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Todas as Vidas conto de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Edward Burne-Jones - A perseguição de Merlin
Encontrei você na Espanha, na era cristã, no século XVI. Você era nobre. Eu também. Numa festa em seu castelo, nossos olhos finalmente se encontraram. Parecia que, desta vez, tudo estava perfeito. |
novembro 1983 |
Tento calcular. Mas a memória embolorada das eras torna a coisa mais difícil. Posso afirmar, no entanto e sem sombra de dúvida, que o conheço há coisa de uns três mil anos.
Encontrei você pela primeira vez naquele clã de Jônios, numa ilha do mar Egeu. Porém, mal nos vimos. Você estava entre os espectadores: íamos, vinte moças virgens e vinte rapazes impúberes, a caminho da caverna onde fomos sacrificados pelo Minotauro. Morri.
Foi com emoção que vi você passar em Atenas, em companhia do filósofo, aquele mesmo que mais tarde foi condenado a beber cicuta... É claro que reconheci você imediatamente. Afinal, seus olhos tinham sido os últimos que fitei com intensidade, antes de penetrar na caverna do monstro... Ah, reconheci você! E larguei imediatamente o cesto que trazia no braço para estancar, perplexa e encantada, em pleno centro do jardim, seguindo com os olhos a sua imagem. Desta vez, nem sei se você chegou a me ver. Na manhã seguinte fui dada a um legislador e vivi em companhia dele até o fim dos meus dias.
Tive que esperar alguns séculos.
Voltei a ver você no Senado, em Roma. Todas as tardes, escondia-me entre o povo das galerias para ouvi-lo discursar, esperando, ansiosa, que me fitasse e reconhecesse meu olhar, agora não tão conformado. O problema é que assassinaram você à traição. Minha vida correu boba, banal, outra vez. Tive muitos filhos e uma morte tranquila.
Esperei mais alguns séculos.
Encontrei você na Espanha, na era cristã, no século XVI. Você era nobre. Eu também. Numa festa em seu castelo, nossos olhos finalmente se encontraram. Parecia que, desta vez, tudo estava perfeito. A Inquisição, porém, perseguiu minha família e, para escapar da fogueira – sempre tive mesmo qualquer coisa de Bruxa – fugi para o Novo Mundo, onde acompanhei Cortez e sua expedição no genocídio ao povo nativo e toda a sua brilhante cultura. Morri ainda jovem, numa batalha contra Montezuma.
Novamente esperei outros séculos.
Foi na corte de D. Pedro I, no Brasil. Cortesã famosa, recebi um dia a sua visita. Mais do que nossos olhos, agora nossos corpos se encontravam. Amei você como poucas mulheres o são capazes... e... ainda não seria dessa vez. Um poderoso barão resolveu ter-me apenas para ele e passei, de novo, o resto dos meus dias numa vida fútil e vazia.
Ainda não fez um mês. Uma amiga telefonou pra dizer que o amigo com quem ela estava saindo tinha um amigo que estava precisando de uma amiga. Está bem, disse eu, outra vez sairei com algum separado que, depois de alguns jantares e motéis, há de voltar para os braços da sua ex... Mas topei. Cansada de estar sozinha. Você estava lá. Me esperando no sofá da sala. Me viu, descendo a escada. E quando sorriu, ao apertar-me a mão, seu sorriso era tão brilhante que, por um segundo, ofuscou-me a visão. Mas ao olhar você nos olhos, me vi lá, refletida e duplicada. Então o reconheci. Era você e, desta vez, eu era livre, não mais uma escrava. O mesmo homem, de séculos e séculos e, finalmente, talvez sejamos felizes! Se o avião não cair. Se o carro não capotar. Se o trem não descarrilar. Se a usina não estourar. Se ninguém nos assaltar e assassinar... São tantos os perigos deste tempo. Ainda não faz um mês. E eu te amo há séculos. |