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(Élon Brasil, Mãe e Filha)

 

Outro Saber

por Isabel Fomm de Vasconcellos

do próximo livro "Todas as Mulheres São Bruxas n.3"

 

 

Para Maria José Silveira,

Minha Escritora Predileta e Amiga

 

-- Por que é o Franklin disse que toda a terra, o Brasil inteiro, deveria ser nosso?

 

Tainá parou de fritar o beiju e olhou espantada para a filha pequena. Depois riu, aquele riso seu, naturalmente alegre.

 

-- Esse gringo é exagerado. Não sei como ele veio parar aqui. Com aquelas histórias bobas dele, de que existe um só Deus e outras besteiras. Por ele, entraríamos em guerra com os caraíbas (1).

 

-- O Kayke(2) diz que nós já estamos em guerra com eles.

 

Menina danada de esperta aquela – pensou Tainá(3). E riu.

 

Tirou o beiju do fogo, mas ele já tinha queimado.

Vou ter que parar tudo para conversar com ela agora, não sei como ela foi nascer assim, perguntadeira, faladeira.

 

Tainá botou a menina sentada em seus joelhos, acariciou lhe os longos cabelos negros e disse:

-- Jaci(4), guerra é muito diferente daquilo que a gente faz. O Brasil tem um presidente meio maluco que acha que não deveríamos ter tanta extensão de territórios demarcados, que dizer, só nossos, como são as nossas terras. Ele acha que a terra deve ser explorada até cansar. Quer deixar que a nossa terra seja exaurida pelos mateiros, aqueles homens brancos cabeludos que derrubam tudo o que é árvore, ou queimam florestas pra fazer pastos pros bois e vacas deles... Por isso, de vez em quando, temos que organizar uns protestos, viajar até a Capital e tentar impedir que as nossas terras encolham ainda mais... Mas isso não é guerra. Guerra é matança, é povo sofrendo, ferimentos, sangue espalhado nos campos...

 

-- Você não falou porque é que o Franklin... – ia dizendo a menina. A mãe a interrompeu:

 

-- Esse gringo doido acha que o Brasil inteirinho deveria ser só nosso, dos nossos muitos povos, de todas as tribos que estavam aqui quando chegaram os Preós(5) e até os Mair(6)... Porque nós é que nascemos aqui e não eles. Estávamos aqui muito antes deles chegarem.

 

-- Isso faz tempo... O Kayke disse que eles destruíram quase todo o nosso povo.

 

-- Faz tempo, sim – disse Tainá. Nós mesmos, a nossa nação indígena, fomos milhares e hoje somos não mais que três centenas. Foram mais de 500 anos, eles nos empurrando. Eles vieram lá do outro lado do mar (um dia vou te levar a São Luiz pra você conhecer o mar).

 

-- Eu já vi, no filme.

 

-- Mas de pertinho é outra coisa.

 

-- O Mar tem outro lado? Como o nosso rio?

 

Tainá teve que rir.

-- Mas o mar é enorme, muito maior do que qualquer rio, você não vê o outro lado e precisa viajar muito tempo, de navio, um barco grande, pra chegar lá do outro lado.

 

-- 500 anos é muita coisa.

 

-- Então... todos os povos do outro lado do mar, os que vieram para o Brasil em busca das nossas riquezas naturais e que foram ficando por aqui, se apoderando das terras e de tudo o que elas lhes podiam dar. No começo tratavam bem a gente, você sabe, nós, os indígenas. Mas não demorou muito para que quisessem nos transformar em escravos, quisessem que nós fossemos trabalhar para eles e extrair da terra aquelas riquezas que eles tanto cobiçavam...

 

-- O que é trabalhar?

 

-- Pros caraíbas trabalhar é uma coisa muito diferente do que é para nós. Eu não estava fazendo beiju quando você começou essa conversa?

 

-- Estava.

 

-- Pois é. Estava trabalhando. Uma hora faço beiju, outra hora faço um cesto, dou meu peito pros seus irmãozinhos menores, isso tudo que eu faço – e muito mais – você poderia chamar de trabalho. Mas, para os caraíbas, trabalhar é fazer sempre uma coisa só. Por exemplo: em vez de fazer alguns beijus pra gente comer, eles inventam um jeito de fazer milhares de beijus, num lugar só, e as pessoas ficam lá, naquele lugar, o dia inteiro, só fazendo beijus e mais beijus... e assim é com o resto das muitas coisas que eles fazem...

 

-- Nossa, deve ser muito chato!

 

-- Eles queriam que os nossos povos fossem plantar mandioca o dia inteiro, sem parar. Ou derrubar árvores sem parar. Ou trabalhar em cavernas extraindo ouro e prata ou pedras preciosas, o dia inteiro.

 

-- Kayke me ensinou que todas as pedras são preciosas.

 

-- É. Mas pros caraíbas não são. Apenas algumas, que estão escondidas debaixo da terra há muitos e muitos anos e que, para eles, rendem muito, valem muito. Os nossos povos tiveram que lutar mesmo, se embrenhar cada vez mais para longe do mar, pra dentro do país, se esconder, pra escapar deles. Muitos eles mataram sem piedade. Principalmente depois que trouxeram os negros de África para serem seus escravos. Viram que o nosso povo nunca seria capaz de ficar o dia inteiro fazendo uma coisa só e desistiram de nós. Mas continuaram, por todo esse tempo, a nos expulsar das nossas aldeias, das nossas ocas, a queimar tudo e nos espantar para longe.

