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Anjos em Assembleia

conto de Natal de Isabel Fomm de Vasconcellos
 

 

 

 

 

 

(Marco D'Oggino, sec XIV, Arcanjos)

 


Na Terra era de novo Natal. Os anjos, os que sempre chegam primeiro, estavam se preparando para descer ao planeta, as asas brilhando, bem lavadas e untadas com o mais fino óleo, quando o Arcanjo Miguel os interrompeu:
 

-- Galera, acho melhor não perder tempo com isso, nesse momento. Para que ir à Terra? Escutem o que eu, o CEO aqui do Departamento de Criação, o Homem do Chefe, vou lhes dizer: Natal naquele planeta anda mais desmoralizado do que os políticos. A turma lá se esqueceu de toda a magia que os seres humanos são capazes de produzir quando se unem em torno de um mesmo sentimento. Até que nesses 2016 anos eles tentaram e conseguiram alguma coisa, criaram algum espírito de Natal, solidariedade, um laivo de amor..., mas agora! Chefe meu! Agora é escândalo de corrupção na política do oriente e do ocidente, é crime para todo lado, é assassinato, estupro, violência extrema contra as mulheres.... Tudo o que os jovens, em todo o planeta, naquela década revolucionária dos anos 1960, aspiravam para as novas gerações, todos os sonhos de igualdade de oportunidades para todos os seres humanos, de fome zero, do fazer amor superando o fazer a guerra, de paz e amor... tudo isso foi pelo ralo. É melhor não perder tempo com a Terra. É um planeta destinado a, de novo, destruir sua própria civilização, como já aconteceu antes, e recomeçar, na tentativa de, afinal, entender que é bem mais fácil viver de acordo com a filosofia que o filho do chefe foi lá para ensinar, do que desse jeito agressivo, guerreiro, testosterônico.
 

-- O que é isso, Miguel? – Interrompeu o filho do Chefe – perdeu a fé nos seres humanos terráqueos?
 

-- Ah, você vai me desculpar, Jesus, mas perdi. Não vejo salvação para eles. Acredito mesmo que Hiroshima e Nagasaki foram apenas ensaios da guerra atômica que eles vão acabar travando. E, ainda que não travem, eles têm, e praticam, outros meios de destruir o planeta: superpopulação, super exploração dos recursos naturais, extinção de espécies animais e vegetais, tudo isso está em pleno andamento, eu diria mesmo a todo vapor, por lá. E, por falar em vapor, o aquecimento global então? Derretendo as calotas polares, aumentará o perímetro dos mares e oceanos, espremendo ainda mais as áreas habitáveis e criando um ciclo perpétuo de aumento de calor + derretimento do gelo. O Chefe que me perdoe. Mas esses humanos deveriam dar um jeito de se reproduzir mais adequadamente.
 

-- Não vão conseguir – disse o Arcanjo Gabriel – Afinal foram eles que inventaram esses mitos que endeusam a maternidade, a família e outras bobagens.... Você não vê que até transplante de útero eles inventaram agora para poder fingir que estão garantindo aos casais inférteis o direito de se reproduzir? Ora, eles já deveriam ter entendido, há séculos, que o amor e a vontade fazem muito mais do que a tendência genética. Eu, que sou o Grande Anunciador, me lembro do tempo em que nascer não era uma banalidade cirúrgica. Nascer era um dom do Divino e agora...eles se reproduzem mais que coelhos. São, na verdade, o vírus que está destruindo a própria casa, a Terra.
 

-- Desculpem-me – disse o Arcanjo Rafael – mas todo esse quadro de horrores que vocês estão pintando me parece mais como uma doença. Digamos que a Terra esteja infectada pelo vírus chamado ser humano. No entanto me parece que os seres humanos se assemelham mais a bactérias (afinal, eles têm bilhões em seus corpos) do que a vírus. Todos sabemos que existem bactérias do Bem e bactérias do Mal. Eu, como curandeiro que sou, penso que deva se reestabelecer, na Terra, um novo equilíbrio. O problema que vocês estão detectando está numa predominância de bactérias do Mal. Vamos reequilibrar e pronto. Todos vocês sabem que eu sou o Curador, o Arcanjo da Cura. Posso curar esse desequilíbrio também. Mas sem a ajuda de vocês, nada poderei fazer. Preciso que vocês desçam, sim, à Terra e levem com vocês as nossas mensagens de amor. Soprem nos ouvidos dos humanos as mais belas inspirações para que, nesse Natal, eles procurem agir como agiu o filho do Chefe ao estar entre eles. Que deem a outra face, ao invés de revidar. Que percebam que, ao revidar a violência com a violência, estão se tornando iguais aos que repudiam. Que percebam que, afinal, quando o oprimido odeia o opressor e trabalha para destruí-lo, está se tornando igualzinho ao opressor. Que percebam que a paz, a compreensão, o perdão, são os únicos caminhos possíveis. Que a tolerância com as diferenças é o único meio de convivência. Que o diálogo é mais importante que a reação. Vamos lá. Nesse Natal, que o exército de anjos do Chefe leve aos humanos da terra a grande inspiração do amor, da tolerância, do perdão e da compreensão.
 

Os anjos se entusiasmaram com o discurso. Estavam todos loucos de vontade de descer à terra porque, afinal, todos sabem que há milênios, no Natal, primeiro chegam os anjos. Aplaudiam Rafael que se mostrava sempre como o grande curador, o grande médico das almas, mesmo das almas dos anjos.
 

De repente, na sala angelical, todas as asas se agitaram. Eis que o próprio Chefe entrava, trazendo consigo o infinito rastro de luz, o criador das estrelas.
 

O Chefe sorriu, aquele sorriso de muitos megatons, e suspirou aliviado:
 

-- Nada mal que essa decisão de vocês tenha me livrado de, outra vez, ter que descer à Terra, travestido em humano, no Natal para assegurar a nossa mensagem de amor. Mas o que mais me deixa aliviado nisso é o fato de que aquela escritora brasileira, a Isabel, dessa vez não vai transformar a minha aventura terrestre em conto de Natal para os livros dela. Ela sempre faz isso, há mais de duas décadas, aquela chata!
 

-- Ah, não se preocupe, Chefe – disse o Arcanjo Gabriel – ela já escreveu essas nossas decisões. Mas, quem sabe, em 2017?