A voz de Marina, a dizer
qualquer coisa lá adiante, desvia-lhe a vista.
— Vovó Anita, vai chover, quer vir agora? – pergunta a menina.
Depois, irá depois, assim que mal se inicie aquela chuvinha tímida e
venha o cheiro bom da terra, desta terra, esta terra cheira a carne,
cheira suor, cheira passado.
À sombra daquela
figueira a gente se amava.
Para além aos muros do jardim, a praia está quase deserta. Algumas
poucas mamães elegantes fazem o sacrifício de vigiar os filhos que
brincam na areia, temerosas, muito possivelmente, de um indesejável
contato de suas crianças com os moleques pobres que, a esta hora,
invadem a praia à cata de garrafas, embalagens plásticas e demais
resíduos lucrativos que o dia dos ricos possa ter-lhes deixado.
Não fossem a brisa e
as velhas árvores e este lugar seria hoje irreconhecível.
Já se acostumara. Não se acostumaria, entretanto, à ausência da
paisagem de outros tempos. A família Jason possuíra terras a perderem-se
de vista naquela região. Hoje erguiam-se arranha-céus em plena encosta,
destruindo a mata, agredindo o encanto, a magia, de abril. Sim, são
outros os tempos. Antes, a chegada do outono trazia consigo rituais bem
mais poéticos do que esta correria de fim de estação. Malas feitas,
filhos, netos, crias e criados, todos, afobadamente a preparar a volta à
cidade. Esquecida na bela casa da praia, viria o silêncio e Ana Luiza
novamente se recolheria à solidão.
Na verdade a ausência da família não a angustiava. Houvera época em que
os fantasmas domésticos que, pelo o outono e o inverno, substituíam a
presença das jovens gerações, tinham o poder de perturbá-la. Depois
aprendera a conviver com eles. Aprendera a conviver com seu próprio
mundo. Por fim, dera-se bem consigo mesma.
Cinquenta anos se
haviam passado, percebe Ana Luiza, esquecera até mesmo aquele
rosto decidido, aquela presença morena que tanto amor lhe despertara.
Fora um longo trabalho, o do esquecimento. Irônico. Agora ei-lo de
volta, ali, revivido no corpo da neta. O mesmo cabelo escuro e
brilhante, o mesmo olhar de mil espelhos, o mesmo sorriso branco,
franco.
Um risinho irônico brinca nos lábios da velha senhora. Comemora seu bem
guardado segredo.
Ah... que belo
escândalo teria sido...
Orgulha-se de ter sido capaz de silenciar. Naquelas circunstâncias -
era tão jovem - bem poderia ter-se deixado dominar pelo desespero e
teria sido o fim do reinado da menina Jason, Sra. Fonseca Gonzalez,
benemérita figura, dama ilustre da sociedade local. Não teria hoje o
aconchego da brisa de abril... Melhor nem imaginar o tanto que não
teria... Ainda agora, tanto tempo depois, lhe passa um leve tremor ao
relembrar a ansiedade e a agonia dos longos meses de gravidez.
O marido - querido
Gonzalez... que Deus o tenha... - ficara tão feliz. As colunas
sociais do pequeno jornal, naquele começo do século XX, anunciavam (o
daguerreóptico do casal Jason-Gonzales em seu - magnífico jardim de Eden)
o esperado "fructo da unnião de duas das mais illustres familias
locais”.
Então viera aquela esquisita mistura de sonho e pesadelo.
Os dias da Mansão dos Gonzales eram coloridos, a casa ganhava aos poucos
nova vida à espera do novo ser. Mas à noite, entre o linho dos lençois,
enquanto o marido roncava seus planos e sua alegria para o tão esperado
herdeiro, Ana Luiza sofria em vigília o pesadelo da dúvida, o pavor de
imaginar que aquele pequenino ser em seu ventre pudesse, afinal,
traí-la.
