café. Aí fui olhar o bichinho. Continuava se mexendo, mas não
conseguia se mover para sair do lugar. Que horror – pensei – está
morrendo há muito tempo. Resolvi acabar com o sofrimento dele, que muito
me incomodava. Dobrei delicadamente o papel, envolvendo o bichinho e a
florzinha e, de supetão, apertei o conteúdo sob o meu polegar e o
indicador, fazendo deles apenas uma mancha molhada no papel: o bichinho e
a flor unidos na Morte e sem mais sofrimento. Joguei a mortalha no lixo
não reciclável.
Se, um dia, algum de nós – leitores e eu, autora – estivermos em
situação semelhante a esse bichinho, cuja vida já terminara, mas teimava
em se manter, que alguém tenha piedade de nós.
2022
01 03 |