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Tudo Acaba Naquilo... por Isabel Fomm de Vasconcellos |
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A pior coisa que existe no envelhecimento é também, paradoxalmente, a sua grande vantagem: a sabedoria que se acumula pela vivência. Mais sabedoria implica mais tolerância, mais lucidez e muito menos ilusão. É exatamente aí, no item menos-ilusão, que a coisa pega. Você vai se cansando de se decepcionar .
Por exemplo. Você passou a vida brigando por causa de posições políticas. Mas você mora no Brasil e chega um momento na vida de todo brasileiro em que ele conclui que todos os políticos são pouco mais que uma merda. Mas você passou a vida acreditando e brigando pela política! Você perdeu tempo, se enganou, desperdiçou vida e energia numa coisa que, afinal, se revela pouco mais que uma merda.
Ou você fez tudo por aquela pessoa tão chegada, amiga de infância, tudo mesmo e até mais um pouco e ela vai pro motel com o seu grande amor. Você conclui que o tesão é mais forte que o amor, compreende, perdoa...mas que merda, hein?
E tem aquele negócio que você começou com o seu sócio, os dois na maior pindaíba, lutando juntos e aí o negócio cresceu, vocês discordaram na condução desse crescimento, brigaram, se reconciliaram e o negócio foi crescendo, vocês ficaram bem de vida, até conseguiram não misturar muito as relações pessoais e as profissionais e, uma bela manhã, você descobre que o filho da mãe do seu sócio se compôs com uma multinacional que está entrando exatamente no seu ramo e vai engolir o negócio que vocês construíram juntos, mas que a partir de agora é só seu. Você entende. Seu sócio sempre foi um dinheirista, ele tem tanto medo de perder que, por este medo, frequenta há 15 anos o mais badalado psiquiatra... Você compreende tudo e até compra uma BMW e outra casa na praia com o dinheiro que recebe pela empresa e pela facada...mas é uma merda, hein? |
Steve Hanks, 1949, Vivendo na Chuva |
Pior de tudo é o negócio em família. Você passou por isso também? Terrível essa experiência de trabalhar para uma empresa familiar, principalmente morando no Brasil, um país onde as relações passionais falam muito, muito, muito mais alto que as profissionais. Você fez o melhor trabalho de marketing e vendas que a empresa já vira, mas o filho do chefe não gostou porque, antes de você, ele era quem fazia e os resultados obtidos por você deixaram os dele no chinelo. Ah, bom, você já sabia que a corda arrebenta do lado mais fraco, porém, ingenuamente, acreditava que, numa empresa, o resultado (que se traduz em lucros) é mais importante do que o orgulho ferido de um profissional (?) menos competente. Você compreende o sentimento do pai e o desejo dele de que o filho realmente o suceda. Faz sua exigências legais prá dar o fora da empresa e se sai bem, pega uma boa bolada com a qual troca o BMW e compra outra casa na praia e acredita que todo aquele trabalho insano que você teve prá tirar a empresa do buraco, bem, até que compensou, apesar desta dor escondida de abandonar, à toa, um trabalho pelo qual você doou toda a sua competência, atenção, dedicação e, pior!, que, afinal, apresentava excelentes resultados... tudo você analisa, compreende e perdoa, mas que é uma merda, lá isso é.
E a sua filha do meio, então? Era aquela princesinha, um anjo de candura e meiguice, uma aluna exemplar, você fez um certo sacrifício pra ela poder estudar na Suíça e, depois, ela te deu aquela alegria enorme de conquistar um dos melhores postos disponíveis prá recém formados brilhantes nas multinacionais... E ela não foi morar com aquele cafajeste que, além de vagabundo e aproveitador, ainda esnoba com o salário dela e faz a coitada sofrer? Você sente uma dor no peito só em pensar quantos sonhos acalentou para essa sua filha, doutora, do meio, prá ela acabar vítima de um ignorante, o que lhe dá a sensação de que ela está se punindo por alguma coisa que você espera que não seja você... Não, você compreende. Quem pode dizer onde o outro encontrará a felicidade? A realização? Se sua filha está feliz com o companheiro, então tudo bem prá você também... Mas que é uma merda, é.
E o filho caçula? Você já tentou tudo, mas ele só quer mesmo levantar ao meio dia, ir pro boteco, puxar um fumo ou coisas piores, esperando anoitecer prá voltar prá casa, tomar um banho e cair na gandaia. Bom. Você se consola: talvez o menino ainda não tenha, apesar dos seus vinte e cinco anos, encontrado alguma coisa que o motive na vida profissional, afinal você não criou este moleque prá ele virar vagabundo e mesmo que seja este o seu destino (agora você vai capitulando)...bom... você pode pagar a conta e filho é filho e o seu não é o primeiro vagabundo do mundo. Até Charlie Chaplin era (agora, você admite, forçou a barra). Além disso, em compensação, ele é um amor de moleque e leva a família inteira naqueles compromissos que ninguém quer, como ir ao hospital tirar sangue, acompanhar a tia velhinha na fila do INPS, etc., etc. Ele pode ser vagabundo, mas é um bom garoto e é seu filho. Mas que é uma merda, isto é.
Aí, quando você percebe, de esperança em esperança, de ilusão em ilusão, de amante em amante, de parente em parente, de amigo em amigo, de colega em colega... tudo acabou em merda. Isso dá uma certa tendência à depressão.
Você tenta compensar, olha em volta, sobraram as casas na praia e os BMW na garagem. Mas, nos últimos anos, --você mora no Brasil ! - depois da aposentadoria, com filhos homens casando sem grana e sem rumo, batendo automóveis e se metendo em rolos com drogas e polícia, você acabou penhorando as casas e os BMW e, pelo jeito, vai ter que liquidar tudo e terminar seus dias num flat apertado e com ranço de velho. Aí você se lembra que, melhor um flat do que um asilo ou as ruas, que pelo menos o seu casamento deu certo, o amor é maravilhoso... Mas que é uma merda, lá isso é.
No entanto, você é um ser humano idoso politicamente correto e supostamente bem informado e por isso frequenta clubes da terceira idade, redes sociais, joga xadrez com desconhecidos pelo computador, faz ginástica, dança, tem amigos e se mantém alegre, na medida do possível. E toda a sabedoria que você acumulou nas porradas que a vida lhe deu, serve agora prá se relacionar em paz com os outros indivíduos e evitar as ilusões quanto à imprevisibilidade das atitudes e do caráter dos que com você convivem. Além disso, você pensa, agora pode apreciar em paz as delícias da cultura humana, pode ler, viajar na internet, ir ao museu e ao concerto ou ao show musical, pode ver os clássicos na TV e no vídeo.
Então, por que, por que esta sensação de que tudo é uma grande montanha de merda? Para seu consolo, esta noite, seu filho estreou no teatro e você fez questão de estar ali, escondido ao lado do palco. Quando ele entrou em cena, alguém bateu nas costas dele e disse: "Merda pra você!"*- Foi a primeira vez que você viu algo que não acabou, mas sim começou naquilo mesmo. E vive, apesar de sábio, acreditando, até o dia de sua morte, que alguma coisa, alguma vez, não terminará em merda. *pra quem não sabe, "Merda" é o cumprimento tradicional de artistas em estreias. |