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Dez Minutos conto de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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publicado na Gazeta de Vitória, com ilustração do coletivo Peixaria |
Fugiu-lhe a manhã. Janela embaçada, toda branca: visão primeira de um despertar abrupto; na porta a campainha insistente, o sonho interrompido. Estranha sensação é acordar em cama desconhecida, olhos fora de foco, olhos de súbito arregalados para a ausência do cotidiano cenário matinal. Descalços, seus pés pisam o chão frio, uma toalha qualquer enrola o corpo nu. Abre a porta a um vago vulto que estende para ela a consciência da situação: bandeja, pão, leite, café, laranja, geléia colorida.
Dez horas. O homem na cama ronca e resmunga. Pergunta-lhe se quer café, perguntando por perguntar, cansada de saber que ele não quer. Com o pão e o leite vai mastigando esta sua tristeza. Ele volta a dormir.
Chove. Roupas em desalinho no espaldar da cadeira. Por que não se vestir e, com um beijo silencioso, sair para sempre? Por que não?... A ideia fica brincando dentro dela, marota. Imagina-lhe a surpresa a procura-la pelo quarto, bobo inexpressivo quarto de hotel meio pobre.
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Frio. Quase sem perceber, vai se vestindo. Enquanto se veste antecipa e imagina: Sairia sem ruído, um bom-dia seco ao porteiro espantado, espantado por vê-la sair só. Afinal, saíam sempre juntos... Ela se vê na rua, na chuva, no táxi... Chegaria, por fim, ao estacionamento, perto do bar, onde seu carro, abandonado pela madrugada, a acolheria. Antecipa o voo seguro pela avenida brilhante de chuva e de carros, caminho de casa, e seu disfarçado vingado riso ao pensar nele acordando sozinho, surpreso, um tanto ridículo a zanzar pelo quarto, em sua nudez absurda.
Chove. Leva muito tempo diante do espelho na inútil tentativa de arrumar os cabelos despenteados de tanto acariciados, embaraçados pelo amor furioso, faminto, louco, absolutamente feliz.
Feliz. Olha para ele, no fundo do espelho refletido. Há de acordar e levar-la até seu carro. Na despedida, aquele beijo frio, a promessa de um telefonema que – ela sabe - não haverá. Nenhum resíduo de calor nas mãos, nenhuma ternura nos olhos. Em outra noite qualquer voltarão a se encontrar, por acaso, no bar de sempre. Para que então tudo se repita. Novamente acordar sobressaltada, a campainha a interromper-lhe os sonhos; novamente mastigar com pão e café a sua tristeza.
Não. Não quer mais ouvi-lo, decide. Não mais suportar-lhe o ridículo medo de amar. Fanfaronice de menino grande a gabar-se de seus trinta e cinco anos de liberdade, não mais suportar. Não mais desdobrar-se, ora em companheira, ora em potencial inimiga. Não mais obrigá-lo a pensar, reformular, contestar-se a si próprio. "Você bagunça minha mente" - costuma ele dizer, tentanto, sem graça, gracejar. Atira com raiva a escova de cabelo para dentro da bolsa. Vai embora. Não pode amar um homem assim. Seus mundos são paralelos. Ele não a merece. Não merece a sua ternura tão bem guardada, um carinho que resistiu, resistiu, resistiu... Não merece este amor tão grande e tão rico, fruto de toda a sua vivência, fruto de tantos amores outros. Não. Não foi para ele que tanto ela se guardou. Seu universo ilimitado – pensa ela –nada significa para este homem medroso, ancorado em seus valores falidos, em sua vida sem surpresa ou esperança; vida segura, povoada de rótulos e estereótipos, onde tudo é previsível e há um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. No uísque e no futebol, sufocados a duras penas os fantasmas do imprevisível. Esquecido o risco do envolvimento, do entendimento, da emoção, da descoberta, do encontro. Esquecida alegria.
Chove. Escurece, lá embaixo, a cidade. Corajosa, ela calça as pesadas botas, joga o xale sobre os ombros e prepara-se para enfrentar a rua, a chuva, o frio, a briga pelo táxi. Depois, liberdade. Bem depressa o dia a dia apagará qualquer lembrança desta felicidade tão fugidia, breve, estúpida.
Um último olhar ao espelho, a ajeitar a roupa, surpreende-o a observar-lá do outro lado. Entre sono e espanto, ele pergunta: — Por que toda essa roupa? — Tenho frio. — Você quer ir agora? — Quero. Ele suspira. Estende a mão e apanha o relógio sobre a mesa de cabeceira. No movimento, deixa expostos os músculos, o corpo. Bonito. Dez e dez. Chove. Escurece. Ela inventa compromissos. Com os olhos, ele pede. Ela vai mentindo horários a cumprir enquanto ele acende um cigarro. Ela observa: as mãos dele, os lábios dele. De súbito, seu corpo perdoa todas as mágoas. Ri de si mesma. — Eu ia embora – diz ela de manso - deixar você aí sozinho, dormindo. Ele sorri para ela. Um sorriso condescendente tal qual pai ante travessura infantil. — Vem cá. – ele diz. O corpo dela se encaixa certinho dentro do abraço dele. Se esconde e se enterra o rosto dela no ombro dele, a voz dela sai sufocada: — Preciso esquecer você. E, lentamente, começa a se despir.
13 agosto 1976 |