Sabia que “eles” chegavam sempre durante a
madrugada.
Mas dessa coisa de telefonemas, sequer
desconfiara.
Não podia ouvir “Acorda Amor” do Chico,
sem tremer.
Estava sempre atento à porta, ao cachorro.
Tinha bolado todas as saídas possíveis.
Mas, do telefone jamais desconfiara.
Na última reunião tinha levado uma prensa.
Um brutamontes com cara de americano
adolescente.
Aproveitando-se da aglomeração, o imbecil
pegara em seu corpo por trás, o cigarro – aceso é claro – dele a
torrar-lhe a carne, as mãos esmagando-lhe os braços.
-- Cuidado, hein? Você tem uma cara tão
boa, tão certinha, não vai querer uns desenhinhos assim nela, vai?
Vinha saindo do trabalho.
Na calçada – era uma bela manhã azul –
aqueles tipos. Umas caras marginais, dessas de jornal... Passou direto.
Provocaram. Não ligou. Por dentro, queria correr, fugir.
Estava começando a entrar em pânico. Mas
do telefone... Nunca poderia imaginar.
Começou a se livrar do material.
Mas era dramático carregar aquelas coisas
pelas ruas. Olhava pros lados. Depois não olhava. Afinal, podiam reparar
que estava olhando pros lados, desconfiar... Mas...e o telefone?
Tocou.
As duas da manhã.
Estivera sonhando, uns sonhos tão
excitantes. Dormia profundo.
Interrompido o sonho, apavorou-se.
Telefone? Pra mim? Mas que diabos! Nenhum companheiro sabe que tenho
telefone.
Vira num filme... Talvez franco
americano... Não, ítalo americano... Um filme de... Bertolucci?...
Não... Não se lembrava. Mas vira. O pessoal lá em Roma xingando o censor
de telefone, pelo telefone.
Será que no Brasil tem censura de
telefone? Tem que ter. Pois se tem censura de tudo... Jornal, rádio, TV,
carta, telegrama... É... Tem que ter de telefone.
Sim, ele próprio era um idiota, isso
mesmo, um idiota; um mau sujeito, um péssimo militante. Um covarde de
merda!
Atendeu. A voz:
-- Olha aqui, seu comuna de merda, a casa
está cercada. Melhor não tentar nenhuma besteira.
Quase morreu.
De medo.
E agora? Sair? Se entregar? Nunca! Além
disso – que bosta!—não sabia de nada. Ia ser torturado pra contar o que?
Era um elemento de base, cru, ignorante, não sabia de nada...Chorava.
Alguém sacudiu-lhe os ombros:
-- Chorando? Às duas da manhã? Mas que
imbecilidade é essa?
Resposta dramática:
-- A casa está cercada; são eles, mãe! É a
repressão!
Endoidou – concluíram os da casa. Está com
mania de perseguição.
A lua lá fora não poderia ser mais
inofensiva.
Fôra só um trote. |
Botero,
Tortura
Acorda Amor
Chico Buarque
Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão
Se eu demorar uns
meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer
Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)
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