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A Casa de Deus texto e fotos de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Já faz algum tempo que eu descobri que deus mora ali, no espaço de céu que eu vejo da nossa janela, entre o edifício Numa de Oliveira e o prédio que fica logo depois da casa do Banco Safra, ladeando a Alameda Campinas. O sol, durante certa época do ano, se põe bem nesse vão de vista, entre prédios, nessa cidade de horizontes limitados pelo concreto.
Aconteceu algum dia, em que eu estava triste, ou quiçá desesperada: encontrei Deus nessa nesga de céu. Frequentemente é uma bela e multicolorida faixa, que, durante o crepúsculo, muda de cor a cada instante, mesmo nos dias mais nublados. Você sabe como é, quando a gente, por qualquer razão, entra em desespero. Depois, como agora, nem mesmo se consegue lembrar a causa daquilo que nos fez questionar o sentido da vida, ou mesmo pensar se vale a pena continuar vivendo. Tudo passa. |
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Mas, naquele dia, há muitos anos, eu me lembro que, fitando a nesga de céu, de repente, eu ouvi o meu primo Sérgio Marques, que já tinha partido para o lado de lá, a me dizer: “a coisa mais marcante em você é a sua coragem” – eu, que naquele momento, me sentia a mais covarde das criaturas. E ouvi a risada do meu saudoso e amado pai, diante do drama que eu fazia, aos 16 anos de idade, ao ter o braço engessado: “Minha filha, um mês de gesso passa voando. Daqui a algum tempo você nem se lembrará qual foi o braço que quebrou”. Depois foi o meu irmão, fumando seu eterno cigarro recheado de câncer do pulmão: "lembre-se, você nasceu para duas coisas: as letras e a TV" e depois a objetividade da minha mãe: "Bel, deixa de frescura! Entre no chuveiro, se arrume bem bonita e volte pro computador... tem trabalho te esperando...vá trabalhar!!"
E assim, naquela tarde de
desespero, fui ouvindo, como numa trilha elaborada, todas as coisas
marcantes e belas que as pessoas que eu amo e que me amavam me disseram
em algum momento, coisas que marcaram, coisas que jamais pude esquecer.
E as coisas que a gente não esquece são mesmo as mais simples.
Naquela época – eu já era
bem madura – a vida já me mostrara que alguns acontecimentos, como diz a
voz do povo, “só mesmo por Deus”, pois afinal alguns fatos são mesmo
pouco explicáveis à luz pura e simples da razão...
Depois, querendo ter poder
no colégio, quando eu estava com uns 12 ou 13 anos, dei um jeito de ser
convidada para integrar a JEC – Juventude Estudantil Católica, havia
também a JOC e a JUC, respectivamente Operária e Universitária – que era
uma atuante organização religiosa de esquerda. Mas logo percebi que o
deus católico não gostava das minissaias que as meninas passaram a usar
no meio dos anos 1960 e, portanto, esse deus era careta demais pra mim.
Além do mais, o deus católico era machista, contra o sexo e contra todas
as liberdades que eu acreditava fundamentais para se construir um mundo
melhor do que esse.
Einstein me ensinou que,
já que não joga dados, deus poderia ser a inteligência que move o
universo, absolutamente abstrata. À medida que fui crescendo, fui
descartando todos os deuses de todas as religiões. Todos eram uns
intolerantes, babacas e cheios dos preconceitos humanos.
Com o tempo o meu deus se
tornou uma espécie de computador benevolente e camarada, ou seja,no
verdadeiro sentido da palavra, antes do sentido comunista: aquele
sujeito que, sem ser o nosso melhor amigo, é um cara que facilita, em
vez de dificultar. E como quem acredita em algum deus tem que acreditar,
pela própria condição humana, em algum tipo de demônio, conclui que, se
deus era um imenso, complexo e infinito computador camarada, o diabo
eram os vírus.
Mas foi naquele longínquo
dia, em que fitando em desespero a minha pequena nesga de céu, que
esse problema de deus se resolveu para mim. Afinal fora a vista do céu
que me mandara todas aquelas lembranças reconfortantes e maravilhosas.
E se a imagem da nesga de
céu no crepúsculo, me trouxera tantas mensagens fundamentais só podia
ser porque deus morava ali. |
De: António de Andrade
Albuquerque [mailto:antonio@andradealbuquerque.pt] |
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