 

-- Essa história de negro de África eu também aprendi na escola.

 

-- Eles nos mataram de várias formas, Jaci, ao longo de todos esses anos. De tiro, faca, fogo. Mas acabaram com aldeias inteiras porque, lá do outro lado do mar, existiam doenças que nenhum dos nossos povos estava preparado para ter. Tribos inteiras morreram de sarampo, varíola, doenças que, pra eles, logo passavam mas, pra nós, eram morte certa. E eles trouxeram essas doenças pros nossos povos.

 

-- Como você sabe tudo isso, mãe?

 

-- Sua avó me contou. Ela também me ensinou um pouco dos mistérios das ervas, que ela dominava, dizia ter aprendido com a Lua, a Lua falava com ela. Foi aprendendo com a Terra, com a floresta.

 

-- Ela era um pajé?

 

Tainá riu de novo.

-- Era como se fosse. Os homens da tribo temiam ela, os seus poderes. Mas também sabiam que ela era útil. Quando se feriam, em luta ou na caça, ela podia aliviar o sofrimento deles, com suas ervas e seus feitiços. Tentou até me ensinar, mas a lua e as estrelas não reservaram para mim essa benção que era só dela.

 

-- E, depois que ela morreu, ninguém mais sabe nada disso?

 

-- Ah... aqui na nossa aldeia, não. Mas em outras tribos, por aí, devem existir mulheres sábias como ela, nascidas sob as benesses da Lua. No entanto, minha menina, apesar de alguns caraíbas entenderem que nós, indígenas, deveríamos manter as nossas crenças e saberes, e por isso lutaram para demarcar nossos territórios e arrumar um jeito de nos proteger, a maioria nos vê, até hoje, como inimigos. Muitos acham que somos uma espécie de animais trancados em nossas reservas, como aquelas em que eles guardam várias espécies de bichos, presos em jaulas ou em espaços reservados, numa coisa que chamam de “jardim zoológico”. Eles não entendem que somos muito diferentes deles e que somos também diferentes entre nós, nas nossas várias nações indígenas. Pra eles é “tudo índio”, não percebem que somos diferentes também entre nós,  nos veem como primitivos, atrasados, não entendem os nossos ritos, não sabem o que significam as pinturas em nossos corpos, não sabem nada da Grande Ligação que existe entre nós e a Terra. Para eles, a Terra é apenas algo a ser explorado, alguma coisa que fornece a eles o que eles pensam ser riqueza, progresso e outras bobagens. Não entendem que, sem a Terra, nós nem poderíamos existir. E, se Kayke acredita que precisamos lutar para que nossas terras demarcadas não acabem sendo invadidas por eles, arrasadas mesmo por eles, Kayke sabe também que eles mesmos, em todos os lugares do nosso Planeta, estão matando a Terra, sujando a sua própria casa, destruindo florestas, devastando os rios, enchendo-os de lixo e porcarias, envenenado o ar que respiramos para apenas ter máquinas e mais máquinas...

 

-- Sei. O tal do Aquecimento Global.

 

-- Também aprendeu isso aqui na escola da aldeia?

 

-- Sim. A professora caraíba que vem aqui, às vezes, explica pra gente o que é isso.

 

A noite se aproximava. Aquela danada daquela filha vivia tomando um tempo enorme com tantas conversas longas. Tainá tinha ainda muito o que fazer, antes que os seus maridos viessem para comer e deitar-se com ela em suas redes.

 

-- Aonde você vai, Jaci? – perguntou ela ao ver que a filha se afastava.

 

-- Vou conversar um pouco com a Lua e com as estrelas, que já estão chegando. 

 

-- Não sabia que elas falavam com você.

 

-- Não falam. Mas agora que a mãe me contou a história da minha avó Awá-guajá (7), elas vão falar comigo e eu vou aprender todos os mistérios do céu com elas e, depois, da Terra mesmo, na floresta. Sei que as árvores e as flores e todos os bichos do mato vão me ensinar, como ensinaram a minha avó.

 

-- E como você sabe disso? – perguntou Tainá, rindo de novo.

 

-- Ah, porque sei e pronto! Resolvi ser feiticeira e já sei como fazer. Depois disso, serei guerreira, pronta pra lutar contra os caraíbas, antes que eles destruam a minha Terra!

 

Tainá não riu.

 

Significados:

(1) caraíbas – homens brancos, europeus

(2) Kayke – ave aquática, aquele que desliza sobre as águas

(3) Tainá – astros celestes ou estrela da manhã

(4) Jaci – a Lua

(5) Preós – portugueses

(6) Mair – franceses

(7) Awá-guajás – indígenas do Noroeste do Maranhão

      (Em 2012, apenas 356 indivíduos)

 

OBS: As personagens desse conto certamente estariam conversando em Guajá, sua língua original. Mas como a escritora não fala Guajá, a história saiu em português mesmo.