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O Aniversariante

 

Conto de Natal de Isabel Fomm de Vasconcellos

Publicado em dezembro de 2015, pela Revista CEN, em Portugal

 

    "Em nome dele, inventaram barbaridades que iam da tortura à discriminação das mulheres, dos índios e dos negros"

 

 

(Paul Cezanne - O Chateau Noir e a Montanha de Santa Vitória, 1906)

 

 

 

 

 

 

 



Caminhava pelas avenidas decoradas para o Natal, pensando que aquela festa, que ainda movimentava tanto a economia desse país (que fora até recentemente o maior país católico do mundo), que fazia sorrir os comerciantes e muitas crianças, que mobilizava grupos interessados em levar presentes e comemorações a quem não os podia ter, que reunia muitas e muitas pessoas na tradicional Missa do Galo e gerava tantas manifestações de amor e solidariedade, também fazia brotar sentimentos de raiva, inveja, intolerância, desamor, competição desleal, etc.

Bah! Sabia muito bem que nada escapava da dualidade existente dentro do ser humano. Era sempre a mesma batida luta entre o bem e o mal, sendo que o que era bem para uns, poderia ser mal para outros e vice versa.
Riu, ante o pensamento, lembrando-se que, na sua juventude, na Academia, falar em mal e bem era considerado um tremendo mau gosto, uma simplicidade indigna de um intelectual. Agora, depois de tantos e tantos anos, já deveriam saber que a simplicidade não implica falta de profundidade e que os lugares comuns muitas vezes são fruto da sabedoria popular e que esta, por sua vez, pode ser, também muitas vezes, mais sábia que a mais sábia das vozes da ciência.

Marilda, sua velha amiga, dizia que a ciência não era a forma completa de ver o mundo. Era preciso, segundo ela, a sua amiga, ver o mundo também com os sentimentos, desde a emoção até o que ela chamava de “Sentimentos Intuitivos”, ou seja, gerados pela intuição. O mundo da ciência, para Marilda, era o árido e testosterônico mundo masculino, pertencia à racionalidade absoluta e qualquer mulher, sobre a face da terra, sabia muito bem que a razão nem sempre é a melhor conselheira. “È preciso pensar também com a voz do coração”, afirmava.

Agora o seu próprio coração estava a dizer-lhe que o natal era muito mais uma farsa do que outra coisa, do que deveria ser.
Para os que professam a fé cristã, o nascimento do filho de Deus estava sendo comemorado. Para os ateus, no máximo, o nascimento de um mito que se perpetua por mais de dois milênios. Para os esotéricos, o nascimento de mais um avatar. Mas ninguém sabia dizer ao certo quem fora aquele sujeito que vivera apenas 33 anos na terra e vivia há 2 milênios sendo citado tanto para o bem como para o mal.

Sim, em nome dele, raciocinava, na Idade Média, durante seis séculos, os padres queimaram, nas famosas fogueiras da inquisição, sábios, magos, magas e qualquer um que não se encaixasse em sua religião, ou mesmo em sua sede política.

Em nome dele, guerrearam à vontade nas Cruzadas e em muitas outras ocasiões na história da humanidade.

Em nome dele, inventaram barbaridades que iam da tortura à discriminação das mulheres, dos índios e dos negros; as primeiras, consideradas depositárias de todo o pecado e os dois últimos, seres sem alma...

Em nome dele
, quanto conhecimento de outras culturas e de outras sociedades, se perdera para sempre... Riu de novo. Ainda segundo a sua amiga Marilda, nada se perdia para sempre porque os pensamentos e o conhecimento estavam todos depositados nos “registros acásicos”, como diziam os Rosacruzes, ou na grande energia que permeava todo o Cosmos, as tais “cordas”, como diziam os físicos quânticos.

 

Conhecera, há algumas décadas, um padre católico, desses que eram politicamente mais de esquerda do que de direita, desses que acabariam por fomular e engrossar a teologia da libertação, que dizia ser necessário – e urgente— limpar o cristianismo de toda a lama que cobria o verdadeiro cristal de sua filosofia; era preciso enxergar os evangelhos, despindo-os de toda a interpretação preconceituosa e desumana que a própria igreja fizera deles, segundo a sua conveniência, em cada momento histórico. Jogada fora a lama, sobraria a verdadeira essência dos ensinamentos de Jesus Cristo.

Agora, quase meio século depois dessas palavras do Padre Tom, lá estava um Papa revolucionário (revolucionário, pelo menos, diante da rigidez do Vaticano), que se intulara Francisco, como o santo que entendera que toda a vida, nesse planeta, era irmã de si mesma, que a solidariedade, a divisão equalitária de todas as riquezas produzidas pela humanidade, era o único caminho possível para a paz. Esse papa era tão diferente – concluiu – que ousava até entender que nenhuma forma de amor poderia constituir pecado. A guerra, sim, em qualquer das suas manifestações, desde às bélicas até as verbais, era o único pecado.

Pensando nisso, pensou também no famoso médico psiquiatra, já falecido, José Ângelo Gaiarsa: ele sempre lembrava que, em dez mil anos de História, jamais houvera um único dia nesse Planeta em que, em algum lugar, não exitisse uma guerra. Riu de novo, pensando que os padres abençoavam os exércitos, de ambos os lados da trincheira...

Bom, mas já fizera sua parte. Tinha ensinado, por metáforas, por milagres e até explícitamente, como no Sermão da Montanha, como se deveria agir para alcançar não apenas a paz, mas também a prosperidade, o amor e a consequente alegria de viver. Fizera isso há dois milênios passados e, como todo aquele que ousa procurar a verdade em seus próprios pensamentos, fora crucificado. Só que a crucificação dele fora literal...

Riu novamente... Imagine o que não fariam agora, em 2015, se ousasse sair por aí fazendo milagres, angariando discípulos e pregando uma filosofia de amor e despojamento... Nas redes sociais, ririam dele, o chamariam de fanático, de mitificador e coisas piores. Na mídia, seria ridicularizado. Na política, simplesmente ignorado.

Por isso, viveria mais um Natal sem se revelar a esses humanos ingratos. Por isso estava subindo a pé a Serra da Cantareira para de lá, sob o céu estrelado e no mais alto monte, mandar sua mensagem em código e esperar que, de novo, o pai o ascendesse ao firmamento.