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O Controle Social e o Doce de Chocolate

 

por Isabel Vasconcellos, 1973

foto: jornal A Folha de São Paulo        

Naquela noite fria, tão paulistana, em plena ditadura militar, eu dizia a mim mesma que conversas desse tipo são muito comuns entre as mesas pretensamente intelectualizadas do velho Bar Riviera. Mas, na verdade, apesar de acostumada a ouvir as mais mirabolantes conjecturas vindas destes sadios jovens que frequentam o citado bar, eu não estava tendo muito êxito na tentativa de achar banal o diálogo dos dois "bichos” ali ao lado. Dizia um:

  Pois é isso, bicho, imagine, assim, que os dirigentes resolvam acabar de uma vez com essas pessoas que não lhe são... ãhn...digamos, “queridas”. Como já vimos, essa civilização estaria em adiantado desenvolvimento em relação à da terra. Então, neste nível teórico, eles são capazes de tudo, certo?

O outro, interessadíssimo: Falô, bicho. Só são, só são...

 Falei. Bom, agora digamos que os dirigentes dessa sociedade resolvessem “maldizer” um determinado tipo de atitude, comportamento. Certo? -- O outro sacudiu a cabeleira.

 Vejamos...um exemplo: Imagine o equivalente a um doce de chocolate, para esses seres desse tal planeta a que me refiro.     

 Tá imaginado.

  Bem, então alguém, subitamente, sugere que comer doce de chocolate seja um ato socialmente condenável. Depois, através de uma sutil campanha publicitária e também de recursos subliminares, esta ideia vai sendo veiculada, sempre não-declaradamente, até que se institua a social intolerância em relação ao hábito de comer doce de chocolate. Ora, com a segregação social, estamos a um passo da instituição social estabelecida. Você já leu o Luchman e o Berger?     

  Já, já... — fez o outro, com cara de enfado.

--  Claro, bicho, desculpe. Bem, então aconteceria o inevitável controle exercido pela sociedade contra aqueles que gostam de doce de chocolate. Breve, o doce de chocolate subiria de cotação no mercado, haveria tráfico de doce de chocolate e assim por diante, até que a própria instituição começasse, sempre por um processo subliminar, a justificar-se a si própria. Teríamos, assim, as lendas sobre o doce de chocolate. Diriam que ê um alimento maldito, que torna más as pessoas, que funciona mais ou menos como a maçã de Eva e outras besteiras homéricas a respeito, estaria despertada na população a curiosidade neurótica em relação ao doce de chocolate e suas pretensas qualidades. O Hesse você leu, é claro, não é?

Nova sacudidelas de cabeleira.

  Bom, assim só as pessoas com leve desajuste social comeriam doces de chocolate, ou seja, aquelas pessoas de quem Hesse diria ter o sinal de Caim, “os ímpios e os corajosos”. Também os mais ricos, os mais ricos é que poderiam pagar o exorbitante custo do doce, se por ele se interessassem. Outros ricos, não interessados, acabariam consumindo o doce por esnobismo em relação à proibição social do fato. Bem, para os primeiros, os reais apreciadores de doce de chocolate, estaria instituído um muito maior controle, uma vez que o indivíduo "flagrado” comendo doce de chocolate estaria desmoralizado, socialmente, sacou? Seu Zé, a conta...

Tive tempo de ouvi-los, ainda, quando estavam a um passo da porta:

-- O diabo, bicho, é que o nosso negócio é outro, a gente não tá nessa de poder, riqueza, prestígio e, muito menos, estamos a fim de manipular as pessoas, né?

-- Isso é pros caretas. Nosso papo é bem outro mesmo. Amor, bicho, amor, e não o controle das massas...

Então, pensando que capacidade para tal não lhes faltava, suspirei aliviada:

-- Ainda bem, queridos, ainda bem...                                                                

 

O Riviera, inaugurado em 1949, foi o grande abrigo dos Descontentes com a Ditadura, no anos 1970.

Refúgio de artistas e intelectuais, era lá que eu encontrava os amigos quando estudava no Colégio São Luiz da Paulista, na Escola de Cinema, e depois, durante mais de uma década.

Lá eu convivi com figuras notáveis que iam, por exemplo, dos irmãos Paulo e Chico Caruso até o Henrique Meirelles, nosso ex presidente do Banco Central. A foto é dos anos 1970 e quem está à porta é um dos famosos garçons, o Juvenal. O outro, citado no texto, era o Seu Zé.