Na venerável árvore genealógica dos Jason, nenhum mísero galho
justificaria, pelo capricho dos gens, um filho negro. Sozinha com o peso
de um corpo magoado, Ana Luiza sofreu calada. A alegria espalhafatosa do
marido (que ela amava com a dedicação submissa e conformada das mulheres
de seu tempo e de sua classe) vinha apenas agravar-lhe a dor e, maior a
dor, maior também a certeza de que Ignácio, somente Ignácio e seu amor
animal, pudessem fazer brotar a vida em seu corpo pálido.
Ignácio era forte e
quente, como a terra.
No último instante, quando as dores eram quase insuportáveis, pensou
em dividir com a parteira - uma polaca forte como um touro— sua aflição.
Calou-se. Pouco depois abrigava em seus braços uma linda menina. Alva,
impressionantemente alva, a quem chamaram Elisa para que seu nome
lembrasse sua mãe. E sua mãe, entre riso e choro, tentava rezar
agradecendo a Deus, ou a quem quer que fosse, por ter poupado ao marido
a tristeza... Gonzalez já não parecia tão eufórico... Desejara tanto um
varão, um moleque, um herdeiro...
Não tiveram mais filhos.
O tempo tratou de amparar Ana Luiza e o cotidiano, aos poucos, apagou em
seu corpo a lembrança do corpo dele, o homem negro e terno, o homem da
cor da terra. Assim, foi possível a ela cumprir sem deslizes o papel que
lhe cabia: esposa, mãe, senhora e invejada anfitriã, famosa e festejada
tanto por seus brancos aristocracismos quanto por seus discretos
atos de benevolência.
Foi timidamente, talvez no princípio mesmo inconscientemente, que Ana
Luiza estabeleceu uma atrevida relação entre os cabelos cacheados e
escuros da filha de sua filha e aquela adormecida lembrança a duras
penas, por longos anos, sufocada.
De sua poltrona de inválida, à luz da tarde de abril, Ana Luiza observa
cuidadosamente a neta. Novamente debate-se entre aquela dúvida, tão
antiga.
Ora... Sonhos,
delírios de uma velhota solitária e esclerosada...
ELisa era indubitavelmente branca, europeia... Filha legítima de seu
falecido esposo, legítima Jason Fonseca y Gonzalez. Lógico... Pele
clara, corpo esguio, olhos verdes e o castanho dos cabelos eram per
feitamente justificados pela própria origem ibérica de Gonzalez. Se bem
que Ignácio não fosse um legítimo negro africano. Tinha os mesmos traços
finos de Elisa, por exemplo; traços que não acusavam sua condição de
mestiço... Mulato, como mulatos eram a maioria dos colonos de então...
De sua poltrona de inválida, Ana Luiza observa Marina, a filha de sua
filha. A pele morena da menina fora logo explicada por "esse hábito
moderno de deixar as crianças passarem a metade da vida na praia". E,
por todas as suas férias escolares, ano após ano, Ana Luiza recebia a
neta em sua casa de verão. E, vendo sem ver, viu Marina crescer, a
correr - pés descalços na praia, corpo úmido de mar, cabelos brilhando
em sal e areia, colorida em sol. Tornou-se mulher. Mulher de corpo rijo,
moreno, exalando saúde. O sorriso branco, o olhar de mil estrelas, os
gestos brejeiros e nenhuma semelhança com os empoeirados retratos de
família deram, por fim, à Ana Luiza a certeza. Benvinda certeza. Aquela
pele clara, a fragilidade de Elisa não poderiam mesmo ser nada mais que
outro dos muitos disfarces do mulato Ignácio, eterno brincalhão.
Sob a velha figueira,
entre a brisa de abril, Ana Luiza observa a imagem alegre de Marina.
Talvez gostasse de contar à neta, recordar para ela toda a beleza
daquele avô desconhecido, ignorado, talvez desprezado. Mas nesse momento
basta-lhe a certeza. Benvinda certeza. Como se, lá do outro lado da
vida, o mulato Ignácio, com seus alvos dentes e sorriso de espuma do
mar, zombeteiro e amoroso, estivesse a pregar-lhe a derradeira peça.
4 de abril de 1976
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