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A Porta Sul

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Foi então que eu saí andando, meio assustado, como se emergisse de um pesadelo, mas convencido, absolutamente convicto, de que alguma coisa se rompera para sempre dentro de mim.

 

Não tinha o sabor de outras — poucas é verdade— decisões que eu já tomara na vida. Nem mesmo poderia classificar aquilo como decisão. Era algo instintivo e forte, simplesmente forte, simplesmente era.

 

Era completamente, sem hesitação, sem contestação. Era, dentro de mim. Não como impulso, vontade. Não.  Era forte e simples, lógico, natural, simples consequência. Sim, alguma coisa se partira dentro de mim e eu mudara. Apenas isso. Tranquilamente isso.

 

Jamais seria o mesmo homem. Aos poucos, como quem acorda, fui tomado pela lembrança daqueles últimos dias:

 

Podíamos circular sem problemas — engraçado, eu ia dizer: podíamos circular livremente e achei que seria irônico, "sem problemas” também o é. Mas podíamos circular por uma área que abrangia quatro celas e um nicho de parede sob uma escada, a qual, no entanto, estava fora dos nossos limites.

 

 

Hieronymus Bosch, o sapo e o inferno

As celas ficavam abertas para o corredor bastante largo. Eu me acostumara, em uma semana, a habitar apenas o universo daqueles quinze metros de corredor. E ali me pus a andar, pra lá e pra cá, percebendo com surpreendente clareza que nunca, nunca mais, seria o mesmo homem que há uma semana, ou um pouco mais ou um pouco menos, penetrara pela primeira vez no estreito universo daquela improvisada masmorra política.

 

Sabia que estava lá há uma semana graças à corajosa vigilância que o grupo de presos nos impunha a todos. Formávamos uma comunidade organizada onde cada um tinha direitos, deveres e obrigações. Vigiávamos, também, ao tempo. Raramente nos era permitido ver a luz do dia e não tínhamos nenhum contato com o mundo exterior.

 

Várias vezes a porta sul do corredor se abria e um de nós era levado. Reagíamos então. Propúnhamos um jogo. Cantávamos ou organizávamos um debate sobre um tema qualquer de interesse coletivo, social. Evitava-se a discussão puramente teórica. Como se fosse um acordo tácito. Não se fugia, porém, como habitualmente se foge na vida, dos problemas pessoais, emocionais. Alguns de nós estavam em frangalhos, com os nervos a estourar. Outros esperavam pacientemente que tudo aquilo passasse. Não podia durar para sempre. Para mim durou muito pouco. E foi um verdadeiro divisor de águas em minha história pessoal de vida. A porta sul nunca se abriu para me levar e até hoje a lembrança desse fato me torna um pouco culpado. Se eu tivesse partilhado do sofrimento dos meus companheiros de prisão, hoje poderia sentir-me como um deles. Entre eles, não podia evitar o sentimento de culpa. Fui privilegiado pela minha condição de jornalista, de figura pública. Era uma peça intermediária: estava ali apenas para levar um susto e parar de escrever artigos considerados ligeiramente subversivos. Não era um "deles". Não significava, como eles, uma grande ameaça.

 

Compreendi, entre eles que eu não passava de um jovem travesso a quem o poder queria dar uma liçãozinha, como um castigo dado a um estudante relapso por seus prestimosos pais.

 

Eu os via passar pelas mais duras humilhações. Vi cada um deles sair pela porta sul e voltar horas depois, cobertos de equimoses, sujos, fedendo a sangue, vômito e fezes. Não eram super homens. Alguns se desesperavam. Outros choravam baixinho por horas a fio, e eu, pasmo, observava, temendo enlouquecer. Estava ali como espectador. E vivia me arrastando de um lado a outro, tentando ser útil, tentando participar. Admirava aquela gente e admirava em particular a coragem e a serenidade da maioria das mulheres. Aprendi muito sobre o sexo feminino naqueles poucos dias. Teria sido mais difícil sem a milenar ternura das mulheres. Não quero falar no sofrimento delas. Sei também que elas não gostariam que eu as diferenciasse de seus companheiros, homens, de luta. A verdade, porém, é que, preconceito ou não, em mim doía mais testemunhar a brutalidade da tortura naqueles corpos bonitos de fêmea, naqueles corpos feitos para o amor a para a maternidade. Eu temia e desejava a tortura, a porta sul. Parecia-me terrivelmente injusto que só eu ali continuasse incólume, privilegiado, livre da tortura brutal que os outros sofriam. Mas no íntimo agradecia por isso e voltava a me culpar por agradecer. Era também uma forma de tortura a minha impotência e o meu desespero.

 

Um dia a porta sul se abriu para mim. Do outro lado, porém, não estava o inferno redentor. Estava sim o editor do jornal para o qual eu trabalhava, com um ar solene no rosto, espremido entre dois advogados. Era a liberdade, compreendi.

 

Ou teria sido, quando eu ainda era outro homem. Porque o homem que saiu para o sol naquele dia estava perfeitamente consciente de que o muro se estendia para muito além das limitações do universo da prisão. Liberdade... Que ironia! Agora eu seria para sempre refém desta minha nova consciência.

 

Ali começava, para mim, o verdadeiro cativeiro.