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Aquele Porre de Sábado por Isabel Fomm de Vasconcellos, para Carlos Acuio |
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Escrevi esse texto, que não sei se é um conto, um poema ou uma piada, pensando no meu editor e amigo, o jornalista Carlos Acuio. Ao lado, a contracapa do livro dele, publicado em 1977, com o sugestivo título de "Indecente's Bar". Na década de 1970, entre os jornalistas e os intelectuais paulistanos, havia a grande angústia de viver sob um regime de censura às liberdades individuais e de imprensa. O bar era o maior refúgio do descontentes da ditadura, então. Flávio Di Giorgio, meu professor na Escola de Cinema do Colégio São Luiz, dizia que "o sentido do texto é o seu contexto". Foi no contexto de jornalista paulistana, na década de 1970, mais precisamente em 1976, que escrevi esse meu... conto? poema? piada?... Decida o leitor. Isabel, 31 de março de 2015 (15 anos da morte do jornalista Carlos Acuio)
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contracapa do Livro Indecentes's Bar
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Aquele Porre de Sábado Hoje é que é o dia do presente, o dia é sábado. Neste momento, todos os bares estão repletos de homens vazios.”
(Vinicius de Moraes)
Um homem que amanhecia quando bem
quisesse, segredo: Já não estava aqui, entre nós. (Nem limpava a cinza
do cigarro que escorria por toda a sua roupa). Não. Já não estava mais
neste planeta falido. Vagava pelo espaço - as mãos no bolso, acariciando
a angústia - em cansativa jornada interplanetária à procura de vida
extraterrestre. Pedira
o último uísque da noite de sexta feira às dez horas e quarenta minutos
da manhã de sábado. Neste exato
momento, ao primeiro gole da última dose, caminhava pela Via Láctea e
percebeu um estranho movimento no polo sul. Quase escorregou num
minicometa, tamanha foi a sua indignação, ante mais uma das absurdas
atitudes humanas: Lá estava outra vez o homem, a destruir suas próprias
possibilidades, a matar mais um símbolo da vida, da liberdade, da
confiança na velha Terra, terra tão machucada. Ele
sabia. O homem - ser ignóbil e medíocre - destrói
porque não pode suportar a visão daquilo que ele próprio perdeu. Ele,
fracasso e vingança andam de mãos dadas. Doente, o homem não suporta a
visão do sadio. Triste, não pode admitir a alegria. A alegria o afronta.
É preciso destruir. Então o homem destrói. Destrói o sadio, o feliz, o
amado e o amante. Homenzinho comeu ódio em sua primeira refeição
natalícia. Odeia tudo o que não for ódio.
Acostumado fora à estupidez humana.
Mas não podia permitir aquele massacre
contra as pobres bichinhas, o homem Bonito e Bêbado tivera, há milênios,
um lindo caso de amor com uma daquelas maravilhosas habitantes dos
oceanos e sabia muito bem o quanto elas eram felizes e inofensivas.
Tranquilas, a navegar pelos mares do planeta, curtindo a vida; a vida,
como um presente, e, ora bolas, os homenzinhos só sabiam trucidá-las.
Exatamente como estavam agindo agora, a exterminar, com sofisticados
recursos, as poucas baleias que ainda lhes restavam.
Imensas, felizes, as baleias, em sua milenar simplicidade, brincam e
cantam. Quanto mais brincam ou
quanto mais cantam, mais irritam o pobre ser, o homem, que jamais
cantou, jamais amou, jamais foi feliz. Passou a vida fabricando
engenhocas para matar baleias, uma tristeza! |
Cantaram juntos, as notas musicais se solidificavam em pleno vazio,
delirantes de felicidade, o espaço povoava-se em novos corpos.
Lentamente, enquanto os corpos do homem Bonito e Bêbado e de sua mulher
escondiam-se sob escamas e mais escamas...
Termina, afinal, a noite, derradeiro bar, onze horas da manhã.
As caras amareladas, as roupas desalinhadas, profundas olheiras, já
sabem que podem ser peixes, apesar da hora avançada. Ou touros, ou
borboletas. Afinal, já foram larvas. Formigas, já foram. Querem ser um
pouco cigarras também. Ninguém
percebe que são peixes. E
saíram nadando, felizes, pela umidade relativa do ar.
(agosto, 1976,
Isabel Fomm de Vasconcellos) |